Escola Normal da Praça da República (São Paulo-SP), no início da década de 1920. Foto: USP. |
Mas, sair do profissional – pedagogo, educador – para a área de conhecimento ou para a disciplina – pedagogia, educação – não modifica o estado do problema. A ambigüidade se mantém, embora com questões bem mais difundidas: o que era pedagogia no tempo da primeira República? Em que consistia esse saber codificado por Johan Friedrich Herbart (1776/1841)?[1]
No rastro da(s) pedagogia(s)
Com bastante propriedade, Mirian Warde afirma que “nenhuma disciplina ou ciência constitui sua identidade de uma vez para sempre e nem mantém, ao longo do tempo, as mesmas referências, os mesmos problemas ou orientações da pesquisa” (Warde, 1997, p. 292). Portanto, se se quiser conhecer a trajetória da pedagogia no Brasil, será necessário compreender, sobretudo, o modo como seus profissionais são formados, como se profissionalizam (Cf. Lepenies, apud. Warde, 1997, p. 292) e as relações entabuladas com outros campos de conhecimento, também freqüentemente em mutação.
Agindo dessa forma, não será difícil constatar que a história da pedagogia disciplina/ciência contempla uma diversidade de conflitos religiosos, políticos, institucionais que variam com o país, a sociedade, a universidade, a escola ou o curso de formação de professores que se queira pôr os olhos. Em outras palavras, examinados os debates sobre o caráter científico da pedagogia, no período pós-Herbart[2], teremos tantas pedagogias quanto o número de teóricos destacados nesses estudos: Alexandre Bain, Herbert Spencer, Èmile Durkheim, Edouard Claparède, John Dewey e Eduard Lee Thorndike – somente para ficar com os maiores formadores de opinião – o que indica, de início, a impropriedade da busca da unidade epistemológica para esse novo campo.
Esse relativismo, essa pluralidade das condições de possibilidade na construção da pedagogia científica não deve, porém, inutilizar os esforços de uma história do saber. Em meio à diversidade de experiências vivenciadas por esses autores, que resultaram na classificação da pedagogia como ciência prática, ciência teórica, arte, campo de ação da psicologia, dando-lhe os nomes de educação, ciência da educação, ciências da educação, arte de ensinar etc., é possível identificar, ao menos, dois movimentos característicos. O primeiro, é a relação pendular da pedagogia com a filosofia – de cunho metafísico ou de cunho naturalista etc.; o segundo, é o grau da relação estabelecida com a psicologia – que vai da aliança à submissão – bem como o tipo de psicologia reivindicado para tornar científica a pedagogia.
Esses dois movimentos são bons indicadores sobre as identidades da pedagogia em solo brasileiro. Eles ajudam a compreender as dicotomias presentes nos cursos normais e materializadas em manuais para uso dos professores e nos programas das disciplinas: pedagogias mais centradas nos fins (pedagogias gerais) ou nos meios (pedagogias específicas); centradas na filosofia da educação ou nas metodologias de ensino; no saber-fazer cotidiano ou nos modernos processos didáticos; enfatizando a relevância do meio social ou enfatizando os mecanismos psíquicos do aluno etc.
Ambos foram contemplados pelos estudos que tentaram sintetizar a história da pedagogia em solo pátrio – ainda que não tenham sido os seus objetos originais, insistindo na abordagem epistemológica da pedagogia. (Cf. Libâneo, 2000; Carvalho, 1997 e 2001). Um dos pontos consensuais que se pode extrair desses textos de bases teóricas tão distintas é a constatação de passagens datadas – de uma pedagogia “eclética” para uma pedagogia “tecnicista” – no caso de José Carlos Libâneo –; de uma pedagogia “corretora” para uma pedagogia “molde” – para Marta Carvalho. Ao fundo, a mesma periodização ou, pelo menos, os mesmos divisores de águas – os anos 1920, os nomes de Lourenço Filho e Sampaio Dória (para Carvalho) e de Lourenço Filho, Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo (para Libâneo), o sucesso da psicologia experimental e a “profissionalização dos cursos normais – como já havia sido apontada por Azevedo em sua Cultura brasileira e detalhada por Jorge Nagle (2001) em sua tese de livre-docência. Enfim, o que distinguiu a última década da primeira República em relação às precedentes foi a preocupação bastante vigorosa em “pensar e modificar os padrões de ensino e cultura das instituições escolares nas diferentes modalidades e nos diferentes níveis: ... a ampliação do nível de formação, os primeiros sinais de articulação com o ensino médio e o alargamento do ciclo profissional, a introdução de princípios e técnicas do escolanovismo.” (Nagle, 2001, p. 283).
Todavia, não obstante as silimitudes entre os dois textos, na mudança de escalas, ou seja, do exame “em largos traços” para a investigação sobre experiências dos cursos normais e da literatura educacional produzida no Rio de Janeiro e em São Paulo etc., é Marta Carvalho quem melhor delineia o que se estava reivindicando como pedagogia científica ao examinar a trajetória dos discursos “que buscaram legitimar-se como saber pedagógico de tipo novo, moderno, experimental e científico.” (Carvalho, 1997, p. 270; 2001, p. 138-139, grifos da autora). Para Carvalho, o processo de legitimação da pedagogia como saber científico no Brasil contempla dois momentos. O primeiro se dá com a criação da cadeira de psicologia aplicada à educação, a instalação do gabinete e do curso especial de antropologia e psicologia pedagógica – ministrado pelo italiano Hugo Pizzoli. Essas iniciativas de Oscar Thompson, então diretor da Escola Normal (SP) em 1914, elegeram a psicologia – psicognóstica e pedotécnica – como saber responsável pelo caráter científico da nova pedagogia.[3]
O segundo momento é menos caracterizado como de mudança de paradigma científico e mais como mudança de ordem política – embora sejam, ambos, processos de disciplinarização social. Para Carvalho, nos anos 1920, com o “problema nacional” detectado pelos ‘entusiastas da educação’, a “pedagogia deixava-se impregnar pelos novos ritmos da sociedade técnica e do maquinismo.” Regenerar o povo através da higiene – saúde – e da educação era uma “alternativa aos impasses postos pelo determinismos raciais – a impossibilidade de progresso num país mestiço. Assim, “disciplinar não é mais prevenir ou corrigir. É moldar... Eficiência era o novo nome da disciplina.” (Carvalho, 1997, p. 285-287).
Num segundo texto, Carvalho mantém a periodização e o argumento. A análise dos discursos continua orientando a pesquisa sobre a cienficização da pedagogia, mas o objeto agora é a literatura pedagógica, ou melhor, “duas modalidades de configuração material de impressos destinados ao uso de professores” que visam a conformação das práticas escolares (Carvalho, 2001, p. 139). Num primeiro momento – tempo que se estende de 1892 a 1925 – a pedagogia foi compreendida como “arte de ensinar.” Era uma pedagogia “fundada no princípio de que ensinar a ensinar é fornecer bons moldes e de que aprender a ensinar supõe ter visto fazer.” (idem, p. 143, grifos da autora). Daí, a proliferação de revistas e manuais de pedagogia com larga oferta de modelos e lições. Esse período tem os seus ideólogos – Caetano de Campos e Oscar Thompson. Na década de 1920, porém, começou a vigorar a “pedagogia da escola nova.” Seu grande idealizador foi Lourenço Filho. A nova pedagogia visava constituir “a cultura pedagógica do professorado” por intermédio de coleções que forneceriam “um repertório de informações e de referenciais críticos para o professor, orientando-lhe a leitura como prática inventiva rebelde à prescrição de modelos.” Marta Carvalho alerta que a mudança nos discursos sobre a pedagogia científica “deu-se em duas direções distintas, mas complementares: a de um progressivo didatismo e a de uma hiper-valorização das ‘ciências’ da educação como fundamentos da prática docente. Nesse processo, o impresso pedagógico se didatiza em uma proliferação de discursos sobre os métodos ou sobre os fundamentos da prática docente.” (idem, p. 157).
Conhecidos os marcos, atores, periodização e idéias dominantes acerca dos saberes pedagógicos, verticalizemos, então, a estratégia de Marta Carvalho, pondo os olhos em dois lugares de produção: os currículos dos cursos de formação de professor e a literatura denominada como pedagógica – dentro desta, estavam os manuais de ensinar a ensinar história. (Continua).
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Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Penúltima notícia sobre a história da Pedagogia no Brasil. In: Desafios da formação de professores para o século XXI: o que deve ser ensinado? O que deve ser aprendido? São Cristóvão: Editora da UFS, 2008, v.1, p. 133-149.
Fontes das imagens
Escola Normal da Praça da República (São Paulo-SP), no início da década de 1920. Foto: USP. <www.usp.br.jpg>. Acesso em: 01 dez. 2010.
Referências
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Notas
[1] A trajetória da pedagogia como disciplina acadêmica ou como campo de ciência possui um divisor de águas: o trabalho de Johan Friedrich Herbart (1776/1841). É esse professor de filosofia que transforma os estudos sobre educação em pedagogia científica, mediante a publicação de Pedagogia geral (1806) e Da representação estética do mundo como objeto principal da educação e das letras sob a aplicação da psicologia e da pedagogia (1852). Nesses textos foram expostos, respectivamente, os fins e os meios de uma pedagogia cientifica, fundadas sobre dois elementos: a ética e a psicologia. (cf. Herbart, s.d, e1946; Luzuriaga, 1946; Hilgenheger, 199-).
[2] Como efetuado por Warde (1997), acerca da Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos.
[3] Em linhas gerais, através da frenologia de medições, buscava-se “discriminar as crianças normais das anormais” com o intuito de formar classes homogêneas. (Carvalho, 1977, p. 276-277). Assim, a pedagogia se fazia “ortopedia” – arte da prevenção ou da correção da deformação.” (idem, p. 278).