domingo, 16 de novembro de 2003

A República de Lacerda

Há um século, a “calçada alta do palacete da rua Pacatuba” costumava reunir as mais proeminentes figuras do partido Cabaú em Sergipe, o grêmio dos usineiros (Santana, 1979, p. 77; Amado, 1999, 198). Francisco Carneiro Nobre de Lacerda (1869/19--), dono da casa, era o ponto aglutinador. Com ele discutiam-se os destinos das lideranças políticas e as questões mais candentes sobre o desenvolvimento de Sergipe. Segundo Tito Lívio de Castro, foi assim durante décadas: a residência do juiz federal dava a direção da política sergipana.
É certo que não podemos ressuscitar bate-papo daqueles homens de bengala – “o atributo da idade viril”. Mas, é provável que alguns elementos dos seus modos de pensar e agir tenham sido transferidos e conservados no livro A década republicana em Sergipe (1906), publicado, inicialmente, em forma de artigos, em O Estado de Sergipe, entre 14 de abril e 13 de junho de 1905 pelo poderoso Dr. Nobre de Lacerda. (Cf. Guaraná, 1925, p. 97).
Por que “década”, não sei. Por que publicá-lo em 1906, também não faço idéia. Por hora, é prematuro associar o título e a publicação com um possível modo de fazer história – por décadas. Da mesma forma, a data do fatídico destino de seu correligionário, Olímpio Campos, assassinado pelos filhos de Fausto Cardoso em 1906, pode não ter relação imediata com lançamento do livro.
Mas, sei que A década é obra importante para compreendermos a constituição do ofício do historiador em Sergipe, além de depor sobre a experiência dos nossos políticos no início desse regime – a República – que se propunha redentor dos costumes e desencadeador do progresso local. Registre-se que essa era a terceira versão sobre a transição monarquia/república, ocorrida em 1889. Em 1906, já circulavam também A República em Sergipe (1891), de Baltazar de Araújo Góis (1853/1914), e Sergipe republicano (1896), de Manuel Curvelo de Mendonça (1870/1914).
O texto de A década republicana em Sergipe foi estruturado sob dois extensos blocos. No primeiro, ao que chama de introdução, passa em revista os vários movimentos sediciosos, emancipacionistas, ocorridos no Brasil entre 1630 – o Quilombo dos Palmares – até a culminar com a proclamação da República, em 1889. Duas intenções são explicitadas: “assinalar o caráter libérrimo do povo brasileiro” e firmar a proclamação [da República] como conseqüência da abolição da escravatura, ocorrida no ano anterior. Mas, aparentemente, o afã de demonstrar as teses faz com que Lacerda deixe contradições teóricas e factuais à mostra.
Para exemplificar, citemos, é claro, as mais gritantes. Ele emprega com o sentido de ideal republicano as expressões rebelião, independência política, democracia, ultraliberal e abolicionismo. A república é uma espécie de vírus contido em vários movimentos sociais. Todavia, soa estranho ao leitor a afirmação de que o povo brasileiro assistiu bestializado à chegada do novo regime se, em Sergipe, como ele mesmo diz, o povo o festejou durante dois dias (!).
Outro exemplo. Ele escreve que a abolição – liberdade civil – era um desejo de todas as classes, e que se deu sem condições, nem entraves. Mas, em Sergipe, a campanha abolicionista de Francisco José Alves lhe “valeu a guerra desabrida de intransigentes escravagistas, que por meio de processo e outras perseguições o[fizeram] abandonar o solo pátrio”. (Lacerda, 1906).
A segunda parte do texto trata da experiência sergipana. Aí também as contradições abundam. A república, que chegou no entardecer do 15 de novembro, deixou os poucos (!) republicanos em delírio. E fez muito mais. Livre da centralização odienta que marcou a monarquia, Sergipe “renasceu das cinzas”, passando a viver superávits orçamentários. Os municípios ganharam vida autônoma; os sergipanos elegeram os seus próprios governantes.
Entretanto, não há como omitir a seqüência de intervenções do Palácio do Catete na política local e o ineditismo de algumas práticas que fizeram do Estado motivo de escândalo nacional, como a duplicidade de Assembléias legislativas, dos funcionários da justiça, e dos presidentes do Estado, ações desencadeadas pelo ativismo de Silvio Romero e do General Valadão.
Para falar de Sergipe, Nobre de Lacerda abandona a narrativa empregada na introdução. Baseia a partição do tempo e dos capítulos nas sucessivas administrações, incorporando dados sobre as condições de nomeação e posse de cada governante, a posição dos partidos e da imprensa sobre as gestões; os principais feitos administrativos; e, as ações políticas em que os presidentes se envolveram. Faz uso da matéria publicada em jornais de Sergipe e do Rio de Janeiro e revela correspondência trocada  entre autoridades locais e, destas, com o presidente da República. Essa grade de temas e fontes fornece os dados para explicitar os determinantes “políticos” do progresso local. Mas, as “causas eficientes”, as secas, por exemplo, não foram objeto de sua escrita.
Tais “causas inconscientes” talvez fossem do interesse do historiador e não do cronista, como ele definiu a si próprio: ao cronista “somente cumpre contar os acontecimentos”. Aí mais uma contradição grosseira do Lacerda: ele tanto investiga as causas – “missão do historiador” – como julga a ação dos personagens, encarando o desenrolar dos acontecimentos, a história vida, como um verdadeiro tribunal.
O tropo dessa retórica forense, plena de adágios e de leis cunhadas numa física prosaica, pode ser a ironia. É uma possibilidade para compreender esse festival de contradições. Afinal, o que ele poderia estar querendo dizer mesmo é que aquela década revelava “a República que não foi”; a que não estava nos sonhos dos republicanos e nunca esteve – como nenhuma outra forma de república – nos planos do partido Cabaú. Com tantos volteios de fala, Nobre de Lacerda deve ter sido, senão aluno, um grande admirador do professor e filólogo Brício Cardoso (cf. Gally, 2003).

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A República de Lacerda. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 16 nov. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

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