Maria Thetis Nunes (1923/2009) |
Tudo começou em 1966, quando o cearense Acrísio Torres de Araújo resolveu quebrar o nosso jejum de livros didáticos, escrevendo uma História de Sergipe para “a mocidade”. Havia cinqüenta anos que não se publicava livro do gênero, desde que Elias Montalvão distribuíra o Meu Sergipe, destinado aos alunos do ensino primário. Lançada a obra, reservadamente, Thétis apontou as imperfeições ao autor, que prometeu corrigi-las numa próxima edição. (Cf. Nunes, GS, 18/05/1973).
Em 1973, Acrísio torna público o seu Sergipe e o Brasil, oferecido aos alunos da 4ª série primária. “Esportiva e educadamente”, Thétis Nunes aponta as fragilidades do novo trabalho: oscilações no estilo (simples/empolado), erro de datação, de titulação, e o estabelecimento de um fato sem a devida base documental – o autor teria registrado que “na passagem de Cabral pelo Brasil, o almirante avistou terras do litoral sergipano”. (Cf. Nunes, GS, 18/05/1973).
Dias depois, a Gazeta de Sergipe e o Jornal da Cidade divulgaram a resposta de Acrísio: “é preciso ter lido com muita má fé ou não ter lido” para denunciar imperfeições estilísticas; é preciso não comparar para ver que a qualidade do livro melhorou bastante entre as edições de 1966 e de 1973. E, mais: a professora Thétis estranhou a afirmação de que Cabral avistou terras de Sergipe. Ora, completa Acrísio, citando H. S. Commager: é bom saber que “história não é só documentação”, é também imaginação. (Cf. Araújo, GS, 22/051973; JC, 22/05/1973).
Em 48 horas, Thétis Nunes volta à cena: “o professor Acrísio respondeu com ironias e sofismas que serviram apenas para evidenciar os erros apontados no [seu] livro”. O que mais alarmou a professora foi a ‘ingênua’ concepção que ele tinha da história: “não é só documentário é também imaginação.” Com essa “romântica concepção [Acrísio Torres] entra em choque com a orientação que o Departamento de história da UFS vem dando aos seus alunos”. Thétis refere-se a um texto de Henri Irinée Marrou, que afirmara há poucos anos: “diferentemente do romancista, o historiador não inventa os fatos mas quer reconstruí-los tais como realmente se passaram. Como materiais, dispõe dos documentos em que algo do passado permanece acessível no seio do presente”. (Cf. Nunes, GS, 24/05/1973).
É possível que motivações várias tenham irrigado essa disputa. Mas, interessa registrar, nesse momento, que o debate sobre a forma e o conteúdo da história de Sergipe também punha em confronto duas jovens propedêuticas universitárias no Brasil: a introdução à história de Commager e a introdução à história de Marrou. A primeira, chamada em socorro por Acrísio Torres, havia sido traduzida do inglês em 1966. A segunda, francesa, publicada em 1969 e traduzida pelo professor Silvério Fontes, fora, provavelmente, sintetizada do livro Sobre o conhecimento histórico, lançado em 1954.
Ambos os autores foram utilizados tangencialmente, cuidadosamente recortados como munição. Na verdade, nenhum dos dois epistemólogos – nem Commager, nem Marrou – quis dizer apenas aquilo que foi citado na disputa. Marrou não acreditava que a existência de “documentos” fosse condição suficiente para o trabalho do historiador e nem atrelava a idéia de documento ao suporte papel. Ele exigia também a “simpatia” agostiniana do historiador pelo seu objeto. Tanto assim que gastou muita tinta para criticar os conhecidos divulgadores da frase “pas de document, pas de histoire”, C. Langlois e C. Seignobos. Estes, por sua vez, produziram uma definição de “documento” muito mais ampla que a idéia de manuscrito em celulose.
Da mesma forma, o norte-americano Hernry Steel Commager não deu a ênfase sugerida por Acrísio ao atributo da imaginação. É mais preciso dizer que a imaginação tinha um grande peso, junto ao bom senso, integridade e a diligência do profissional de história. Mas, a função da mesma era a de auxiliar na recriação do passado. Era “um Dom” do historiador, que permitiria fazer “o sangue ferver nas veias dos seus leitores, ou as idéias nas suas cabeças”. (Commager, 1966, p. 58). Na verdade, comparando as duas propedêuticas, é bem capaz de concluirmos que os dois estrangeiros estavam falando a mesma língua.
Bem, mas como terminou essa história? Thétis Nunes disparou a pesquisar sobre a experiência local com uma intensidade não vista no período anterior a esse episódio. Nunca fez um livro didático, como o seu desafiante. Mas, ocupou-se da tarefa de historiar os cinco séculos do passado sergipano, freqüentando arquivos em Portugal, na Bahia e no Rio de Janeiro. Acrísio Torres tornou-se professor da Universidade de Brasília. Nunca fez um livro de síntese baseado no tipo de pesquisa requerido por Thétis Nunes. Mas, disparou a produzir monografias sobre a província, tratando da literatura, história, imprensa sergipana, entre outros temas.
Quanto ao debate de 1973, ficou como um precioso registro das leituras propedêuticas do ofício do historiador universitário, além das outras motivações que ainda estão sendo investigadas. Porém, é bem possível que essa discussão tenha representado um verdadeiro “terremoto de Lisboa” na vida de quem é considerada “a mulher do século XX” em Sergipe. Dizendo de outro modo, não é improvável que a disputa tenha estimulado a professora Thétis a ocupar a maior parte dos seus últimos trinta anos na pesquisa básica sobre a história de Sergipe. Se a assertiva for veraz, nossos agradecimentos a essa oportuna armadilha proporcionada pelo senhor acaso. (Cf. Araújo, 27/05/1973).
Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. A “guerra”das propedêuticas e o “terremoto de Lisboa”. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 01 fev. 2004.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumario desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.
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Fonte da imagen:
Maria Thetis Nunes - www.jornaldacidade.net
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