domingo, 2 de novembro de 2003

O Amado Genolino

Genolino Amado (1902-1989)
Leveza e densidade, o fortuito e o reflexivo, a crônica e o ensaio caracterizam a prosa do itaporanguense Genolino Amado (1902/1989), segundo o seu maior especialista, o poeta Jeová Santana (2000). Contraditórios tais atributos – como a vida do autor, repartida entre a crítica social e a freqüência aos gabinetes do governo Vargas –, eles transformaram-se em “janelas abertas para a cidade e para o mundo”, de onde se pode observar um dos “projetos de brasilidade” em curso no período 1930/1950 (Cf. Santana, 2000, p. 142-142) e a idéia de uma identidade sergipana para a primeira metade do século XX.
Genolino Amado, cronista, ensaísta, tradutor, político, professor de História Universal, foi um exilado voluntário. Sua produção esteve fortemente marcada pelos ares metropolitanos. As referências a Sergipe, no entanto, abundam nos livros que enfeixaram suas crônicas. A prosa memorialística vai pelo mesmo caminho. O texto mais conhecido foi Um menino sergipano (1977). A este, planejou dar prosseguimento, escrevendo “a história do moço que estudou na Bahia e se formou no Rio de Janeiro”, e que se chamaria “Um rapaz sergipano”.
Um terceiro livro contaria a sua vida em São Paulo, a iniciação literária, o retorno ao Rio de Janeiro e a comemoração das bodas de ouro do casamento dos seus pais. Essas memórias eram também “a narrativa de toda uma família sergipana, a do velho Melk, a de Donana”, a dos quatorze irmãos Amado, com destaques para o excepcional Gilberto e, quem sabe até, para “um outro grande Amado que a Bahia nos levou, [s]eu primo Jorge, sergipano de origem.” (Cf. Amado, 1977, p. 41-43; 1977b, p. 199).
O surto memorialístico de Genolino não se iniciou com a visita que fez a Sergipe, nos anos 1970, início da escrita de Um menino sergipano. Ele havia publicado O reino perdido (1971), livro de reminiscências sobre a vida de professor de história no Rio de Janeiro. Quanto aos flagrantes de memória sobre os modos sergipanos de pensar, agir e sentir já estão dispersos em crônicas publicadas desde a década de 1940. É por essa janela que se pode, em parte, observar “todo um Sergipe que vive na lembrança dos sergipanos exilados, que constitui a obsessão poética do seu degredo”. (idem, 1946, p. 137). Exemplo dessa catarse: “cheiros de mangaba madura, músicas de reisado, versos do ‘colibri’ ao som da Dalila, cadeiras na calçada, serenatas de violão soluçante, a fala cantada do povo, as mocinhas de fita no cabelo passeando ao largo da matriz.” (idem, p. 1977b, p. 136-137).
Mas, por que observar “em parte”? Porque o Genolino rememorador é o mesmo que apõe a crítica à lembrança e reconhece a impotência da cultura provinciana do final do século XIX frente à “revolução” operada pelo rádio no início dos anos 1940: em Laranjeiras, Orlando Silva substitui Fausto Cardoso; em Propriá, o reisado perde espaço para os sambas de Odete Amaral; as histórias contadas sob os alpendres do Riachão dão lugar às novelas radiofônicas; os “rr” do locutor César Ladeira estragam a prosódia das meninas de Itabaianinha e de Itaporanga; as imagens do amor e da namoradinha encarnam-se na figura de Linda Batista e não mais em Julieta; enfim, sucesso do rádio significa “a morte da província”. (cf. Amado, 1946, 136-139).
O menos famoso dos Amado era também um homem da mídia, um cultor da modernidade. Esse fato, entretanto, não o obriga a concordar com o expresso aniquilamento de um modo de vida coletivo. Essa preocupação de Genolino reverbera sempre nesses instantes de mudanças bruscas, desde Maiackowsk aos críticos da globalização: “Se perdermos a província, que será de nós, de nós que tanto já perdemos? Onde encontrar o sentido da nossa existência, se lhe turvamos a fonte de onde ele sempre veio?” (idem, p. 138).
Trinta anos mais tarde, a fonte da singularidade (a província) continuava pródiga. O rádio não era novidade, a televisão se impunha, mas ao que parece, a “alma de Sergipe” não fora destruída pela modernidade. Ela foi ganhando nitidez na cabeça do viajante Genolino à medida em que ele amadurecia, exercitando todos os sentidos, analisando, generalizando, sintetizando, comparando e diferenciando maneiras de viver, timbre de humanidade, inclinações morais e sentimentais, dotes criadores, simpatias e idiossincrasias do sergipano. (cf. Amado, 1977b, p. 193).
Genolino chegou a definir a alma de Sergipe: “um conjunto de qualidades próprias, facetas caracterizadoras, aspectos específicos e inconfundíveis dos meus conterrâneos, enfim, sergipanidade.” (idem, p. 193). Mas, na hora de demonstrá-la academicamente, recuou. Seria muito cansativo e trabalhoso!
“Sergipanizou”, portanto, ao léu, com o que lhe veio à cabeça no momento da escrita (idem, p. 196). Agiu impressionisticamente, tentando demonstrar que o sergipano era mais caboclo que negro, majoritariamente pardo, sofredor. O nativo era, como o cearense, um eterno migrante e, talvez – pela ausência de um porto –, um forte ascendente judeu. No legado cultural, não se sobrelevaram os sonetistas, oradores e romancistas (Cf. Amado, 1977, p. 192-200). A ausência dos Amandos Fontes anteriores à década de 1930, por exemplo, esteve relacionada ao caráter do “espírito sergipano”: denuncista, influenciador, inovador. “No espírito sergipano, concluía Genolino, “o senso crítico prepondera sobre o imaginativo, sobretudo de caráter meramente estético.” (Amado, 1997b, p. 41).
Genolino Amado não era cientista social, nem saudosista melancólico. Mas, é curioso como releva e, ao mesmo tempo, critica a idéia de alma cultivada pelos patrícios do final do século XIX. Para o cronista, alguma “coisa”, em última instância, deveria ser preservada. Que “coisa” seria essa, e do passado de quem seria recuperada é a pergunta que não quer calar. Com a introdução desse componente político, Genolino dinamiza o debate sobre o passado, memória e identidade sobre o qual nos debruçamos no momento.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O Amado Genolino. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 02 nov. 2003.

Referências
AMADO, Genolino. O reino perdido: histórias de um contador de história. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1971.
__________. A morte da província. In.: Os inocentes do Leblon: crônicas do Rio. Rio de Janeiro: Globo, 1946. p. 136-139.
__________. Um menino sergipano: memórias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
Momento entrevista Genolino Amado. Momento: Revista Cultural da Gazeta de Sergipe, Aracaju, n. 9, p. 41-43, fev. 1977.
SANTANA, Jeová. A crítica cultural no ensaio e na crônica de Genolino Amado. Campinas, 2000. 245 p. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas.

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