Severiano Cardoso (1840/1907) é um daqueles sergipanos do século XIX com os quais se tropeça no “pó dos arquivos” com a promessa de monografia. Os elogios endereçados ao personagem por Armindo Guaraná chamam a atenção: “nenhum outro o excedeu em competência e amor à instrução, nem houve quem melhor soubesse difundir o ensino no espírito dos seus jovens discípulos.” (Guaraná, 1925, p. 259). Idênticos qualificativos lhe são atribuídos por Acrísio Torres, para quem o Severiano, além de “precursor” dos dramas infantis em Sergipe, co-responsabilizou-se pela educação das famílias Resende, Franco, Dantas e Campos. (Torres, 1999, p. 28). Também chama a atenção o juízo de Manoel dos Passos de Oliveira Teles, às vésperas da morte do intelectual estanciano: Severiano Cardoso é “o mais notável poeta” de Sergipe.” (Teles, 1907).
Apesar dos louvores, e por ser, até então, considerado um personagem “menor” – diante de um Felisbelo Freire ou dos outros Cardosos da mesma família, – a gente vai protelando a leitura, até que um dia ele se impõe como objeto de pesquisa. Para mim, Severiano ganhou importância em 2002 quando li, no Almanaque Sergipano (1899, p. 242-256) a sucinta monografia “Lagarto: história e costumes”, um texto singular para a historiografia do final do século XIX em termos de temática e de didaticidade. (Há juízo inédito de Ibarê Dantas sobre esse trabalho, produzido em 2002).
Depois do encontro no Almanaque, ouvi o comentário de Jorge Carvalho que “flagrou” o Severiano ganhando uma “ajudinha” do irmão Brício Cardoso no aparelho do Estado. Brício determinou o emprego de hinos escolares em Aracaju. e o Severiano foi chamado para criar as peças.
Christianne Gally também encrencou uma vez com o poeta. Ao estudar o Brício Cardoso, a moça das gramáticas começou a suspeitar que as peças teatrais assinadas por Severiano poderiam ter o mano como verdadeiro autor. Não foi à frente com a suspeita, porém.
Este ano, Vera dos Santos trouxe a mais grata surpresa sobre Severiano. Ao estudar A geografia e os seus livros didáticos sobre Sergipe (NPGED/UFS, 2004), anunciou a intenção de Severiano Cardoso de produzir um livro didático sobre a matéria.
Neste mês de agosto, por fim, Severiano Cardoso foi notícia, novamente, quando Aglaé Alencar colocou os estagiários do IHGS em guarda para localizar a literatura teatral desse escritor. Não foi por acaso. Severiano é o patrono da cadeira n. 12, da Academia Sergipana de Letras, ocupada agora pela referida professora, também musicista e dramaturga.
Como afirmei, já conhecia a verve de historiador, pelas páginas do Almanaque Sergipano. Mas, não sabia que o “Lagarto: história e costumes” tratava-se apenas de um fragmento. O texto é parte constituinte de um trabalho didático que teve a escritura, provavelmente, abandonada na última década do século XIX. Um livro de corografia.
Mas, o que vem a ser uma corografia? Os dicionários da língua portuguesa, publicados no século XIX, conservaram o significado de descrição de uma localidade em particular. Morais Silva (1813) referia-se a “reino” ou “região”, Silva Pinto (1832) “de uma terra”, Eduardo de Faria (1850), “de um país”. Foi Domingos Vieira (1873) quem registrou sentido mais preciso, repetido no século XX por Laudelino Freire (1940), Caldas Aulete (1958) e Aurélio Buarque de Holanda (1975): “descrição de um país, assim como a geografia é a descrição da terra, e a topografia a de um lugar particular.” (p. 216, v. 2).
A precisão de Domingos Vieira informa sobre o estatuto da ciência da geografia e também sobre a presença da corografia na educação intelectual da segunda metade do século XIX. A Corografia brasílica (1817, 1933) de Manuel Aires de Casal (1754/1834) é a primeira obra que vem à memória. Ela serviu de modelo às diversas iniciativas regionais, provinciais, municipais etc. de descrever os aspectos físicos e políticos desses recortes espaciais por todo o período monárquico.
Ocorre que num tempo onde os saberes não estavam bem delimitados não era tão clara a definição de uma corografia como obra específica de geografia. O próprio “pai da geografia” brasileira, Aires de Casal, expressou a dubiedade no título do seu trabalho: Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do reino do Brasil. Como isso, quero dizer que, independentemente das conclusões a que cheguemos sobre o emprego da expressão “corografia”, a narrativa histórica estava lá em Casal, Silva Lisboa, e em Laudelino Freire. Também fez parte da suposta corografia de Severiano, que (pelo menos, para mim) continuaria hibernando no arquivo do IHGS, provavelmente, não fosse o toque oportuno de Vera dos Santos.
Os originais constam de cinqüenta e seis folhas escritas à mão. Parece tratar-se de um rascunho de obra inacabada. Não traz assinatura, nem título e se inicia com uma “notícia histórica” sobre o Estado de Sergipe. Seguem-se-lhes a situação, limites, aspectos físicos, clima, salubridade, orografia, hidrografia e os textos sobre cidades vilas e povoados.
O autor não se estendeu muito sobre o “Estado” de Sergipe. Quarenta e sete páginas foram dedicadas às cidades de Aracaju, Estância, Maruim, Propriá, Lagarto, São Cristóvão, Itabaiana, Capela, Riachuelo, Campos e Riachão. Há fragmentos sobre o rio Poxim também. Mas, o maior espaço entre as localidades foi destinado às cidades de Lagarto e Aracaju. Como o escrito sobre a terra “papa-jaca” já foi divulgado no Almanaque, reservarei maior atenção sobre o que Severiano disse da cidade de Aracaju há pouco mais de um século.
* * *
Na semana passada (A Semana, 29 ago./04 set.), fiz alguns registros sobre a figura do educador, poeta e escritor Severiano Maurício Cardoso (1840/1907) e do interesse que a sua obra tem despertado nos últimos meses. Também dei notícia sobre uma suposta obra de corografia, escrita, provavelmente, na última década de 1890. Por que Severiano não foi à frente com o livro didático? Existe outro original dessa obra? Silva Lisboa e Laudelino Freire teriam-no cortado o caminho, publicando as suas corografias em tempo recorde? Não arriscamos opiniões. É mais urgente proceder uma crítica de autoria para confirmá-lo como o autor do manuscrito que se encontra no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Os verbetes que tratam das cidades de Aracaju, Estância, Maruim, Propriá, Lagarto, São Cristóvão, Itabaiana, Capela, Riachuelo, Campos e Riachão seguem de perto uma grade diplomática que se espelha em parte na descrição efetuada sobre o Estado de Sergipe. Eles informam sobre o número de habitantes, a situação geográfica, dão notícia histórica sobre a fundação, o estado geral de ruas praças e edifícios, a atividade produtiva – comércio indústria e serviços, aspectos sobre a salubridade, os equipamentos escolares e relação sucinta de povoados.
A Aracaju de Severiano Cardoso é cidade “ainda nova”. Era nova também para Silva Lisboa (Corografia...) que a ela se referia como “a nova capital” nos idos de 1897. Talvez por isso, trate pouco do seu passado, muito menos que sobre o de Estância e de Lagarto. Pode ser sensato pensar também que a ausência da diacronia seja um traço dominante do gênero – corografia. Trata-se mais de um flagrante sobre a economia e os equipamentos que denotam a urbanidade da jovem Capital.
Tinha então quinze mil habitantes, quatro praças, vinte e duas ruas que não ultrapassavam a extensão de aproximadamente quatro quilômetros... Segue Severiano a listar edificações, a contabilizar estabelecimentos públicos e residenciais, e a comentar sobre o movimento comercial da cidade. Tudo muito ligeiro e resumido. Mas, para bom entendedor, suas quase-listas oferecem, pelo menos, quatro informações importantes sobre a história social de Aracaju.
A primeira está ligada ao mundo do trabalho. A sua tipologia das empresas até então existentes sugere uma hierarquia que contempla a malha da atividade produtiva. Começa com a grande companhia de rebocagem de navios, os serviços tipográficos, bancários, de hotelaria; passa pelas fábricas, pelo comércio de fazendas, ferragens e de bebidas e prossegue com uma gama de pequenos negócios: botequins, bodegas, farmácias, padarias, relojoaria, açougue, confeitaria, ferreiro, marceneiro, sapateiro, tamanqueiro, funileiro, cocheiro, encanador, ourives, fogueteiro, carvoeiro e latoeiro.
O segundo dado importante é o comentário sobre a morada dos pobres no final no século XIX. Uma informação carregada de ironia e de forte dose de sergipanismo é o que se pode ver na sua frase: “Existe... um número assaz considerável de casas inferiores, cobertas de telhas ou de palmas de coqueiro, e edificadas sem a mínima regularidade, constituindo os subúrbios (...) que habitam [as] classes mais necessitadas. São moradias pobres, singelas, modestas; mas relativamente limpas, arejadas e claras, alegres, como o povo se exprime, muito distanciadas, no tocante à comodidade e asseio, da cortiçada abjecta imunda que faz a vergonha e a desonra das grandes cidades, sem excluir a opulenta [e] luxuosa capital da nossa esperançosa República.” (Cardoso, 189-, f. 11 v., f. 12, grifos do autor).
As duas últimas notas importantes para a história de Aracaju, longe do verbete sobre a cidade, estão dispersas nos fragmentos sobre a hidrografia de Sergipe e no texto correspondente ao município de São Cristóvão. No início da República, a velha capital estava “em decadência progressiva, após a retirada da sede governamental...quase [arruinada]”, lamentou Severiano. Do alto da colina que abrigava “a melhor edificação da ex-capital” ainda se viam as grandes fendas provocadas pelas chuvas, “enormes [brocas] a que o vulgo chama[va] de barrocões.”
É possível que se trate do famoso barrocão José Aleixo, citado com estardalhaço pelo historiador Sebrão Sobrinho. O mesmo barrocão que o conhecido Armindo Guaraná avaliava como o “maior mal” da sua adorada São Cristóvão. (cf. Guaraná, 1873). O mais interessante da nota de Severiano, todavia, está na importância conferida ao referido fenômeno – o barrocão – provocado pela erosão: “foi essa uma das causas concorrentes para a mudança da capital.” (Cardoso, f. 21).
Por fim, um dado sobre o rio Aracaju. Conta Severiano que um dos problemas da capital ainda era a carência de “boa água potável”. Já se havia tentado a canalização da água dos rios Pitanga e Poxim para abastecer à população de Aracaju. Até aí, tudo conhecido na historiografia local. A novidade, para mim, foi a notícia do plano de desviar o leito do rio Poxim através de um canal que cortaria a cidade, “engrossando o ribeiro Aracaju, que se lança na Cotinguiba ao pé da fábrica de Tecidos”.
Se realizada fosse a obra, teria sido a sorte grande do ribeiro Aracaju. Além de dar de beber aos moradores da capital, seria, muito provavelmente, reconhecido como o rio que dá nome à cidade e ganharia muitas homenagens no ano do sesquicentenário. Mas, isso é uma outra história que o Severiano vai ajudar a contar quando o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe começar a expor o seu acervo relativo aos primeiros tempos da ilustre aniversariante do 17 de março de 2005.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Retalhos de Severiano Cardoso (Final). A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 12 set. 2004.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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