Um leigo, visitante de outro Estado, chegando a Aracaju no mês de junho, certamente observará vários grupos uniformizados, alguns até desgarrados, perambulando pelas ruas durante a madrugada, no centro e nos bairros e ficará intrigado. Para onde vão todas essas pessoas? O que as faz vestir a mesma roupa – muitas vezes não enxutas a tempo – saírem todas as noites e chegarem ao fim da madrugada? Claro que para a segunda pergunta interpelar os andarilhos seria o procedimento adequado. Posso garantir que os motivos alegados seriam infinitamente díspares. Mas, quanto à primeira indagação, podemos fornecer uma luz: os quadrilheiros andarilhos vão à festa, ou melhor, estão fazendo a festa.
Quem se enfeita tem o objetivo de mostrar-se tanto mais, para apresentar-se na festa da Associação de moradores, no clube da empresa, nos hotéis, nos asilos, orfanatos, na Penitenciária Estadual, nas casas dos próprios quadrilheiros e nos espaços oficiais reservados aos festejos. Cada evento desses possui os principais ingredientes de toda a festa que se preza: comida, bebida – nem sempre em abundância – e muita música. Raramente a Quadrilha é remunerada. Em geral, o quadrilheiro pulveriza o salário dos meses de maio e junho nesses eventos. Os minguados reais vão-se em forma de churrasquinhos, doces, hot-dog, balas, às vezes, pamonhas e canjicas e, freqüentemente, milho verde e amendoim. A propósito, são conhecidos os resultados da tríade formada pelo quentão, frio e amendoim. Não importa o caráter do evento para o qual foi convidada a Quadrilha. Mesmo nas mais comportadas festas, como a da Associação do Servidores do Ministério Público, os quadrilheiros fazem o seu ambiente. Afinal, um grupo composto por quarenta pessoas, após a apresentação e alguns goles, não precisa de muito estímulo e permissão para “fazer a festa”.
Mas, o evento onde o quadrilheiro realiza-se é mesmo o concurso de quadrilhas. Ele pode ser organizado por comitês de rua, como presenciei na rua Vitória, no Conjunto Lourival Baptista, nas ruas Carlos Correia e Pernambuco, e no alto do Miolo. Podem ser concursos promovidos pelas prefeituras do interior do Estado como as de Cristinápolis, Estância, Rosário do Catete, Nossa Senhora do Socorro. Os concursos podem ter fama de tradicionais, como os da rua de São João, outros nem tanto, com o do Shoping Center Riomar. Em qualquer canto, onde haja um trofeuzinho em disputa, lá estará o marcador e seu grupo, brigando – literalmente falando – e fazendo a festa.
À propósito, luta corporal é um elemento constante nesses eventos. Tiros, facadas e sopapos não são raros no final de cada noite de concurso. As brigas ocorrem entre membros do mesmo grupo, entre grupos, principalmente, envolvendo quadrilheiros e jurados. As confusões provocadas pelas disputas foi um dos motivos que levaram os organizadores de concurso a não divulgarem os resultados na mesma noite da competição. Preservar a integridade física de quadrilheiros, jurados e organizadores dos concursos ficou muito mais fácil após essa medida. Essa modificação, introduzida a partir de 1992, não foi o suficiente para evitar uma verdadeira batalha ocorrida entre dezenas de crianças – entre seis e quatorze anos – na final do Concurso de Quadrilhas Mirins da Rua de São João (1994), onde entraram em confronto as quadrilhs Arrasta-pé, do Conjunto Lourival Baptista, e Século XX, do bairro Brasília. Por incrível que possa parecer, desconheço qualquer caso de morte ou incapacidade física, resultante de brigas em concurso, por motivos ligados aos resultados desses certames.
A razão das brigas são óbvias: acusações de parcialidade dos jurados, de roubo de notas e formação de pactos entre os mais fortes concorrentes para a divisão dos prêmios. Enfim, as lutas tem origem na maneira como são geridos esses concursos: da pluralidade de critérios de julgamento, da subjetividade dos quesitos a serem observados, questões sobre as quais debatem-se em outro nível de discussão os folcloristas e antropólogos.
Esse aparente caos em torno dos resultados dos concursos é responsável por um fenômeno que há anos venho chamando de gangorra da fama, ou seja, o fato de que nenhuma Quadrilha consegue sustentar-se em primeiro lugar por vários anos, mesmo na época em que o ranking – iniciado em 1990 por força da Liga dos marcadores – não existia. A gangorra da fama, pela qual já passaram as quadrilhas Rasta-Pé, Chapéu de Couro, Forró da Maranhão e Arrasta-Pé, é alimentada, digo, movimentada por esse cultivo das rivalidades entre as quadrilhas. Ela é sustentada pela cumplicidade dos marcadores com algumas fraudes escandalosas, pela relativa passividade dos quadrilheiros na aceitação dos resultados, alimentando a esperança de que “no próximo ano ganharemos... será a nossa vez”.
Voltando ao nosso visitante de início, diria ele, após algum tempo de familiaridade com os concursos, “eu não entendo como essas pessoas brigam tanto, desvendam a corrupção das disputas e, no ano seguinte, estão nos mesmos locais, enfrentando os mesmos adversários e, às vezes, sob os olhares dos mesmos julgadores”. Confesso que a explicação em duas laudas pode não ser tão esclarecedora quanto o disparate que colhi de um quadrilheiro, no momento em que lastimava a segunda derrota consecutiva no concurso da rua de São João: “O melhor do dominó é a resenha. Se não for assim [se não houver a briga após o resultado], não tem gosto”. Os quadrilheiros parecem criar os obstáculos que vão movimentar o seu cotidiano.
Tratando de rua de São João, pode-se dizer que esse é o principal concurso do Estado. Importante pela antiguidade e pela atmosfera produzida durante os festejos. Ela já foi considerada a maior praça de espetáculos juninos de Aracaju. Foi também a que premiava com os maiores troféus e o local de desfile obrigatório das autoridades políticas. Foi também importante pelo nome do padroeiro e pelo número de quadrilhas numa mesma disputa – até sessenta quadrilhas.
O concurso da rua de São João é um símbolo para o quadrilheiro. Vencê-lo é a maior glória que se pode alcançar na festa. Uma mostra da importância do evento pode ser medida pela constituição de uma comissão de quadrilheiros para mantê-lo em 1994. Organizado há dezenas de anos, o concurso perigava desaparecer por problemas que envolviam a política partidária e acusações de mau uso de verbas. Os quadrilheiros, junto a outros moradores, guardaram os rancores, sacrificaram algumas datas, disputaram e “aceitaram” o resultado do concurso de.
A rua de São João é ambiente glamouroso para o quadrilheiro. Depois da dispersão do público pelos espaços festeiros do Gonzagão, dos barracões culturais, das casas de forrós dos arraiais financiados pelo poder público, por parlamentares e empresários, enfim, depois do investimento maciço do Estado nesse tipo de festa – astuciosamente executado por Jackson Barreto e Antônio Carlos Valadares – o público da rua de São João vem sendo garantido quase que, exclusivamente, por conta das quadrilhas.
Essa proeminência estimulou o surgimento de vários concursos pela cidade. Alguns nasceram por imitação, outros por oposição de diferentes comunidades ao movimento da rua de São João. Hoje, são considerados concursos importantes aqueles indicados pela Liga de Marcadores: o concurso da Sociedade Comunitária do Bairro Siqueira Campos e o concurso do Centro de Criatividade Governador João Alves Filho.
Concluindo, não se pode conhecer a Quadrilha em Aracaju sem levar em consideração a disputa e a rivalidade nos concursos. Eles merecem estudo apurado ou no mínimo um registro de suas organizações, somente permitido por intermédio da oralidade. É necessário registrar as normas de apresentação, os critérios de julgamento, os calendários, as quadrilhas participantes, as formas de premiação, os eventos paralelos – escolha da Rainha do Milho, concurso de sanfoneiros, casamento caipira, troca do mastro – os shows dos grupos musicais e dos apresentadores de quadrilhas. Por falar em apresentadores, é preciso que se faça justiça ao mais conhecido apresentador dos últimos vinte anos da rua de São João. Trata-se do Senhor Gama. Boa parte do charme do concurso da rua de São João, com certeza, deve ser creditada a essa grande figura que abre as apresentações com o seguinte bordão: “Atenção boleirooos! E, com vocês, na noite de hoje, Quadrilha...”
Para ler os demais capítulos dessa obra, acesse:
Sumário
- Para início de conversa
- O que é Quadrilha
- A dança
- A música e os Trios
- O traje
- A organização dos quadrilheiros
- Os marcadores
- Os concursos de Quadrilha
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Itamar Freitas. itamarfo@gmail.com
Para citar esse texto:
FREITAS, Itamar. Os concursos de Quadrilha. In: Sete notas sobre quadrilhas juninas. Aracaju: Nossa Gráfica, 2007. pp. 51-56.
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