quarta-feira, 1 de março de 2000

A "Casa de Sergipe" (0): historiografia e identidade na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (1913/1929)

Capa da Revista do IHGS n. 40
Este trabalho aborda a história da historiografia sergipana produzida no período 1912/1929 veiculada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Descreve o movimento intelectual do Estado entre 1900 e 1930 enfocando os homens, as atividades, os equipamentos e as formas de organização. Também analisa a idéia de ciência em vigor, a estrutura administrativa, as práticas acadêmicas, a função social do Instituto e a sua tarefa como organizador de memória e produtor de identidades sobre o ofício do historiador, sobre a própria instituição e o Estado de Sergipe.

Introdução
A história da historiografia é um dos instrumentos mais eficazes da reflexão do historiador sobre o seu saber. Ela descreve, problematiza e reorienta as práticas, a função, enfim, o produto da ciência histórica. Mas essa atividade (historiar o trabalho produzido pelos homens do ofício) não se efetiva a partir de, e sobre, uma utopia[1]. A história da historiografia, tanto em relação a sua prática quanto ao seu objeto, leva em conta os “lugares” (sociais, econômicos, culturais) e “práticas” profissionais específicos e limitados segundo os parâmetros de quem a executa. Por isso, um dos mais legítimos e relevantes recortes diz respeito ao exame das representações que envolvem o religioso ato do Regere fines,[2] ou seja, a demarcação de fronteiras espaciais e socioculturais entre os homens; o estudo da historiografia sobre “regiões” que recria e enforma a experiência das pessoas circunscritas em um país, Estado ou cidade. Essa é, portanto, a orientação contida neste trabalho. Ele atua sobre a historiografia sergipana, produzida nos limites de uma instituição (Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe - 1912/1929) onde, pela primeira vez, de forma coletiva no Estado, os intelectuais tentaram esboçar algumas regras do “fazer” histórico e, partindo dessas, reivindicaram um território e inventaram uma memória, tentando disciplinar o presente daqueles que habitavam a região chamada Sergipe nas duas primeiras décadas desse século.
A historiografia produzida pelo IHGS está registrada no seu principal veículo de divulgação: a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. O periódico foi instituído em 27/08/1912 com a finalidade de publicar as atas, os nomes dos sócios, discursos e "trabalhos litterarios” da entidade fundada em Aracaju, Capital de Sergipe (1912). A Revista do IHGS é, portanto, o mais antigo meio de circulação (em atividade) da produção historiográfica local e, em certas décadas, o único. Sua trajetória conheceu três fases bem demarcadas pela dinâmica de sua circulação: 1913/1929; 1939/1966; 1978/1999. Os hiatos e fases não só indicam suspensão da publicação mas também a reestruturação administrativa do IHGS e, sobretudo, o desaparecimento de toda uma geração de intelectuais. Nesse trabalho, contemplarei a fase de implantação do veículo (1913/1929), a mais produtiva (14 números, 105 artigos, 49 autores), a fase em que a instituição apropriou-se de forma direta do aparato conceitual de alguns fundadores da chamada "geração 70", tais como Silvio Romero e Tobias Barreto. Foi também nesse período que a Revista delineou deliberadamente em "substratos científicos" as singularidades do Estado de Sergipe, os pressupostos de uma "sergipanidade". A convergência de três noções emblemáticas acerca do ambiente urbano (moderno, progresso e ciência)[3] na década de 1870 no discurso dos herdeiros da Escola do Recife também legitimam o marco temporal inicial (1912). A instalação dos novos equipamentos urbanos na capital, a preocupação com o saneamento é um indicador importante dessa convergência. O ano de 1929 como marco final é justificado nem tanto pelas transformações tradicionalmente conhecidas (Revolução de 1930), mas pelo envelhecimento e/ou morte dos discípulos da Escola do Recife; a criação de novos centros aglutinadores de intelectuais como a Academia Sergipana de Letras (1929); e, também, pelas dificuldades internas do Instituto que fizeram interromper a circulação da Revista por 10 anos (1929/1939).
Esse ensaio de história da historiografia, tendo o IHGS como objeto, tem a clara função de descrever e caracterizar a historiografia local identificando seus traços dominantes. Tem o objetivo de perceber, a partir das práticas anunciadas pela Revista, as tentativas de instituição de uma escrita da história e uma identidade para o historiador e o Estado de Sergipe. Além disso, deve, inclusive, comparar a experiência do IHGS com as práticas de sua matriz inspiradora e analisar as apropriações do ideário cientificista difundido pelos discípulos sergipanos da Escola do Recife. Com essa dissertação, em síntese, pretendo compreender a experiência do IHGS como lugar de memória e produtor privilegiado de historiografia. Para tanto, elaboro um esboço do que foi o "movimento intelectual" nas décadas de 1910 e 1920 tratando da auto-representação dos "intelectuais", seu trabalho, seus equipamentos e formas de organização (capítulo II). A seguir exploro a experiência do Instituto através do modelo instituído, dos projetos esboçados para a instituição, da idéia de ciência em vigor, sua estrutura administrativa, práticas acadêmicas e função social (capítulo III). Por fim, analiso a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe enfatizando aspectos de sua produção e circulação, tratando dos autores, textos e temáticas e das principais marcas impressas na escrita da história em Sergipe: as contribuições, heurística, geográfica e historigráfica (capítulo IV). É importante destacar aqui dois subprodutos da pesquisa anexados ao final desse trabalho: o Catálogo da Revista e o Inventário das questões tematizadas durante as sessões do IHGS no período analisado (1912/1929). O primeiro é constituído de índices (analítico e de autores), resumos e referências completas de todos os artigos publicados entre os números 1 e 14. O segundo relaciona todas as atividades exercidas durante as reuniões do grêmio. Ambos podem servir de importantes subsídios a uma nova versão sobre as práticas do IHGS e a escrita da Revista. E, mais importante, podem auxiliar na elaboração de trabalhos comparativos entre instituições do gênero em outros lugares do Brasil (Anexos 3 e 4). Antes de conhecer a experiência dos intelectuais, do Instituto e do periódico, passo em revista a prática da história da historiografia através do seus clássicos estudos de síntese. Também examino, sucintamente, as formas com que o IHGS tem sido abordado e apresento as diretrizes teórico-metodológicas utilizadas durante a análise (capítulo I).
Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. A "Casa de Sergipe": historiografia e identidade na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (1913/1929). Rio de Janeiro, 2000. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio de Janeiro.http://itamarfo.blogspot.com/2010/10/casa-de-sergipe-historiografia-e.html
Notas
[1] No sentido de “em lugar algum”.
[2] Bourdieu, Pierre. A identidade e a representação: elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região. In: O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1984. p. 113-114.
[3] Ver a respeito dessa convergência: Scwarcz, Lilia Mouritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e a questão racial no Brasil 1870-1930.São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 30-35.http://itamarfo.blogspot.com/2010/10/casa-de-sergipe-historiografia-e_9144.html

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