quinta-feira, 21 de outubro de 2004

A Igreja Católica em Sergipe no século XIX


Igreja de Comandaroba, em Laranjeiras – SE
Escrevi, há dois anos, que a historiografia sobre Sergipe no século XIX poderia ser representada por uma tábua de pirulitos. Claro que parafraseava Evaldo Cabral de Melo (1999), para quem a historiografia brasileira era um buraco com uns pontos mais, outros menos aterrados. No caso de Sergipe – mais grave –, determinados períodos e temáticas desafiavam o tempo e os historiadores, impossibilitando, por exemplo, a produção de uma síntese que não tratasse exclusivamente de sucessões e mandatos políticos.
Por que o interesse no século XIX? Não há mistério. O novecentos é o século da invenção de Sergipe. É o tempo da autonomia política, que faz par com independência, separação, identidade, concentração e controle local. Para fabricar essa formação social, a memorialística e as produções literária ficcional e historiográfica tiveram lá o seu papel. Mas, o monopólio da violência foi fundamental. Falar em controle no século XIX, é examinar o desenvolvimento de políticas públicas que envolveram a ação de, pelo menos, três “pês” profissionais: policiais, professores e padres. Tratar de padres, por conseguinte, é tratar da Igreja Católica, que detinha o controle oficial sobre a crença.
A pesquisa histórica profissional ainda não deu respostas significativas sobre os dois primeiros “pês.” Mas, em relação ao “p”, dos padres, párocos ou pastores, as informações começaram a ganhar domínio público ampliado com a defesa da dissertação de mestrado de Péricles Morais de Andrade Júnior, há quatro anos – Sob o olhar diligente do pastor: a Igreja Católica em Sergipe (1831/1926). Em 2002, o terceiro capítulo, que tematiza a criação da “Diocese de Aracaju e a reforma do clero sergipano (1910/1931)”, foi publicado na Revista de Aracaju (n. 9), e agora, em escala nacional – História das religiões no Brasil (Recife: CEHILA/Editora da UFPE, 2004) –, divulga-se o principal texto: “A Igreja Católica em Sergipe no século XIX”.
Nesse escrito, Péricles Júnior descreve, sumariamente, a organização administrativa da Igreja – de uma vigararia e nove freguesias no início do século XIX para trinta e quatro freguesias cem anos depois. Trata também da função dos templos e irmandades e da formação do clero – moldado na Bahia sob a orientação romanizadora (tridentina) do reformista Dom Romualdo Seixas (1787/1860). Desse ponto em diante, o que se vê no texto são as diversas iniciativas do novo clero – “de ‘vida santa’ e ‘ilibada’” – no sentido de disciplinar e purificar as práticas religiosas. Afirma-se que as irmandades e confrarias foram monitoradas; comunitários perderam a autonomia sobre suas capelas; os templos deixaram de funcionar como cemitérios; os cultos aos santos – práticas domésticas (familiares) e públicas (em praça e na rua) – foram restringidos aos párocos e “honrados pais de família” e envoltos em clima de sobriedade. Em síntese, sob o olhar atento ao discurso dos pastores, o que Péricles anuncia acerca do século XIX é a ocorrência de uma mudança de orientação da Igreja e o emprego de um (novo?) padrão civilizador para a educação dos sergipenses.
Não farei considerações sociológicas, se a idéias de “campo” e de “capital simbólico” foram fundamentais para a interpretação do discurso dos clérigos, recolhido nas dezenas de missivas consultadas no APES etc. Apenas, saúdo a iniciativa e sugiro a continuação do trabalho, pondo os olhos, agora (sem a vulgata foucaultiana do “efeito disciplinador”), sobre um outro tipo de discurso: o dos presidentes da Província. Lá, nos relatórios e mensagens, repousam preciosos indícios da importância da missão e também do fardo administrativo que parte desse clero representava para o Estado. Um peso absorvido nos anos 1830, quem têm seu ponto culminante nos anos 1840, com queda abrupta na década seguinte, regredindo progressivamente até a instauração do regime republicano.
A mim, do texto, bastam as imagens fornecidas sobre as práticas religiosas e a resultante da manipulação de uma seqüência de nomes de autoridades eclesiásticas, de datas de criação de freguesias e de costumeiras “reclamações ao bispo”: a sugestão de que a história da devoção católica em Sergipe é também (e, sobretudo) a história de um conflito entre um catolicismo popular e um catolicismo reformado; entre religiosos de formação vária; entre leigos de traços étnicos e de capital econômico diferenciados – conflito esse para o qual  foram chamados a intervir o “aparato policial e as posturas municipais” com o fito de fazer valer os novos “padrões de decoro e de moralidade” do novo clero. (p. 397).
Durante a feitura da dissertação, Péricles Júnior deve ter sofrido os condicionamentos da mudança de área. Ele graduou-se em História, fez mestrado em Ciências Sociais. Não é improvável que tenha ouvido coisas do tipo “a diacronia não nos interessa”, “a pesquisa arquivística não é indispensável” etc. Mas, bem o sabemos: um pé na crítica histórica, na dúvida metódica e no trabalho com fontes coevas, mais que desvirtuar, enriquece a formação desse futuro sociólogo quase doutor pela UFPE, que põe ênfase na atribuição de sentidos sob fórmulas de Pierre Bourdieu.
Não obstante as velhas e compreensíveis lutas identitárias entre sociologia e história, o capítulo sobre a Igreja Católica acrescenta uma boa pá de terra nas crateras dessa desconhecida estrada que é o nosso século XIX. Além disso, credencia o autor para a construção de uma síntese sobre o tema. Atualmente, pela orientação e pela experiência, é o profissional em Sergipe que melhor domina os instrumentos requeridos para essa tarefa.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A Igreja Católica em Sergipe no século XIX. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 21 out. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.


Fonte da imagem:
Foto: Igreja de Comandaroba, em Laranjeiras – SE

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