Governar não é para qualquer um. Não basta ser honesto e culto. É preciso ter senso prático e saber ofender no momento certo. Deveria estar pensando assim o alferes Ataíde, quando zombava do seu colega de administração, o professor Balthazar Góis. “Meu Balthazar, você não dá para isto; seu gênio pacato, seu amor às artes, não lhe permitem que se envolva nos embaraços de um governo revolucionário. Não é melhor estar em sua casa, tratando de seus desenhos, com seu canivete a fazer suas esculturinhas?” (Góis, 1891, p. 107).
Balthazar não foi para casa. Cumpriu suas funções no diunvirato, ao lado de José Siqueira de Menezes até a chegada de Felisbelo Freire, nosso primeiro governador. Depois, reuniu o material publicado na imprensa, atas do clube Republicano de Laranjeiras, ofícios do governo, abaixo-assinados, relatórios, sua correspondência passiva e, talvez o mais importante, seu depoimento sobre os bastidores do poder, enredou-os e publicou um livro intitulado A República em Sergipe: apontamentos para a história – 1870/1889.
Não era sua intenção escrever história. Queria apenas estabelecer fatos inacessíveis aos historiadores do futuro. A idéia era livrar-nos dos exageros que acometem os escrevinhadores de “relatórios, atas, boletins, crônicas e jornais” (idem, p. I). – Somente estabelecer os fatos? Qual o quê, professor Balthazar! O truculento alferes Ataíde pode ter levado muita vantagem na política, mas equivocou-se em relação à sua suposta modéstia e ingenuidade. Não sabia ele que escrever história já era um grande ato político, tanto assim que pouco ou quase nada conhecemos do militar. Enquanto o professor, que repartiu no seu livro os republicanos entre “primitivos”, “oportunistas” e “consumantistas” é tema deste artigo, em pleno século XXI.
A República narrada por Balthazar segue o espírito recifense. Tal sistema de governo era considerado uma fatalidade. Sua formalização em terras sergipanas, uma lei inexorável. A República chegou à América por “revolução”, bruscamente, ao contrário da lentidão evolucionista ocorrida na Europa. Como Sergipe é Brasil, e o Brasil está na América, a republicanização da província eram favas contadas.
Ocorre que essa mesma fatalidade achou de prover Sergipe com elites “incultas” e “pobres de espírito” (idem, p. 8). Essa deficiência, entretanto, foi a desgraça e a ventura do movimento republicano local. Por conta da incúria educacional, a propaganda foi retardada e, certamente, a semente custou a brotar. Mas, bastaram as intempéries climáticas, o não pagamento das indenizações pela abolição dos escravos e a “falta de melhoramentos” no setor agrícola para que os grandes proprietários sentissem “no estômago” os efeitos da gestão monárquica e resolvessem “expeli-la”, como a “um corpo estranho.” (idem, p. 35).
Arguto, Silvio Romero acompanhava os últimos suspiros da monarquia. Do Rio de Janeiro, incentivou o médico Felisbelo Freire a liderar o movimento, e este difundiu o republicanismo desde novembro de 1888 até as vésperas do golpe desfechado por Deodoro da Fonseca, a 15 de novembro de 1889. Com a proclamação, assumem o governo provisório os militantes de proa do Clube Republicano de Laranjeiras, entre os quais, o pacato Balthazar Góis.
Nos triunviratos e no diunvirato, os novos políticos vão tomando conta do poder e, também, cometendo suas primeiras gafes – que fazem parte do aprendizado da arte de governar. Nada muito escandaloso, apenas pouco republicano, como denunciou o jornal monarquista A Reforma: “claros abertos no tesouro por meio de aposentadorias graciosas e duplo provimento na mesma serventia, e mais... a nomeação de uma estranha à classe para a professora da capital; a dispensa do secretário [do Governo] pela prática do mais louvável civismo”. “– Mas o secretário demitido trabalhava sob a máxima do é dando que se recebe”, argumentou Balthazar. Quanto às aposentadorias indevidas e a professora que não era professora... deixa estar. [Nem a Nova República daria jeito, meu caro Balthazar].
Chegou, enfim, o presidente Felisbelo a 13 de dezembro de 1889. Festejado e agradecido, ele anuncia, em seu primeiro discurso, a obra de regeneração idealizada pelos republicanos (pelos republicanos?): “viação férrea, navegação direta [com a Europa...], canalização [dos rios] e organização do ensino.” (idem, p. 132). Presentes, no plano, estavam as aspirações da maioria dos que refletiam sobre a autonomia de Sergipe. Ferrovia, melhoramento nos rios, e navegação direta resumem-se na expressão transporte – que escoaria a produção local. Nosso progresso vinha, então, da terra. Reforma no ensino traduz o imperativo republicano de universalizar o ensino primário, viabilizando a obra da civilização dos costumes – políticos, principalmente.
E o que disseram os colegas e os inimigos de Felisbelo? Conseguiria o governador colocar Sergipe nos trilhos? Ora, esse tipo de fato não foi estabelecido por Baltazar Góis. “Como pintor que dispõe em uma tela só todos os pormenores de seu quadro, não pode o narrador ocupar-se simultaneamente de todos os acontecimentos que lhe servem de assunto. Precisa pois de espaço a espaço interromper-se, voltar, andar lentamente, acelerar, parar, para poder prosseguir”... e de parada em parada, nesse ponto, ele encerrou a história da República. (idem, p. 77).
Felizmente, os historiadores do futuro apanharam as luvas atiradas pelo professor Balthazar e, graças à bela política que é escrever história, o leitor destas linhas não estará desprovido de respostas sobre o paradeiro das coisas públicas, ao menos para o caso sergipano. Sobre a obra regeneradora do regime republicano, é bastante começar lendo os três últimos parágrafos de As eleições em Sergipe, de Ibarê Dantas (2002). Que estranho espetáculo é comparar a trajetória das idéias e dos costumes num período de cento e quatorze anos de história de Sergipe.
Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. A República de Balthazar. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 30 nov. 2003.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumario desta obra
< http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >
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