Gumercindo Bessa (1859-1913) |
José Calazans ficou indeciso quanto ao caráter historiográfico da sua obra (póstuma) – Pela imprensa e pelo Foro – composta de matéria vária, organizada por Prado Sampaio em 1916. Assim mesmo, resolveu relacioná-la em sua “Introdução à historiografia sergipana”. Isso porque nos artigos, produzidos entre as décadas de 1880 e 1910, poder-se-ia reconhecer “alguns aspectos da vida sergipana” e “a intenção de valorizar a Província através dos seus vultos e costumes.” (Calazans, 1992, p. 16).
Não tenho dúvidas quanto ao valor do esforço de Calazans para agregar mais um título à historiografia sergipana e estou convicto da importância dos escritos de Gumercindo para a história local. No entanto, como obra de historiador, Pela imprensa e pelo Foro é escassamente representativa. Gumercindo era crítico “à beça” e uma narrativa para ser historiográfica, naquele período, não se poderia sustentar somente na reminiscência ou no sopro demolidor característico da maior parte dos artigos da citada coletânea.
Vejam-se os textos sobre Tobias Barreto, onde o crítico combate “a canalha literária do império”. Aí ele rememora conversas com o mestre, leituras da obra do ilustre morto e conclui: Tobias não era louco, dogmático, contraditório como afirmaram os seus críticos. Mas, o ícone não saiu ileso. Gumercindo lamentou que tivesse entrado “pela porta larga da metafísica”, na cabeça do venerado intelectual, “todas as ilusões que a dúvida metódica tinha banido.” (Bessa, 1916, p. 6).
A depuração da filosofia do alemão Eduardo de Hartmann, que não soube tirar proveito “dos achados científicos do seu tempo” e de sua pátria; o julgamento da tela “Peri e Ceci”, de Horácio Hora; o virulento ataque à gramática e aos seus cultores também carregaram as marcas desinfetantes daquele que se autodenominava “advogado da roça”. Observem: “A gramática é a aferição da língua medida a côvados, pesada a quilos, distribuída em litros; é a palavra alada, viva, borboleteante, pregada numa tabuleta morta...pelo alfinete de um entomologista das letras” (idem, p. 76).
Até mesmo uma ilustre debutante foi desacatada no dia do seu aniversário. Aracaju “é a mais vagabunda das tataranetas de Pedro Álvares Cabral. (...) Exibe-se adorável nos salões e cata piolhos escondida na alcova.” (idem, p. 80, 81).
No Diário da Manhã, com o sugestivo nome de “Ortigas”, Gumercindo afiou a sua língua sob o pseudônimo de Mafório. De lá, orientado pela leitura de um certo italiano, dissertou sobre a “salubridade das escolas primárias”, assunto, dizia ele, “nunca estudado entre nós.” E qual o desenho traçado sobre a realidade sergipana? Uma tristeza: “renques de bancos toscos, verdadeiros bancos de galerianos, enchem-se de crianças a vozear um clamor monótono de taboadas ou de cartas de nomes, numa esfalfante melopéia de idiotas, em frente de uma mesa com tinteiro, palmatória e mestre ou mestra (...) À roda deles, fechando-lhes o cárcere, paredes sem limpeza, chão poeirento, teto revestido de teias de aranha, um ambiente morno, escuro, abafadiço e triste.” (idem, p. 83).
Ora, Gumercindo “censura, combate e guerreia os maus homens e os maus hábitos, mas reserva-se o direito de aclamar e festejar os acontecimentos propícios e as individualidades meritórias”. Assim, há escritos que demonstram outras facetas. Lá estão o elogio a Fausto Cardoso, os “retalhos” sobre a procissão do Senhor dos Passos, a saudação patriótica ao destróier Sergipe, a apologia ao judiciário – “isento de corrupção”, a “força reparadora dos excessos dos outros poderes”.
Também foram transcritas algumas peças da sua lida no foro, e a série de oito artigos sobre a questão do Acre: batalha em torno da melhor leitura dos códigos em suas últimas edições, do debate sobre sintaxe, semântica, estilo, erros e omissões de erudição. Há, portanto, na obra em tela, reminiscência, instante biográfico, crônica literária, apreciação artística, filosófica etc. Mas, o elemento que atravessa grande parte do livro é a afiada navalha da crítica – faz lembrar o Silvio Romero do século XIX.
Não sei se a obra de Gumercindo resistiria aos seus próprios golpes – não conheço outros escritos, excetuando-se aqueles da coletânea. Também não é meu propósito verificá-lo. Mas, se esse tema atrair o interesse de algum curioso pela história das idéias em Sergipe, o fragmento que transcrevo em seguida ser-lhe-á de grande valia, presumo.
“Que é a seleção, senão a natureza criticando-se e corrigindo-se? E que é a crítica, senão um caso especial da seleção, a seleção consciente, racionalmente dirigida? É assim que eu a compreendo e aplico. O método é simples e eficaz. Confrontar um produto, cientifico ou artístico, com as idéias em voga, com a soma das aspirações do seu tempo é – estou certo – o mais seguro critério para decidir do seu valor, e determinar o qualificativo que lhe compete, conforme esteja aquém ou além de tais idéias e de tais aspirações.
Criticar é demolir e reconstruir. Todo sistema que se não concilia com o espírito do século, que não gravita para a nova orientação científica, está irrecurssivamente condenado.” (idem, p. 45-46).
Darwin e Spencer oferecem o estalão. Gumercindo só não deixou claro quem daria a última palavra sobre o verdadeiro “espírito” de cada século.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Crítico à beça. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 20 jun. 2006.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse o link: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.
Fonte da imagem
Foto: Gumercindo Bessa - <http://www.estanciasergipe.org/estfilah.html>. Acesso em: 8 nov. 2010.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse o link: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.
Fonte da imagem
Foto: Gumercindo Bessa - <http://www.estanciasergipe.org/estfilah.html>. Acesso em: 8 nov. 2010.