domingo, 3 de outubro de 2004

O Gabinete de Leitura Tobias Barreto

Circulating libraries ou gabinetes de leitura eram instituições privadas que alugavam livros e periódicos a baixos preços para populações citadinas no Reino Unido, França e Portugal, entre a segunda metade do século XVIII e o século XIX. Com a veiculação de romances nos jornais, a massificação da instrução pública e a impressão de livros baratos, essa forma de negociar a literatura foi se extinguindo no final do dezenove.
Isso ocorreu do outro lado do mundo (Cf. Esteves, 1984; Taborda s.d.t). No Rio de Janeiro e na Província de Sergipe, a instituição gabinete de leitura ganhou significado diferente naqueles tempos da monarquia. Eles ainda emprestavam livros, mas sua feição, longe de ser a de um pequeno negócio, estava próxima à de uma confraria de letrados. Gabinetes de leitura agregavam as funções de animar – preencher o ócio dos proprietários e dos pequenos burgueses – e instruir – facilitando a circulação de impressos entre camponeses e operários semiletrados.
É sugestivo, portanto, que o nosso primeiro gabinete (1877) tenha se localizado no próspero entreposto de Maruim. É também exemplar que a crescente Aracaju, apesar de possuir uma biblioteca pública desde a sua fundação (1855) – ou, pelo menos, um acervo de livros destinado a esse fim – tenha assistido ao nascimento dos gabinetes literários Sergipano (1871) e Tobias Barreto (1889) por iniciativas da sociedade civil. Tratemos um pouco desse último.
Não se havia ainda celebrado a missa de trigésimo dia pelo falecimento do filósofo de Campos, e esse ilustre intelectual sergipano já recebia as primeiras homenagens com cores memorialísticas. Fundava-se, a 21 de julho de 1889, o Gabinete Literário Tobias Barreto. A instituição, entretanto, parece não ter correspondido ao empenho do seu patrono no que diz respeito aos progressos da atividade científico-literária brasileira. Considerando-se o Relatório do seu [terceiro] presidente, Etelvino de Menezes Prado, a situação do grêmio era deprimente. O “desleixo” e a indiferença das diretorias eram patentes: um vice-presidente que não comparecia, o secretário que não redigia as atas, um tesoureiro que se apropriava das rendas sem prestar contas dos gastos, um orador indiferente às suas tarefas cotidianas, os presidentes que não produziam relatórios sobre suas gestões etc. (Cf. Arquivo do IHGS, cx. 15, doc. 6)
Etelvino bem que se esforçou para “animar a sociedade e proporcionar meios de distração e ilustração aos sócios”: fundou a Gazeta de Domingo – que não chegou à nona edição; reformou os estatutos da casa, mas não os pôde imprimir. Queria alugar uma casa com mobília, uma sede apresentável, e constituir um acervo. Esses planos, porém, esbarravam com “o esfacelamento da Sociedade, aliás, sem razão para isso, [com] o desânimo dos sócios, já em número muito limitado e finalmente [com] a retirada de muitos sócios do Estado de Sergipe para outros Estados do Brasil”, a exemplo de “Sérgio Martins Fontes, Odilon Coriolano de Azevedo, Elias Augusto Coelho Cintra, Augusto Acciole Prado, Ernesto de França Mello, Francisco Martins Fontes, João de Souza Teles e Gonçalo de Souza Campos.” (fl. 5-6).
Para se construir uma imagem do movimento (?) de leitores do Gabinete, bastam os números do seu acervo: dois “romances” de Júlio Verne – Cinco semanas em um balão e Três russos e três ingleses – e um retrato de Tobias Barreto.
Nesses termos, é muito improvável que o “calor bibliotecófilo que reinava na Corte e nas províncias do Império”, desde 1872, tenha contribuído para reforçar o “entusiasmo” dos sergipanos em todas as lutas “contra o obscurantismo”, como sugeriu Epifânio Dória. Ele mesmo afirmou que a nossa mais importante biblioteca – a pública – “passou... uma existência vegetativa, arrastando uma vida ignorada, entregue ao maior desprezo”, entre 1880 e 1889 (Dória, 1942, p. 87-89).
Alvíssaras na difusão dessa prática de leitura somente no governo republicano de Felisbelo Freire, que criou uma biblioteca e um museu em Aracaju (27/3/1890). Mas, teria a República irrigado de sangue novo a sociedade sergipana? Laudelino, sócio do Gabinete de Leitura e irmão do presidente Freire, não confirma a hipótese. (Cf Freire, 1900).
Testis unus, testis nullus – uma testemunha, testemunha nenhuma. Únicas (isoladas) eram até o mês passado, para mim, as evidências de Etelvino Prado e de Laudelino Freire. Mas, ao compararmos as duas falas, salvam-se os testemunhos e recuperam-se informações preciosas sobre a nossa vida espiritual no final do século XIX. Desinteressados e desanimados estavam os sócios do Gabinete; anêmica e apática era a vida “cultural” (não tenho como evitar essa palavra) sergipana. Para Etelvino, o motivo estava no desleixo das pessoas e na migração de cérebros. Para Laudelino, a atividade política (opressora) e a “falta de moços” explicavam o marasmo. Aqui não se praticavam regatas, esgrima, ginástica, equitação; não vingavam os periódicos [literários], nem as sociedades lítero-recreativas.
Tudo isso ocorria há cem anos, quando as elites econômicas provinham do campo e o Estado empenhava-se em resolver questões mais relevantes do que, por exemplo, a elaboração de uma política cultural stricto sensu. E hoje?...
Não sou pessimista e nem ignoro as mudanças. Avançamos muito. Mas, a insensibilidade de empresários e a fragilidade dos instrumentos do Estado na tarefa de preservação da memória local me obrigam a pensar na angústia de Laudelino Freire e a interrogar se não seria um dos traços das nossas elites um certo conluio com o obscurantismo, para não dizer, com a ignorância.

Para citar este texto
OLIVEIRA, Itamar Freitas de. O Gabinete de Leitura Tobias Barreto. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 03 out. 2004.<http://itamarfo.blogspot.com/2004/10/o-gabinete-de-leitura-tobias-barreto.html>.


Referências
FREITAS, Itamar. O movimento intelectual em Sergipe. In: Historiografia e identidade na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Rio de Janeiro, 2000. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro. p. 37-69.
VITÓRIO. Cristiane. A “República das letras” em Sergipe (1889/1930). São Cristóvão, 2001. Monografia (Licenciatura em História) – Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe.
ESTEVES, Rosa. Gabinetes de leitura em Portugal no século XIX (1815/1853). Revista da Universidade de Aveiro: Letras. Aveiro, n. 1, p. 213-235, 1984.
TABORDA, Humberto. História do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro (Primeiro centenário) 1837/1937). s. d. t.
KURTZ, Robert. O declínio da classe média. Jornal da Cidade, Aracaju, 19 set. 2004. Caderno Mais, p. 5.
FREIRE, Laudelino. O Almanaque Sergipano. Almanaque Sergipano, Aracaju p. 293-302, 1900.
DÓRIA, Epifânio da Fonseca. A Biblioteca Provincial de Sergipe: elementos para a sua história. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, Aracaju, v. 9, n. 16, p. 75-89.
PRADO, Etelvino de Menezes Prado. Relatório apresentado na sessão de 17 de maio de 1891, que restaurou o “Gabinete Literário Tobias Barreto” fundado no dia 21 de julho de 1889 no Aracaju. Aracaju, 21 mai. 1889. Arquivo do IHGS, caixa n. 15, documento n. 006.
SILVA, Eugênia Andrade Vieira da. A formação intelectual da elite sergipana (1822/1889). São Cristóvão, 2004. Dissertação (Mestrado em Educação) – Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, Universidade Federal de Sergipe.
SILVA, Clodomir. Imprensa. In: Álbum de Sergipe. São Paulo: Seção de Obras de O Estado de São Paulo, 1920. p. 99-105.
DAMIÃO, Regina Toledo e HENRIQUES, Antonio. Curso de português jurídico. 8 ed. São Paulo: Atlas, 2000.
GUARANÁ, Armindo.  Dicionário biobibliográfico Sergipano. Rio de Janeiro: [Governo do Estado de Sergipe], 1925.

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