História não é literatura, dizem a maioria dos historiadores. A história materializa-se na escritura e sob determinadas fórmulas literárias, afirmam alguns heréticos. Hoje, a primeira posição é hegemônica – história não é arte, é ciência –, e a escada que separa os departamentos de História e de Letras na UFS é o resultado das lutas de cinco gerações de historiadores para assegurarem um lugar ao sol dentro da universidade moderna. Em cento e cinqüenta anos, buscando identidade, a história já expulsou – pelo menos tentou expulsar – o “especulativo” (da filosofia), o mecanicismo (das ciências físico-naturais) e a subjetividade e a ornamentação (da atividade literária stricto sensu).
Mas, nem sempre essa relação foi assim, tensa; antes fora tênue. Em meados do século XIX, sem campos científicos definidos, sem cursos de licenciatura em história, disputas por empregos ou financiamento público para pesquisa etc., o homem da escrita era concomitantemente um ficcionista e um “realista”, um contador de histórias. Vejam-se os casos do poeta inglês Robert Southey, confrade do Walter Scott e autor de History of Brazil (1810/1919); de Gonçalves Dias, o poeta do “minha terra tem palmeiras...” e um dos primeiros pesquisadores oficiais de história local e de história do Brasil (1854/1856); e também o exemplo – sem intenção comparativa com os precedentes – do sancristovense José Joaquim de Oliveira (1820/1872), que escreveu as Histórias perdidas de Simão Dias (1867).
Em nosso Joaquim de Oliveira, não há como distinguir uma migração da poética para a história. Isso já fora flagrado em Southey e Dias. Os poucos escritos de Oliveira ainda aguardam um analista. Dos Apontamentos para a história de Sergipe, Relatório da Tesouraria Provincial (1860), Limites de Sergipe com a Bahia (1864) e Histórias perdidas (1864), apenas este último – que narra a “história de Simão Dias de carne e osso, e a de Simão Dias de pedra e barro, a história de um homem e a história de uma vila” – chamou a atenção dos intelectuais sergipanos. Chamou a atenção e deu trabalho aos críticos. Jackson da Silva Lima (1986), garimpeiro-mor da literatura local, relacionou as Histórias perdidas com o ofício do “romancista”; Carvalho Deda (1967), “pesquisador diletante” da história de Simão Dias, referiu-se à jóia como uma “composição de sabor histórico-literário”, e o Carvalho Lima Júnior (1927), historiador do século XIX, não teve dúvidas: era obra de história, embora, “às vezes, romanceada.”
Quem quer que se habilite a conhecer essa passagem da história de Sergipe – presença dos holandeses, funcionamento do judiciário, rústicos modos de vida no século XVII, a ação da coroa nos sertões de Itabaiana etc. –, deve resguardar-se de rotular as histórias de Joaquim de Oliveira (pré-história, pós-literatura etc.) e deixar o dezenove falar. Essa atitude compreensiva não impedirá, entretanto, que o leitor identifique nas Histórias o traço ficcional, inventivo e recriador do cristovense, por exemplo, no esforço pela verossimilhança estampado na fala do personagem principal – Simão Dias – como o fez Lima Júnior, e no emprego do discurso direto. Também será difícil não localizar o traço do historiador erudito de meados do século XIX: a pesquisa em arquivos, as fontes cartorárias, as notas em pé de página, o passado pelo passado e somente o passado.
De seguro, todavia, o leitor de Joaquim de Oliveira terá o fato de as Histórias perdidas de Simão Dias representarem um dos primeiros subprodutos da pesquisa histórica pública, ou seja, financiada pelo governo da Província; um marco na escrita histórica sobre Sergipe em Sergipe. A hipótese não é minha. Ela ganha fundamento no comentário de Carvalho Lima Júnior: “o Dr. Joaquim Oliveira romantizou o fato histórico; depreende-se, porém, que não alterou a substância, e que inspirou-se em fonte legítima: os autos da denúncia encontrados em São Cristóvão nas suas pesquisas, talvez quando estudou a questão de nossos limites do Oeste, em 1864, a mandado do presidente da Província, Antonio Dias Coelho e Melo.” (Lima Júnior, 1927, p. 29).
Como “aperitivo poético”, segue-se um trecho das “Histórias perdidas de Simão Dias”, no ponto em que Joaquim José de Oliveira começa a destruir a metáfora que assemelhava o ofício do ficcionista ao do historiador.
“Silêncio!!!...
Estamos em um cemitério.
É um âmbito coberto e fechado, que mede vinte palmos de frente, sobre trinta de fundo, e vinte de altura.
Encostados ao panos das paredes laterais, vêem-se espaços quadrangulares, formados pelo cruzamento de tábuas verticais e horizontais.
Cada espaço é uma sepultura.
Cada sepultura recebe vinte a trinta cadáveres (...)
– Mas, quem são os teus defuntos?
– Esperem, leitores, ouçam: ‘Os meus defuntos só me contam o passado, e ignoram o presente e o futuro, como bons finados que são. Eles me referem os instintos e pequ[en]ices dos nossos avós, seus amores e contendas, sua vida e seus costumes, sua paz e suas guerras, os usos de que usavam, os gostos de que gostavam, o pão que comiam, a roupa que vestiam...’
– Mas, enfim, que defuntos são estes?
– A[r]re! Caríssimos leitores! Tendes uma pressa de quem vai receber da Nationale o seguro de vida após trinta anos. Primeiramente é preciso conhecer o cemitério.
– O cemitério?...
– São os cartórios.
– Oh!...os defuntos?
– São os autos.
– E o coveiro são os tabeliães.
– Está dito: é isto mesmo.” (Oliveira, 1867, in: Lima, 1986, p. 383).
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Entre poeta e historiador. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 17 out. 2004.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumario desta obra, acesse o link: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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