sábado, 21 de outubro de 2006

A vulgata histórica nos livros didáticos do PNLD 2005

Detalhe da capa do Guia do livro didático do PNLD 2007. Brasília, MEC (2006).
Este texto trata dos conteúdos do ensino de história. Aqui são examinadas as 22 coleções de livros didáticos de história, inscritas, avaliadas, selecionadas, adquiridas e distribuídas entre 2004 e 2007 no ensino público brasileiro por intermédio do Programa Nacional do Livro Didático – PNLD 2005. A comunicação discorre sobre a definição de conteúdo conceitual, as formas de isolar os conteúdos nos livros didáticos, selecioná-los e mensurar o seu papel na formação da vulgata histórica atual, bem como os modos de organização dos conteúdos em termos de proposta curricular explicitados nos livros didáticos de história. Para dar cabo da empreitada, lançamos mão de práticas da bibliometria, examinando estatisticamente as palavras utilizadas pelos autores e editores nos títulos e sub-títulos das coleções dos livros didáticos de 5ª a 8ª série do ensino fundamental, apresentadas no Guia do livro didático do PNLD 2005.

Primeiras palavras
Os títulos, a exemplo desse aí – “Primeiras palavras” –, são descritores sintéticos dos conteúdos de cada tópico, capítulo ou unidade de qualquer texto. Isso diz a teoria de produção textual. Na prática, o estilo do autor determina que tipo de informação os títulos e subtítulos deverão veicular e com os livros didáticos de história a prática não difere. Certamente, nesses livros do 3º e 4º ciclos (aqui nos referiremos a séries finais), há inovações no vocabulário e na forma de anunciar o assunto: há formas literárias – “Pátria amada idolatrada: eu, tu e eles”, “Subo nesse palco: teatro e democracia”; faz-se uso e abuso do gerúndio – “Entrando no assunto”, “Construindo uma consciência crítica”; “Descobrindo caminhos”;  e evocam-se aberturas retumbantes como: “E a terra conheceu um novo ser”, “Em busca do passado”; “A prole de adão: a primeira humanidade”, bem ao gosto da nova história e da nova pedagogia. Tudo é feito para atrair a atenção do aluno, descontrair as horas de estudo, aproximar-se do espírito e da linguagem cotidiana dos pré-adolescentes e dos adolescentes e, é claro, diferenciar-se do autor/editor concorrente.
No entanto, a grande maioria das iniciativas colhidas nas coleções do PNLD 2004 aferra-se mesmo aos conceitos claros e distintos, às formulações tradicionais do estilo natural, ou seja, frase montada na seqüência sujeito e predicado – ou artigo, substantivo, verbo e complemento –, não dispensando menções a conceitos legitimados de longa data entre os profissionais da história e da memória – “A Europa medieval e o oriente”, “O fim da idade moderna”, “A formação do povo brasileiro”, “Os expansionismos e o auto-desenvolvimento dos povos” e, no máximo, um desdobramento em subtítulo – “Rússia: o comunismo no poder”. A interrogação pedagogicamente problematizadora? Essa é de uso raríssimo. Encontramos menos que uma dezena em mais de 80 volumes analisados. Aí vão três exemplos: “Eta cafezinho bom! Será?”, “Um mundo global. Um mundo mais solidário?”, “A queda do Antigo Regime e o mundo contemporâneo: continuidade ou ruptura?”
Mas o que nos interessa neste artigo não são as formas de titular ou o grau de cumprimento de sua função lingüística. Apesar de indiciárias, como exemplificamos acima, os títulos aqui são evocados como portadores potencialmente significativos dos conteúdos a ensinar. Eles são os herdeiros das frases que, num passado distante, anunciavam os “pontos”, “lições” e “assuntos” a serem ministrados em um programa de ensino. Em suma, os títulos são concebidos neste trabalho como evidências da vulgada histórica em vigor, ou seja, as provas daquilo que pode ser considerado como o núcleo duro da disciplina escolar: os conteúdos explícitos.
Para André Chervel (1990), é esse componente curricular – os conteúdos explícitos – quem diferencia a disciplina escolar de todas as formas não escolares de aprendizagem (a família, a sociedade). É pelo exame do conteúdo que podemos perceber a vulgata pedagógica e os seus desvios mínimos. Chervel também afirma que “em cada época, o ensino dispensado pelos professores é, grosso modo, idêntico, para a mesma disciplina e para o mesmo nível. Todos os manuais ou quase todos dizem então a mesma coisa, ou quase isso” (CHERVEL, 1990, p. 203).
Considerando tal premissa, parto da hipótese de que vivemos um período de estabilidade no ensino de história, ao contrário do que anunciam muitos professores do ensino fundamental, abalados com as mudanças paradigmáticas da ciência da história (mentalidades, cotidianos, representações etc.) verificadas e absorvidas pela Universidade brasileira a partir do início dos anos 1990. Esse período de estabilidade se deve, em grande parte, a três fatores: 1. a descentralização na formatação de currículos e programas nas redes públicas estadual e municipal – não obstante a existência de orientações conteudistas nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o 3º e 4º ciclos; 2. a estabilidade do processo de avaliação promovido pelo PNLD há mais de uma década e a conseqüente legitimação desse processo por autores, editores e, em parte, professores de história; 3. A utilização praticamente solitária dos livros didáticos distribuídos pelo PNLD/FNDE como instrumentos de informação e de formação continuada dos professores de história.
Esse último fator explicita a relevância do nosso empreendimento com as coleções do PNLD/2005. É que na ausência de reflexões da Universidade e de grandes iniciativas de reformas nas políticas públicas para o ensino de história (as reformas fundamentais já ocorreram entre meados dos anos 1980 e meados de 1990), as coleções de livros didáticos distribuídas pelo Estado ditam os currículos, programas e, especificamente, os conteúdos do ensino de história. Mas, o que são conteúdos conceituais? Como isolá-los nos livros didáticos, selecioná-los e mensurar o seu papel na formação da vulgata histórica atual?

Alguns parágrafos sobre conteúdos conceituais em história
É obviedade dizer que os “conteúdos” existem desde que a disciplina escolar foi inventada no Brasil. Mas, abordar os “conteúdos conceituais” é uma atitude do final do século XX, para a grande maioria dos professores. Os Parâmetros Curriculares Nacionais talvez sejam responsáveis pela difusão dos termos conjugados (conteúdos + conceituais), embora a diferenciação esteja claramente apresentada em alguns clássicos da pedagogia há mais de 100 anos. O certo é que não obstante às diferentes idéias de educação escolar (como transmissão, aquisição, apropriação, de cultura, hominização, socialização de indivíduos etc.), veremos que os chamados conteúdos, classificados inicialmente em três, quatro e até cinco tipos, são resumíveis ao conhecido conceito de cultura cunhado por Émile Durkheim: modos padronizados de pensar, agir e sentir. A título de exemplo, citemos Herbert Spencer (1901)  que professava a educação sob o ponto de vista intelectual, moral e físico, John Dewey (1916) – comunicar hábitos de pensar, agir e sentir, Benjamin Bloom (1953) – abordar os domínios cognitivo, afetivo e psicomotor, e até o conhecido psicólogo contemporâneo Cesar Cool (2004) – desenvolvimento de capacidades no âmbito cognitivo, motor, emocional, de relação interpressoal e de inserção e atuação social.
Entre os profissionais das licenciaturas, na grande maioria dos casos (por razões que não importa discutir aqui)[1], a idéia de conteúdo ganha o sentido de apenas uma dessas àreas de desenvolvimento: a intelectual ou cognitiva. Conteúdo tem o sentido de conceito, personificando a idéia de fato histórico, data tópica, data cronológica, nome do personagem, acontecimento na curta, conjuntural ou longa duração. Vê-se, portanto, que tratar de conceitos não é apenas uma tentativa de flanar gratuitamente na empreitada de pesquisa de Andrés Chervel – história das disciplinas. Entendemos que os conceitos são fundamentais para o ensino de história, sobretudo, para pré-adolescentes e adolescentes. Essa posição está ancorada – pedagógica e historiograficamente – na proposta majoritária entre os professores de história de, por um lado, atribuir maior valor, dentro dessa faixa etária, às capacidades cognitivas do aluno e por outro, à finalidade problematizadora do conhecimento histórico de ler o passado dos indivíduos e sociedades a partir das necessidades/inquietações do nosso presente e da nossa sociedade.
Por estas concepções, o aluno de história não apreende literalmente, por exemplo, os fatos históricos da primeira República. Ele é auxiliado a desenvolver competências, habilidades, atitudes e valores que envolvam o conhecimento, compreensão, construção e relacionamento de conceitos. Por estas concepções, o aluno de história não apreende literalmente, por exemplo, os fatos históricos da primeira República. Ele é auxiliado a desenvolver capacidades, competências, atitudes e valores que envolvam o conhecimento, compreensão, construção, relacionamento e a crítica de conceitos. Por mais que reivindiquemos o exame do real e do concreto, sabemos que o mundo à nossa volta só nos é conhecido e conhecível, ou seja, nó nos é acessível por meio de conceitos. Dizendo de outra forma: só compreendemos a vida – a folha caindo, o barulho da ambulância, o troco do pão, a morte de Getúlio Vargas ou a guerra EUA/Iraque – mediante o entendimento e a manipulação de conceitos.
E quais seriam os conceitos fundamentais à vida dos pré-adolescentes, adolescentes, jovens e adultos? Não há consenso entre os pesquisadores, legisladores, professores do ensino de história. Os conceitos são conteúdos e, da mesma forma como os objetivos, as capacidades e valores a serem desenvolvidas, são hierarquizados, selecionados em meio a um jogo de forças que envolvem a elaboração de qualquer currículo: pais de alunos – que são ex-alunos –, alunos, coordenadores pedagógicos, professores, sindicalistas, secretário de educação, diretor de escola, documentos básicos das políticas públicas nacionais e locais para o ensino de história, entre outros.
E quais seriam os tipos de conceito trabalhados nos livros de história para as séries finais do ensino fundamental? Para dar coerência à análise, portanto, partimos de uma noção abonada por grande parte dos pesquisadores do ensino de história: trata-se da teoria que incorpora – entre os vários “elementos para a compreensão histórica” – pelo menos, dois tipos de conceitos a serem trabalhados no ensino de história, visando à formação de uma consciência histórica avançada (BARCA, 2006, p. 108; LEE, 2005, p. 16): 1. Conceitos estruturais da disciplina, ou seja, conceitos considerados como chave para a epistemologia histórica: fonte, prova, fato, causa, continuidade, ruptura, ficção, verdade, tempo; 2. Conceitos substantivos, ou seja, os termos que medeiam a compreensão do mundo no tempo, empregados não somente no entendimento de ações comuns à todas as sociedades – as possibilidades de generalização (poder, governo, agricultura), como também na compreensão da experiência histórica de períodos e sujeitos específicos – alforria, escambo e padroado etc.
No Brasil, mesmo sem reivindicar as pesquisas de Petter Lee, por exemplo, os Parâmetros Curriculares de História (Ensino Médio) da Paraíba diferenciam duas categorias de conceitos para o ensino de história: os conceitos relativos ao estudo da história – tempo, conjuntura, conhecimento – e os conceitos que medeiam a compreensão da experiência histórica – ética, cidadania, identidade. (cf. CALISSI e SILVEIRA, 2005, p. 34-35).
Agora que já sabemos de que tipo de conceitos aqui se trata (conceitos meta-históricos e conceitos substantivos – generalizações e singularidades), voltemos ao nosso problema principal: quais os conceitos dominantes nos títulos de capítulos, sub-capítulos ou unidades dos livros didáticos de história distribuídos pelo PNLD/FNDE entre 2004 e 2007? O que informam os títulos e subtítulos acerca da vulgata histórica em vigor no Brasil?

Títulos, palavras e sinais
Quanto são os títulos? São aproximadamente 900, encontrados em 22 coleções. Se recortados em pedacinhos, o que podem sinalizar? Fizemos essa experiência bibliométrica. Os títulos são compostos por aproximadamente 5.200 palavras. Excluídos os numerais romanos e arábicos, as preposições, artigos, pronomes, conjunções e advérbios, ou seja, mantidos os substantivos, verbos e adjetivos e excluídas as suas repetições esse número cai a 1100 palavras. Observem: são 900 títulos que utilizam um glossário de 1100 palavras. Esse é o vocabulário dos livros didáticos. É aí que encontramos grande parte dos nossos referidos conteúdos históricos, ou melhor, os conceitos meta-históricos e os conceitos substantivos.

Tabela 1 – Glossário dos títulos dos livros
Didáticos de História – PNLD 2005

Indicadores
PNLD 2005
Coleções
22
Títulos
900
Substantivos, verbos e adjetivos
1100
Fonte: BRASIL, 2005.


Peter Lee lembrou a dificuldade de separar um tipo do outro. Mas, podemos ousar em afirmar que os conceitos relativos à episteme da história aparecem – e, obviamente são – em quantidade enormemente inferior aos conceitos substantivos. São eles, história, com 26 vezes ocorrências, e tempo, que aparece 22 vezes, além dos seus demarcadores: século (27 vezes), era (16), idade (13). Sobre os demarcadores de tempo, uma curiosidade: as datas praticamente sumiram dos títulos. Menos que 2,5% identificam períodos por meio de algarismos arábicos e os que assim procedem referem-se exclusivamente aos séculos XIX e XX.

Tabela 2 – Freqüência de conceitos metahistóricos e
substantivos nos títulos dos livros didáticos
de História – PNLD 2005

Indicadores
Freqüência
Conceitos metahistóricos
104
11%
Conceitos substantivos
856
89%
TOTAL
960
100%
Fonte: BRASIL, 2005.
Nota: Foram computados os somatórios dos conceitos com freqüência
igual ou superior a 10.

Quanto aos conceitos substantivos, que nomeiam espaços/tempos/sociedades específicos, também estabelecido o ponto de corte para os que aparecem com 10 vezes ou mais, os campeões de ocorrências são os personagens: Brasil (115 vezes), Mundo (86 vezes), América (49), Europa (43), Roma (32), Grécia (22), África (13), Oriente (12) e Egito (10). Das generalizações, são exemplos: sociedade (34), cultura (32), civilização (14), poder (18), direito (14), política (14), povo (12), imperialismo (10). Dos conceitos que identificam singularidades históricas (instituições, acontecimentos, processos) de curta, conjuntural ou de longa duração, os mais reivindicados foram: guerra (48), revolução (47), império (41), colônia (33), república (32), antiguidade (30), trabalho (29), crise (26), expansão (21), indústria (17), capitalismo (16), idade moderna (16), idade média (15) cidadania (15), conquista (14), independência (14), feudalismo (13), Estado (12), idade contemporânea (12), sistema – feudal, socialista ou colonial (12), reinado (11).
Afora esses conceitos mais citados, é preciso registrar os pares ou classes de substantivos pessoal ou coletivo que continuam relevantes para contar-se a história do mundo, aparecendo quase sempre uma ou duas vezes, no máximo, com raras exceções: bárbaros, indígenas, tupinambá, apaches, apinagé, assírios, chineses, fenícios, egípcios, hititas, hebreus, persas, árabes, muçulmanos, bizantinos, cristãos, protestantes, astecas, negros, holandeses, ingleses, espanhóis, portugueses, paulistas, jesuítas, bandeirantes, germânicos, soviéticos, socialistas, nazistas, generais, coronéis, militares, ricos, pobres, senhores, escravos, fazendeiros, burgueses, comerciantes, operários, grupo e classe. Também são considerados importantes os eventos de duração breve: abolição, apartheid, cangaço, canudos, contestado e as classes de comportamento ou ações: autoritarismo, totalitarismo, trocas, vendas, auto-desenvolvimento, consumo, contestação, conflito, confronto, medo, mentalidade. Excetuando-se esses conceitos mais citados, não nos furtamos de informar os conceitos que perderam espaço – os nomes próprios de pessoas. Apenas Adão, Bonaparte, Cabral e Juscelino (citados 1 vez), Dom Pedro e Vargas (4 vezes) merecem constar na cabeça dos capítulos. Os que pareciam ter ganho, mas não ganharam espaço, foram: mulher (2 vezes) e educação (1).
Conhecidos os conceitos mais recorrentes, vejamos agora como tais conceitos são organizados em termos de proposta curricular – que na prática explicita os modos constitutivos da narrativa em sala de aula: qual currículo proposto pela maioria das obras, para além da classificação sugerida por grupos de coleções (como inicia, periodiza e finaliza a história)?

A história que se conta
A história nos livros didáticos, evidentemente, tem começo meio e fim. É a história do Brasil, a história do mundo, a história da América, como já vimos acerca dos personagens. Mas, quando a aventura humana começa? Primeira constatação (surpresa!): não há consenso entre os manuais. Metade convida à reflexão sobre a ciência da história, convida ao estudo e/ou apresenta os rudimentos do ofício do historiador. A outra metade segue direto para os conceitos substantivos. Desse ponto em diante, há ligeiro domínio da idéia de que a história deve se iniciar pela experiência dos povos sem escrita, da pré-história (6 ocorrências). Mas essa proposta rivaliza de perto com os marcos antiguidade oriental (mesopotâmia, Egito) (4) e do Brasil pré-cabralino (6), do tempo dos indígenas ou no contexto do expansionismo europeu. As demais histórias optam pelos marcos da experiência da América pré-colombiana (3) ou da antiguidade mediterrânea (fenícios, por exemplo) (1). Observem que apenas uma coleção não se inicia dessa forma tradicional: trata-se da coleção que enfoca os jovens e a história.
As formas e os marcos finais da experiência humana narrada também são importantes para o estudo da vulgata histórica que aqui se busca. Quanto a isso, os manuais distanciam-se mais ainda: Brasil, América e Mundo rivalizam-se como protagonistas e cenários dos últimos episódios. O marco temporal, entretanto, varia bastante. A história vai se encerrando ao longo do século XX, no caso do Brasil, com o advento da era Vargas, com a ditadura militar e o processo de redemocratização e apenas uma iniciativa anuncia a experiência brasileira no terceiro milênio. Com a América Latina a escrita se repete. São ressaltados os processos de redemocratização da segunda metade do século XX. Em relação ao mundo, ou seja, a Europa, África e Ásia, enfatizam-se o tempo da nova ordem mundial pós guerra-fria, marcado pelo neo-liberalismo, globalização e sociedade do consumo. Como desvio, entretanto, há uma obra que encerra a história, reivindicando o direito à felicidade.
Vejamos, por fim, como os autores recortam o tempo de forma a dar sentido à experiência humana. Já sabemos que esse tempo pode iniciar-se com a origem dos seres vivos e encerrar-se, como vimos, com a experiência do terceiro milênio. Em termos de periodização, entretanto, podemos constatar o largo emprego da clássica periodização quadripartite para a história do mundo (Antiga, Média, Moderna e Contemporânea) e do recorte tripartite para a história do Brasil (Colônia, Império, República). Essa é foi a prática de 82% das coleções. Podemos também, enfim, afirmar que a perspectiva curricular dominante (64%) e, portanto, consumida por grande parte dos professores brasileiros, é a perspectiva intercalada, ou seja, a organização da história do Brasil, América e Geral em ordem cronológica crescente de forma alternada, segundo o tempo e o espaço característicos a tais experiências. Em seguida, vêm as perspectivas convencional (18%), integrada (9%) e temática (9%).

Considerações finais
O que se pode inferir dessa exaustiva quantificação das palavras e das formas de recortar o tempo? Por hora, elaboramos algumas hipóteses que subsidiarão novas buscas no texto das obras examinadas e servirão de base para a comparação com os resultados da análise efetuada nos livros do PNLD 2008, sobretudo no que diz respeito aos conceitos substantivos: 1. a experiência do econômico definha; 2. os demarcadores de tempo fundados em datas (dia, mês e ano) continuam caindo em desuso; 3. os agentes individuais estão cada vez mais diluídos na experiência coletiva – os grandes homens estão ausentes dos títulos; 4. o politicamente correto afastou quase definitivamente algumas formas clássicas de representar os agentes históricos, como por exemplo “povos bárbaros”; 5. os tempos greco-romanos, tidos como inventores do ocidente, são considerados pedras angulares do currículo; 6. as estruturas clássicas da periodização (os quatro grandes impérios, as quatro grandes idades para o mundo, os períodos Colônia, Império, República para o Brasil) ainda se mantém; 7. a experiência do político é dominante, não somente na escolha dos conteúdos conceituais, mas também na forma de organizá-los em termos de proposta curricular; 8 a fórmula da história intercalada, como antídoto de meados do século XX ao europeísmo ou ao nacionalismo exacerbado em vigor no ensino de história ainda é a opção dos livros didáticos utilizados até este ano de 2007.
No próximo trabalho, compararemos tais resultados como as constatações sobre os livros distribuídos pelo PNLD 2008 e também com alguns estudos sobre livros e programas da década de 1930 (primeira grande normatização para o ensino de história de adolescentes) para verificar permanências e mudanças significativas na vulgata da disciplina escolar história no Brasil ao longo do século XX. Tal estudo pode auxiliar-nos a identificar algumas singularidades da história ensinada e a entender as razões das dificuldades enfrentadas pelos professores e gestores nas tentativas de implementação de mudanças radicais na educação histórica no Brasil.

Referências
AUSUBEL, David; NOVAK, j. e HANESIAN, H. Psicología educativa: um punto de vista cognoscitivo. México: Trillas, 1983.
BARCA, Isabel. Literacia e consciência histórica. Educar, Curitiba, número especial, p. 93-112, 2006.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental – História. Brasília: MEC/SEF, 1998.
BRASIL. Ministério da Educação. Guia de livros didáticos PNLD 2005: História/Ministério da Educação. — Brasília: MEC, 2004.
CALISSI, Luciana e SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. Parâmetros curriculares e história: ensino médio – Paraíba. João Pessoa: s.n, [2005].
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 2, p. 177-254, 1990.
COLL, César e MARTÍN, Elena. Educação escolar e o desenvolvimento das capacidades. In: Aprender conteúdos & desenvolver capacidades. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 13-51.
DEWEY, John. Democracia e educação: introdução à filosofia da educação. 4 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.
DURKHEIM, Émile. Educação e Sociologia. 11 ed. São Paulo: Melhoramentos.
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
LEE, Peter. Caminhar para trás em direção ao amanhã: a consciência história e o entender a história. www.cshc.ubs.ca/viewabstract.php. Capturado em 21 nov. 2005.
MELLO, Maria do Carmo Barbosa de. O labirinto da epistemologia e do ensino de história: um estudo em Recife. Braga, 2006. 330 p. Tese (Doutorado em Educação Histórica) – Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho.
PIAGET, Jean e BARTEL, Inhelder. O pré-adolescente e as operações proposicionais. In: A psicologia da criança. 11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. p. 111-128.
SPENCER, Herbert. Educação intelectual, moral e física. Rio de Janeiro: Laemmert, 1901.
ZARAGOZA, Gonzalo. La investigación y La formación Del pensamiento histórico Del adolescente. In: CARRETERO, Mario; POZO, Juan Ignacio; ASENCIO, Mikel (orgs.). La enseñanza de lãs ciências sociales. Madrid: Visor, 1989. p. 165-177.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A vulgata histórica nos livros didáticos de História: uma aproximação através dos títulos de capítulos e de unidades das coleções do PNLD 2005. Texto apresentado no Encontro Nacional Pesquisadores do Ensino de História. Natal, UFRN, 2006.


Fonte da imagem
Brasil. Secretaria de Educação Básica. Guia do livro didático 2007 : História : séries/anos iniciais do ensino fundamental / Secretaria de Educação Básica. – Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006.

Notas
[1] Sobre as características cognitivas do pré-adolescente (possibilidade de libertar-se do real/concreto, trabalhar com hipóteses, combinar idéias em forma de afirmações e negações empregando o “se”, “então”, “ou...ou”, “ambos” e “nem um nem outro”) ver PIAGET, 1990. Sobre a possiblidade de os indivíduos atingirem os estágios idealizados por Piaget e sairem desses estágios em tempos diferentes, ver MELO, 2006 e AUSUBEL, 1980.  Sobre a crítica à idéia de que os adultos deslocam-se no tempo cronológico mais facilmente que as crianças ver ZARAGOZA, 1989; lee, 2006 e BARCA, 2005.