domingo, 1 de abril de 2007

História do Brasil para crianças: o livro escolar nos primeiros anos da República e a iniciativa de Joaquim Maria de Lacerda

Por volta de 1896, o historiador Manoel Curvello de Mendonça (1870/1914) publicou um depoimento significativo sobre o valor da educação e, especificamente, dos estudos históricos para a consolidação da idéia de República. Em Sergipe republicano (1896), asseverou que o “ensino de história adquiriu largo desenvolvimento” na cidade de Laranjeiras – SE e fez “nascer na alma pura e inteligente dos moços alunos o sentimento ardente das aspirações democráticas.” Trago aqui a fala de Mendonça para ressaltar que, também no final do século XIX, os estudos de história poderiam proporcionar o “esclarecimento” e estimular a “mudança”. Não eram apenas conhecimentos sobre grandes homens, fatos destacados, comprometidos com o estabelecimento da nação.  Assim, por estimular a crítica do tempo presente, a história deveria figurar nos currículos das escolas que educavam os “moços alunos” e os “homenúnculos” da sua época
Mas, como “fazer nascer na alma pura e inteligente dos moços alunos o sentimento ardente das aspirações democráticas?” Que tipo de ensino de história cumpriria esse desejo? anoel Curvello não revela. Sabe-se apenas que o professor do seu tempo possuía duas grandes ferramentas: a própria voz e o livro escolar. A voz daqueles professores do final do século XIX e do início do século XX – em Sergipe, onde nasceu Curvello, ou no Rio de Janeiro, onde fez carreira intelectual –, perdeu-se irremediavelmente. Mas, os “livrinhos” de história do Brasil não. Eles estão depositados em bibliotecas, arquivos e sebos à espera dos seus decifradores.
Nesta comunicação, descrevo apenas uma das iniciativas de didatização do saber de Clio para crianças, que circulavam no Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do regime republicano: a Pequena história do Brasil, de Joaquim Maria de Lacerda (1838/1886),[1] publicada em 1880 e aumentada em 1918 por Luiz Leopoldo Fernandes Pinheiro.[2] O objetivo é estudar o livro escolar em seus componentes estruturantes: os aspectos tipicamente historiográficos, pedagógicos, lingüísticos e os seus modos de impressão. A idéia é colher informações sobre o sentido de conceitos e métodos da história e da pedagogia, o estágio das técnicas de impressão e das formas de tratamento de determinados acontecimentos, como sugere Alain Choppin (s.d.), num tempo em que o ser “criança” ainda não se havia tornado objeto relevante para a psicologia no Brasil.

Um artefato de papel e tinta
Livro didático “não são meramente idéias, sentimentos, imagens, sensações, significações que o texto possa representar. Nem tampouco é o texto em abstrato. Pois esse texto, de que as pessoas normalmente vêem apenas idéias, sentimentos, imagens, etc. é constituído de letras (confeccionadas com tinta sobre papel) segundo uma família de tipo (ou face de tipo ou fonte), que lhes dá homogeneidade.” (Munakata, 1997: 84). Corroborando, então, com a definição do professor Munakata, enfrentemos o primeiro problema: quais seriam as características materiais da Pequena história do Brasil do dr. Joaquim Lacerda?
O livro foi lançado em 1880, mas, na segunda edição (1918), já usufruía dos benefícios introduzidos pela composição em linotipo (1885).[3] A estrutura da obra  contempla o que entendemos hoje como elementos pré-textuais, textuais e pós-textuais.  Compunha-se de capa, falsa folha de rosto, folha de rosto, prefácio, prólogo; texto principal e tábua cronológica; índice geral (correspondente aos atuais sumários) e índice alfabético dos brasileiros ilustres. Observem que não há referências bibliográficas.
Os textos principais – nosso alvo privilegiado – eram compostos pelo tipo romano, da família serifada, em estilo normal, tipo n. 13, com uso parcimonioso da variedade de tamanhos. Observem na figura ao lado (fig. n. 1) o equilíbrio no emprego desses tipos: acima, no cabeçalho, o título do livro e o número da página quase imperceptível. Ele não deve chamar atenção, apenas registrar a origem da lição. Em seguida, o título do capítulo em caixa alta, tamanho 11 e o subtítulo, em linha separada em tamanho 16. O próximo título refere-se ao primeiro tópico do capítulo. Esse é um caso raro do uso de tipo não serifado. Por fim, o conteúdo da lição propriamente dito, ou seja, o texto principal – que deverá expressar as “idéias, sentimentos e imagens”, destinadas às faculdades da “infância brasileira”. Aqui há variação de estilo: o itálico e o normal. O itálico é indicador de interrogação e, ao mesmo tempo, representa a figura do professor. Para o aluno (além de representar o professor), o itálico pode reproduzir a imagem do mestre interrogando-o, nos dias de leitura – nas aulas – ou nos momentos de avaliação – nas sabatinas. Já o tipo normal registra a resposta correta, a sentença que deve ser memorizada pelo aluno, o texto que é de sua responsabilidade ler, reler e conservar de cor. Observem também o tamanho dos tipos do texto principal (n. 13): são relativamente grandes para a ocupação da mancha – 8 palavras, em média para cada linha de texto.
Vejamos agora as ilustrações. São todas em preto e branco e do tipo linear, ou seja, não há ícones que apresentem gradações entre o preto e o branco, passando por várias tonalidades de cinza – como são comuns nas reproduções fotográficas. Aí está uma limitação técnica para baratear o produto, talvez. Vigora então o desenho tracejado. A disposição das ilustrações, porém, cumpre função bastante conhecida em nosso tempo. Elas quebram a monotonia da página ocupada pelo texto escrito, servem de descanso visual e funcionam como atrativo – estimulam a imaginação do pequeno leitor. E mais, elas estão integradas ao texto, mantendo relação direta com o assunto abordado no parágrafo ao lado ou acima. As ilustrações já trazem título, e informação sobre a custódia e a autoria da imagem.
Mas, se as fontes estão relacionadas ao texto, elas devem dizer algo bastante significativo. Sobre o que a iconografia do livro de Lacerda está tratando? A maior parte das ilustrações (71,2%) são do tipo meio busto de homens destacados, a exemplo dessa imagem de Cabral, de Diogo Antônio de Feijó, e Duque de Caxias. As demais representações iconográficas referem-se às cenas históricas (9,1%) (cf. Figuras n. 2, 3 e 4) – a matança do primeiro bispo do Brasil, o grito do Ipiranga, a viagem dos colonos para as minas; fontes históricas (7,6%) – artefatos dos indígenas, padrão português, embarcação do século XVI;  visões panorâmicas de recantos do Brasil (7,6%) – uma paisagem da Paraíba, a península de Itapagibe em 1549, o alcacer da Boa Vista em Pernambuco; e por fim, os mapas e plantas (mapa mundi, plantas das cidades do Recife e da Bahia), que ocupam apenas 4,5% do total de 65 ilustrações. A distribuição das ilustrações também longe está de ser homogênea. Para o tempo inicial da colônia, introduzem-se os mapas, visões panorâmicas estáticas e as cenas da “Transmigração para as minas”. Da segunda metade do século XVIII em diante, inicia-se o desfile dos homens ilustres, Antônio Vieira, Gomes Freire de Andrade, D. João VI entre outros.
O aspecto geral do livro é de sobriedade. Não há vinhetas ou quaisquer tipos de adornos. Os fios são utilizados apenas como sub-divisores de assuntos. Com a ausência de cores, e para não perder em profundidade e legibilidade, as ilustrações que não retratam os homens em meio bustos são limitadas por cercaduras (ou quadros). Há problemas até com a disposição das imagens que excedem a largura da mancha. Observem a limitação da técnica nesse sentido: o leitor tem que girar o livro para examinar as cenas da “descoberta do Brasil” e da “Independência ou morte” – reproduções dos quadros de Aurélio de Figueiredo e de Pedro Américo, respectivamente (cf. Lacerda, 1918: 12 e 94). A capa não é ilustrada e no fundo emprega-se o tom pastel. Em suma, o resultado final desses processos de composição e impressão é um livro que segue um certo padrão para os didáticos: formato 12 x 18 cm; papel couché, e gramatura semelhante aos demais impressos de grande formato (15 x 23 cm), destinados ao público adulto, que circularão na década posterior. Vejamos agora que tipo de escrita histórica foi produzida para esse didático de história do Brasil.

A escrita da história
Acima afirmei que o livro didático “não são meramente idéias, sentimentos, imagens, sensações, significações que o texto possa apresentar”. Ocorre que o texto linear escrito também é componente estruturante do objeto. Na Pequena história de Lacerda ele apresenta-se na forma do diálogo – um diálogo extraído de uma narrativa linear diacrônica. Atentem para esse fragmento que demonstra o processo de didatização da narrativa histórica: vejamos em primeiro lugar o suposto texto original da lição sobre o “descobrimento do Brasil” e ao seu lado a transformação da narrativa em modo questionário.

Quadro n. 1
Transformação do texto linear em modo questionário

Descobrimento do Brazil
Descobrimento do Brazil

O Brazil foi descoberto pelo almirante português Pedro Álvares Cabral
[Tal descoberta] teve lugar a 22 de Abril de 1500, reinando em Portugal el –rei D. Manuel
O descobrimento do Brazil foi um effeito do acaso. Navegava Cabral para a índia, quando, para evitar as calmarias da costa da África, afastou-se tanto d’ella, que veio a avistar do lado do Occidente uma terra desconhecida. (Lacerda, 1919: 11).

P. Por quem foi descoberto o Brazil?
R. O Brazil, foi descoberto pelo almirante portuguez Pedro álvares Cabral.
P. Quando teve lugar este descobrimento ?
R. Teve lugar a 22 de Abril de 1500, reinando em Portugal el-rei D. Manuel.
P. O que deu occasião a este notável acontecimento?
R. O descobrimento do Brazil foi um effeito do acaso. Navegava Cabral para a índia, quando, para evitar as calmarias da costa d’Africa, afastou-se tanto d’ella, que veio a avistar do lado do Occidente uma terra desconhecida. (Lacerda, 1919: 11).


E quanto às “significações que o texto possa apresentar”, que sugere o livro de Lacerda? Obviamente a Pequena história do Brasil homogeneíza a experiência indígena (selvagens), não oferece uma linha sobre a vida dos escravos, encara a história pátria a partir da “descoberta”, ainda fruto de um “acaso”, apresenta o personagem Domingos Fernandes Calabar como o “homem de cor”, “pérfido” e “desertor”, não comenta os feitos administrativos de Pombal, enaltece o trabalho dos jesuítas, anuncia a “Conspiração do Tira-dentes” como o fato mais importante do “governo de Luiz de Vasconcelos” e comemora a destruição de Canudos, “onde um fanático conhecido por Antonio Conselheiro, conseguindo fanatizar grande número de sertanejos (jagunços), formou uma povoação, que afinal se tornou perigosa à ordem pública.” (Lacerda, 1918: 137).
Depois desses comentários, é importante que não sucumbamos à  tentação de condenar a “obrinha” do Dr. Joaquim com base nos avanços da pesquisa histórica universitária contemporânea ou à luz de uma visão classista da sociedade brasileira. Lembremos que o livro foi escrito em 1880 e a edição comentada registra a data de 1918. Além disso, a considerar-se como confiáveis os dados do prefácio da segunda edição, levemos em conta que aproximadamente dez mil pessoas, entre alunos, pais e professores manusearam a primeira edição, e esse número fornece alguma legitimidade às “significações que o texto possa apresentar”. Dizendo de outro modo, é provável que a grande maioria dos adultos concordassem com as teses ali expostas e as fizesse transmitir às próximas gerações.
Outro aspecto relevante para o conhecimento da escrita da história do didata Joaquim Lacerda é a forma de recortar o tempo da experiência brasileira. A rigor, não obedece a nenhuma das clássicas periodizações à disposição no mercado até 1880. Cunha Matos (1839) propôs três épocas, Abreu e Lima (1843), oito; Henrique Bellegarde (1831), seis; e Justiniano José da Rocha (1855), cinco. Lacerda[4] divide a história do Brasil em sete períodos (1500-1580; 1580-1640; 1640-1808; 1808-1822; 1822-1831; 1831-1899; 1889-1906), não coincidentes com as propostas citadas, mas mantém os critérios dominantes até então: as ocorrências político-administrativas. Um exame das subdivisões de cada período pode indicar a sua opção, talvez. É provável que as suas escolhas tenham se pautado pelo programa dominante do velho Pedro II, entre as reformas de Benjamim Constant (1890) e de Carlos Maximiliano (1915). Vejamos:

Quadro n. 2
Listagem dos pontos abordados em cada capítulo/período na
Pequena história do Brasil de Joaquim Maria de Lacerda
Período I
1. Descobrimento do Brasil
Povos indígenas do Brasil
Primeiras explorações da costa do Brasil
2. Aventuras de Diogo Álvares e de Ramalho
Divisão do Brasil em capitanias (1534)
3. História da fundação das capitanias
4. Serviços prestados pelos Jesuítas
5. Segundo governador geral do Brasil (1553-1558)
6. Terceiro governador geral do Brasil (1558-1572)
7. Fim trágico de D. Luiz de Vasconcellos (1570)
8. Divisão do Brasil em dois governos (1575-1577)
9. Quinto governador geral. O Brasil passa para o domínio espanhol (1578-1580)
Período II
1. Estado do Brasil em 1580
2. Sexto governador geral (1583-1591)
3. Sétimo governador geral
4. Sucessores de D. Francisco de Souza
5. tomada da Bahia pelos holandeses
6. Ocupação de Pernambuco pelos holandeses (1630-1654)
Período III
1. Expulsão dos holandeses do Brasil
2. Governadores gerais que sucederam a Barreto de Menezes
3. Expedições dos franceses contra o Rio de Janeiro
4. Guerra com os espanhóis; tratado de S. Idefonso (1762-1777)
5. Vice-reis do Brasil depois da trasladação da séde do governo geral para o Rio de Janeiro
6. Conspiração do Tiradentes
8. Vice-reinado do conde de Rezende e de seus sucessores
Período IV
Primeiros atos do príncipe regente
2. Guerra no Sul do Brasil; anexação da Banda Oriental (1811-182)
3. Revolução de Pernambuco em 1817
Revolução de Portugal em 1820; seus efeitos no Brasil
4. Medidas tomadas pelas cortes de Lisboa a respeito do Brasil
5. Independência do Brasil
Período V
1. Evacuação do Brasil pelas tropas portuguesas
2. Revolução de Pernambuco em 1824
3. Separação da Província Cisplatina, que se constitui em estado independente
4. Fim do reinado de D. Pedro I; sua abdicação
Período VI
1. Minoridade de D. Pedro II; regentes do Império
2. Proclamação da maioridade de D. Pedro II
3. Revolução em S. Paulo e Minas Gerais
4. Pacificação do Rio Grande do Sul
5. Revolução em Pernambuco em 1848
6. Guerra constra Rosas em 1851
7. Questão inglesa em 1862
8. Guerra do Paraguay (1864-1870)
9. Fatos posteriores à guerra do Paraguai
Período VII
Governo provisório
2. Governo do Marechal Deodoro da Fonseca
3. Governo do Marechal Floriano Peixoto
4. Governo do Dr. Prudente de Morais
5. Governo do Dr. Campos Salles
6. Governo do Dr. Rodrigues Alves.

Por fim, é preciso contar um pouco do objeto, stricto sensu, dessa história para crianças: que atores, que motores, que fatos são eleitos para “a execução dos trabalhos escolásticos”? Para Joaquim Lacerda, não existem meios termos – as perguntas e as respostas o indicam coerentemente com a periodização e a listagem dos pontos apresentada no quadro anterior. Os personagens são, por exemplo (para o primeiro período), Cabral, Caramuru, Martim Afonso de Souza, Francisco Pereira Coutinho, Anchieta, Willegagnon, D. Luiz de Vasconcelos e os coletivos Tamoios e Franceses. A tábua cronológica, por sua vez, inserta ao final do capítulo, indica a espinha dorsal da administração a ser retida na memória do aluno: os reis de Portugal atuantes naquele período – D. Manuel, D. João II, D. Sebastião, o cardeal D. Henrique –, e os governadores gerais do Brasil – Tomé de Souza, Duarte da costa, Mem de Sá, Luiz de Brito e Lourenço da Veiga.
Quanto aos fatos, aos “principais acontecimentos”, Lacerda destaca: 1. fundações e construções de cidades e fortes; 2. posses, criações, restaurações de governos e estabelecimento de limites territoriais; 3. batalhas, tomadas, retomadas, conquistas, expedições, derrotas e armistícios que envolvem brasileiros contra estrangeiros e também brasileiros contra os próprios nacionais;  e 4. mortes trágicas de personagens que dominam a cena.
Os motores, as justificativas sobre a sucessão dos acontecimentos, não merecem muito espaço no “livrinho” de Lacerda. Aqui e ali, ele deixa vazar para as crianças a idéia de que a história desenrola-se ao sabor dos vícios e virtudes e humores dos personagens destacados, como por exemplo: a revolução Pernambucana de 1824 aconteceu porque o governador Paes Andrade não quis entregar o governo a Francisco Paes Barreto, nomeado pelo Imperador (p. 98). Quando a ocorrência envolve o coletivo, a resposta pode ser bastante simples: a falta de pagamento da tropa... Para um evento capital, como a Proclamação da República, simplesmente, não há informação sobre causas ou motivações: o fato ocorreu e sem comentários.


Quadro n. 3
Tipificação das questões formuladas na Pequena história do Brasil,
de Joaquim Maria de Lacerda
Questão
Ocorrência
Porcentagem
Quem (pessoa)
81
18,0%
Qual ação (humana)
76
16,9%
Qual fato (acontecido)
58
12,9%
Qual destino (pessoa ou coisa)
55
12,2%
Como
43
9,6%
Quando
34
7,6%
Por que (causa)
19
4,2%
Sim ou não
18
4,0%
Quem (coisa)
16
3,6%
0 que sucedeu (conseqüência)
12
2,7%
Onde
7
1,6%
Qual vantagem (para o Brasil)
6
1,3%
Qual função (da expedição, do homem)
5
1,1%
Qual vitória
3
0,7%
Qual projeto
3
0,7%
Quanto (tempo)
2
0,4%
Outras questões
11
2,2%
Total
449
100%

Como, então, se configura o texto do historiador após eleitas as prioridades, selecionados os recortes temporais, fatos e personagens da história do Brasil? Agora fica bem mais fácil entender o tom monótono da leitura (monótono para o apreciador adulto do século XXI). Não há como fugir às interrogativas clássicas: quem foi, quais foram, que foi, por que foi, como foi, quando, que aconteceu de mais “importante”, “notável”, ou “particular” no governo, período, administração etc., deste ou daquele personagem de renome. Sem dissipar-se da cultura histórica do nosso tempo, o leitor de hoje chega à conclusão de que o texto é eminentemente descritivo e repetitivo. Apesar de linear e diacrônico, de seguir a ordem lógico-cronológica, o narrador (?) parece estar sempre interrogando ao alunos sobre as mesmas coisas: como se chamava? Qual fato aconteceu? Que ação foi providenciada? Qual o desfecho dessa ação humana ou fato histórico? Observem no quadro acima que as questões que discutem causa e conseqüência são visivelmente minoritárias e isso nos leva a indagar: estaria o Dr. Lacerda poupando os seus pequenos leitores de uma suposta habilidade que eles não poderiam dominar (a compreensão de causas e conseqüências)?
 As respostas para cada questão também são simples e objetivas. De período único, termos dispostos em ordem direta, vocabulário prosaico e rara adjetivação, os textos são ainda construídos sob normas, digamos, eruditas, que não dispensam o uso de sofisticações com o tempo verbal mais-que-perfeito e o emprego da ênclise. Dessa descrição sumária do texto, portanto, da impressão de excessiva simplicidade, da monotonia provocada pela escrita, somos levados à segunda indagação: e o texto da Pequena história do Brasil era mesmo para ser lido? Como fazer uso de um livro cujo conteúdo é administrado em pequenas doses?

Uma pedagogia para a infância
A hipótese aventada aqui é a de que o didático deveria ser lido, mas de um modo particular para o período. O texto poderia ser recitado, quase cantado, como se fazia até há pouco com o estudo da tabuada, nas aulas de aritmética:
Vamos agora estudar a casa do dois: duas vezes dois?
- Quatro!
- Duas vezes três?
- Seis!
- Duas vezes quatro?....
Recitado em sala ou recitado em domicílio do aluno; tomada a lição pelo professor, pelo pai ou pelo irmão mais velho, a musiquinha é o que logo vem à lembrança quando se imagina que tipo de relação mantinham o aluno e o professor com aquele recurso didático. Para a sorte desta pesquisa, o último leitor – que pode ter sido uma professora – deixou marcadas as datas de tomada de boa parte das quarenta e cinco lições: os “Povos indígenas” devem ser estudados em 12 de janeiro de 1922; as “Primeiras explorações da costa”, no dia 15 do mesmo mês; no dia 17 de janeiro, as “Aventuras de Diogo Álvares”, lição esta que abrangia as seguintes questões: “Que naufrágio memorável se deu em 1510” até a “Que acolhimento encontraram eles [Caramuru e Paraguaçu] em França?” Seguindo os vestígios de dona Cacilda Fernandes, que fez as devidas anotações no didático,[5] pode-se dizer que o livrinho do Dr. Lacerda deveria ser consumido em dois anos e o melhor de tudo (ou o pior, a depender do interesse e do ângulo de quem observa): se examinarmos como a leitora demarcou esta lição sobre Caramuru e outras lições no decorrer dos anos 1922 e 1923, poderemos inferir que essa professora (aluna ou mãe de aluna...) desconsiderava o “ponto” (a subdivisão do período/capítulo) como unidade de leitura. O que estaria em pauta era não mais que a capacidade de retenção do aluno, medida em número de questões, em quantidade de linhas do texto. Por esse raciocínio, importaria a memorização do texto dentro da seqüência original (lógico-cronológica) prescrita pelo Dr. Lacerda.

Conclusões
O que se pode dizer, então, acerca da pedagogia da história sugerida pela obra do dr. Lacerda (e aqui já vou finalizando)? Três considerações devem ser feitas. Em primeiro lugar, a forma dialogada com que realiza o trabalho do historiador fornece indícios do principal caminho encontrado pelo professor para ministrar a sua aula às crianças daquele início de República: o método socrático, o método dialogado, de perguntas e respostas ou o método da interrogação. Registre-se, todavia, que a estratégia do diálogo, não obstante ter sido conservado na memória dos professores como o método professoral por excelência – o velho método, o tradicional, jesuítico, eclesiástico, o socrático – nada guarda em semelhança com o seu ancestral posto em prática na Grécia clássica, tampouco em algumas propostas universitárias do século XXI.[6] Da forma como está configurado na Pequena História do Brasil, a estratégia do diálogo pressupõe um texto a ser transmitido pelo professor e memorizado pelo aluno. Parafraseando Sócrates, poder-se-ia dizer que a criança, antes mesmo de começar a lição, já “sabe que nada sabe” e, dificilmente, poderá “parir uma idéia” que não tenha sido objeto prescrito no currículo do primário – o ponto-tese. Isso nos leva ao segundo ponto: a concepção de psicologia educacional.
Se o texto histórico é construído em bases simples, tanto em termos de ordenação, modo explicativo, de vocabulário, pontuação e extensão das frases; se, ainda, esses mesmos textos (dizemos hoje, conteúdos conceituais) são dispostos em indagações capitaneadas pelo professor, pode-se identificar aí o traço mais explícito de uma psicologia fundada na concepção de faculdades mentais, onde o ensinar é fazer exercitar as faculdades da criança, notadamente a faculdade da memória. Visto dessa forma, o texto histórico (o trabalho do historiador) distribuído em questões e respostas não é um construto elaborado para posterior memorização/verificação: ele é a própria representação das faculdades mentais (sobretudo, memória) em exercício pleno
A terceira e última consideração, por fim, é fruto dessa idéia de como funciona a mente da criança nas três primeiras décadas da República no Rio de Janeiro. Se o método de ensino indica a indagação sistemática, sucessiva e cumulativa para pôr a criança em permanente exercício, a idéia de aprendizagem que lhe segue é a de que aprender é memorizar. Ao assinalar as datas desconsiderando o “ponto”, a “lição” – a subdivisão do capítulo do livro de Lacerda – a leitora Cacilda Fernandes oferece indícios de que a medida da aprendizagem era dada pela quantidade de respostas retidas pelo aluno, na seqüência lógica fornecida pelo texto. A compreensão histórica – seja na forma de conhecer o pensamento e entender a ação dos homens no passado (cf. Lee, 2003: 20-21), ou de vivenciar, interpretar e utilizar o passado em sua vida prática (cf. Rusen, 1992: 34), como se passou a reivindicar a partir dos anos 1930 – estava muito distante do construtor do manual e, mesmo, do professor de história para as crianças nesse caso em particular. Aqui, o sentido de compreensão estava mais próximo da palavra empatia – nascida no decorrer das lições sobre determinadas ações de destacado personagem.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. História do Brasil para crianças: o livro escolar nos primeiros anos da República  e a iniciativa de Joaquim Maria de Lacerda. Cadernos de História da Educação, Uberlândia, n. 6, p. 121-132. jan./dez. 2007.
Referências
BATISTA, Antonio Augusto Gomes, GALVÃO, Ana Maria de Oliveira, e KLINKE, Karina. Livros escolares de leitura: uma morfologia (1866/1956). Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 20, p. 27-47, mai./ago. s.d.
GUILHERME, Faria. Pequeno dicionário de editoração. Fortaleza: Editora da UFS, 1996.
LACERDA, Joaquim Maria de. Pequena história do Brasil por perguntas e respostas para uso da infância brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1918. [Publicado pela primeira vez em 1880].
LAGOA, Sérgio. Mitos do ensino na filosofia. Mito 6: Sócrates. www.criticanarede.com/fil_mitosensino.html. Capturado em 12 nvo. 2005.
LEE, Peter. “Nós fabricamos carros e eles tinham que andar a pé”: compreensão das pessoas do passado. In: BARCA, Isabel (Org.). Actas das Segundas Jornadas Internacionais de Educação Histórica. s.d.t.: Universidade Minho, 2003. p. 18-36.
MARTINS, Wilson. A palavra escrita. São Paulo: Anhembi, 1957.
MENDONÇA, Manoel Curvello de. Sergipe republicano e histórico: estudo crítico e histórico. Rio de Janeiro: sn., 1896.
MORAES, Marcia Regina Mendes Nunes de. Psicanálise e educação: pensando a relação professor-aluno a partir do conceito de transferência. Revista de Psicologia, Santo André, v. 9, n. 10, p. 68-80, jul. / dez. 2004.
MUNAKATA, Kazumi. Produzindo livros didáticos e paradidáticos. São Paulo, 1997. Tese (Doutorado em História e Filosofia da Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
REICH, Rob. El método socrático: qué es y cómo debe usarse em el aula. www.pucp.edu.pe/cmp/docs/metodo_socratico. Capturado em 12 nov. 2005.
RODRIGUES, José. A periodização na história do Brasil. In: Teoria da história do Brasil: introdução metodológica. 3 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. p. 125-144.
RUSEN, Jorn. El desarrollo de la competencia narrativa em el aprendizaje histórico. Uma hipótesis ontogenética relativa a la conciencia moral. Propuesta Educativa, s.d.t., n. 7, p. 27-36, out. 1992.
SMITH, JÚNIOR, Datus C. Guia para editoração de livros. Recife: Editora Universitária da UFPE; Florianópolis: Editora da UFSC, 1990.
WARDE, Mirian Jorge. Para uma história disciplinar: psicologia, criança e pedagogia. In: FREITAS, Marcos Cesar de (Org.). História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997. p. 289-310.



[1] Para Circe Bittencourt, Joaquim Maria de Lacerda era “um autor religioso” que na década de 1880 havia escrito várias obras para o ensino elementar. A pesquisadora afirma ainda que “o falecimento do autor não diminuiu a venda de suas obras, conforme atestam os catálogos que indicam as ‘atualizações’ realizadas por outro autor em seus textos originais”. (Bittencourt, 2005). A Biblioteca Nacional ainda guarda a 11ª edição da Pequena história do Brasil (1899) e também a Pequena geographia da infância: composta para uso nas escolas primárias, nona edição, revista e melhorada (1898), e o Curso methodico de geographia phisica, politica, historica, commercial e astronomica: composto para uso das escolas brazileiras, nona edição, melhorada (19--), todos editados pela H. Garnier.
[2] Nada encontrei até o fechamento deste artigo sobre Luiz Leopoldo Fernandes Pinheiro. Foi imortalizado como nome de rua no Rio de Janeiro (Professor Luiz Leopoldo Fernandes Pinheiro). Um certo Luiz Leopoldo Fernandes Pinheiro Júnior publicou Tipos, quadros e sonetos, no Rio de Janeiro em 1886. Não sei se é o mesmo professor Leopoldo. (cf. www.machadodeassis.org.br/obra).
[3] Processo de composição em que as linhas de texto “são fundidas à medida que vão sendo digitadas num teclado.” Diferente dos “tipos móveis, em que cada palavra, cada frase, cada parágrafo e cada página são montados letra por letra, manualmente.” (Munakata, 1997: 82; cf. Smith Júnior, 1990: 95-96).
[4] Na verdade, não é o Lacerda quem divide a história do Brasil em sete partes, posto que o mesmo faleceu em 1886. É provável que Olavo Bilac tenha refeito a periodização, ampliando o sexto e acrescentando o sétimo segmento em 1905. (cf. Batista, Galvão e klinke, sd.: 11).
[5] O registro autógrafo vem na folha de guarda: “Cacilda Fernandes, Rio, 22-11-1921.”
[6] Para a crítica e orientação da aplicação do método socrático como meio de ensino, ver as duas posições que se seguem: 1. “Na verdade, o método socrático pode ser considerado uma falsa concepção de interesse, ao lado dos métodos atraentes e dos métodos coercitivos. É que falta saber se as perguntas efetuadas no âmbito do método socrático são antes de mais oratórias ou se trata verdadeiramente de pequenos desavios lançados à sagacidade dos alunos. Resta também saber se o aluno tem na verdade o direito de responder. Parece-me que, na esmagadora maioria dos casos, os professores que praticam consciente ou inconscientemente o método socrático pretendem apenas satisfazer as seguintes funções: captar a atenção; retê-la quando esta parece escapar; fazer voltar o silêncio e restabelecer as disciplina; introduzir uma noção ou relembrá-la; fazer com que a criança reflita sobre ela ou mesmo que afixe; pretexto para obter a ‘bela frase completa’.” (Lagoa, 2005: 1). 2.”Hai que enfatizar que el método socrático no consiste em ‘enseñar’ em el sentido convencional de palabra. El director de la investigación socrática no es el portador de conhocimiento, que llena las mentes vacías de alumnos ostentosamente pasivos com hechos y verdades adquiridas a lo largo de estudio. Tal como dirían los miembros de la Faculdad de Educación, ‘el profesor socrático no es sabio ubicado em escena’. Em el método socrático, no hay lecciones ni tampoco hay necesidad de memorización. Pero tampoco es el profesor socrático ‘el guía que camina a nuestro lado’, como se pudiera sospechar.” (Reich, 2003: 1).

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