segunda-feira, 4 de junho de 2007

O Tenentismo no livro didático

Portinari. Coluna Prestes, óleo sobre tela, Paris, 1950.
Caríssimos alunos, colegas professores e funcionários, boa noite. Gostaria de agradecer o convite à coordenação do evento, à museóloga Fabiana Carnevalle (Memorial de Sergipe) e aos professores Antônio Bittencourt e José Vieira (Curso de História). Gostaria também de agradecer à presença de todos os colegas professores da Universidade Tiradentes, com os quais tive e mantenho convivência agradável, desde 2005. E, por fim, queria cumprimentar os nossos colegas de mesa nesta noite: a professora Maria Nele Santos, que acabou de falar sobre o tema “1924 e o 13 de julho” e o Prof. Antônio Vanderley Melo Correia, que tratará do tema “O Tenentismo no livro didático de história de Sergipe”.
O tema, como já foi anunciado, é “O Tenentismo no livro didático”, mas o problema central não, necessariamente, está voltado para o Tenentismo. Trato o evento, fato, acontecimento, processo ou movimento intitulado Tenentismo como um pretexto para criticar um assertiva do senso comum de muitos dos nossos colegas, sobretudo os professores universitários: a idéia de que o livro didático de História (do Brasil ou Geral) não muda há um século e que, também por isso, o livro didático é literatura de segunda ordem (não é fruto de pesquisa básica – em fontes primárias). A participação neste evento é bastante oportuna, já que os palestrantes estão envolvidos diretamente com o estudo da história das historiografias brasileira e sergipana.
Para constranger a máxima do imobilismo do livro didático, selecionei 8 manuais escolares de História, destinados aos alunos de 11 aos 14 anos. Dizendo de outro modo, empreguei títulos produzidos para o ensino secundário, ensino ginasial, primeiro grau, e ensino fundamental. São livros editados nos anos 1931, 1967, 1969, 1984, 1997, 2000, 2003 e 2006.
Como se vê a amostra é arbitrária. Muitos dos presentes, entretanto, concordarão com a representatividade desses títulos ao ouvir os nomes. A escolha tem por base a minha própria familiaridade com a história do ensino de História. Os autores são representantes de tempos e correntes historiográficas variadas, colhidas ao longo dos últimos 70 anos. Refiro-me aos textos de Jonathas Serrano, Hélio Viana, Vicente Tapajós, Luis Koshiba, Jorge Caldeira, Ricardo Dreguer, Jobson Arruda, Nelson Piletti e Francisco Teixeira.
A fala, por fim será breve, e constará da análise de quatro pontos: os atores, os eventos, as razões e as formas de exposição do Tenentismo no livro didático de História para as séries finais do ensino fundamental.
Atores, eventos, razões e exposições do Tenentismo no livro didático
Sobre os atores: quem são os personagens de relevo quando se trata de Tenentismo? Devo dizer que inicialmente os “tenentes” não aparecem no primeiro texto em questão. Nem mesmo a palavra tenentismo é mencionada. A história do Tenentismo no livro didático inicia-se com referências ao personagem Isidoro Dias, um dos revoltosos em São Paulo. Nos anos 1960, os personagens já são os alunos da Escola Militar, as tropas em Mato Grosso e, além de Isidoro Dias Lopes o combatente Luis Carlos Prestes e Eduardo Gomes. Nos anos 1980, aparecem Mário Fagundes Varela, Juarez Távora, Miguel Costa, Siqueira Campos, Cordeiro de Farias e a Coluna Prestes. Essa configuração não muda mais até os dias de hoje. Um fato curioso, no livro didático contemporâneo, é a introdução da palavra soldado (além de oficiais e tenentes) e a quantidade de revoltosos do Forte de Copacabana: agora são os 29 do Forte e não os 18 do Forte como conserva a vulgata histórica.
Sobre os eventos que compõem a trama, é preciso informar que os qualificativos não variam muito. O Tenentismo foi, primeiramente, um “movimento sedicioso que durou apenas 48 horas”. Foi também "levante" e depois "revolta", "rebelião" e transformou-se em "revolução" nos anos 1960. De movimento que durou dois dias, o evento foi deflagrado no Forte de Copacabana, depois migrando para ações no Mato Grosso e em São Paulo (1924): dura meses de um mesmo ano. Nos anos 1990 a revolta do Forte de Copacabana perde a hegemonia, assumindo em seu lugar a experiência da Coluna Prestes o mais importante evento do “movimento tenentista”. Isso tem implicações: tenentismo passa a ser movimento que abrange os estados de Rio Grande do Sul, Goiás, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Bahia, e Minas Gerais. No livro de 2006 (o de Franscisco de Assis), outra grata surpresa: Amazonas e Sergipe são incorporados como campo e desdobramentos das ações de 1924 (São Paulo).
Cena da Revolta tenentista "13 de julho". Aracaju, 1924.  
O terceiro ponto que gostaria de destacar é a respeito das razões para o movimento. No texto de 1933, não há explicações para o fato: ele simplesmente "aconteceu". Trinta anos depois, já se anunciam o protesto “contra a insensibilidade dos meios políticos” e a luta em favor das “aspirações democráticas de livre pronunciamento eleitoral do povo brasileiro” como grandes motores do Tenentismo. No clima do final da década de 1960, por outro lado, são as “pretensões insatisfeitas”, a “vontade de assumir o poder e abusar dele” que são denunciadas. Mas nos anos 1980, os tenentes são vistos como ingênuos, conservadores, autoritários, elitistas, de nacionalismo vago. Nos anos 1990, a reivindicação por maior participação política das classes médias e das classes populares, a moralização da vida política que significava o combate à oligarquia e a moralização das eleições permaneciam como plataforma do Tenentismo. Nos dias de hoje, é também a defesa dos interesses nacionais, “diante da presença cada vez maior de indústrias, bancos, companhias imobiliárias e de serviços públicos estrangeiras” que está incorporada ao ideário dos tenentes.
O quarto e último tópico que comento é, para mim, o mais prazeroso, posto que lido, praticamente, todos os dias com essa nova abordagem do livro didático de História. Trata-se da forma como os conteúdos conceituais são trabalhados no planejamento da página de cada impresso. Do livro de Jonathas Serrano ao de Vicente Tapajós, ou seja, nessa amostra colhida que abrange 1931/1969, não há modificações quanto à forma da “transposição didática”. Tenentismo é tratado em texto escrito, formato narrativo, com variações no número de linhas, parágrafos, na aposição ou não de um título. A partir do trabalho de Luis Koshiba, a narrativa ganha uma fotografia em preto e branco, embora bastante descontextualizada. Trata-se de um cartaz com bustos de vários tenentes, sem a identificação dos mesmos. No livro de Jorge Caldeira, anos 1990, as ilustrações já estão em cores e retratam uma “casa alvejada durante a revolução de 1924 em São Paulo”. Há também uma foto de “Luís Carlos Prestes na Bolívia”. O herói já pode ser visualizado. Nos livros seguintes, as fotos dos tenentes permanecem dominando a cena: são os revoltosos no Forte de Copacabana, em frente a Estação de Ferro Sorocabana e o alto comando da Coluna Prestes em 1925. O recurso do mapa do Brasil também passa a ser utilizado, registrando a trajetória da Coluna Prestes entre os anos 1925 e 1927.
Considerações finais
Disse no início que empregaria o Tenentismo (evento, fato, acontecimento, processo ou movimento) como um pretexto para criticar um assertiva do senso comum de muitos dos nossos colegas, sobretudo os professores universitários: a idéia de que o livro didático de História (do Brasil ou Geral) não muda há um século
Penso ter demonstrado por essa amostra (ainda que bastante pessoal) que o livro didático de História é também escrita da História. Como tal, está sujeita a todos os condicionantes de produção histórica da escrita histórica, quais sejam: os objetos são históricos, os historiadores passageiros, e os métodos, fontes e abordagens avançam, modificam-se, ficam mais sofisticados. Isso é o bastante para compreendermos porque Jonathas Serrano, lá em 1933, considera o tenentismo um movimento de 48 horas, sem causas e conseqüências destacáveis e hoje estamos apresentando um livro didático que vê o tenentismo como um movimento preocupado com a invasão do interesse estrangeiro e do capital internacional em terras brasileiras. Isso ajuda a compreender porque o movimento é visto, ao mesmo tempo, como ingênuo, autoritário, manifestação dos interesses das classes médias e baixas, ou sequioso pelo poder. Isso ajuda também a compreender porque o tenentismo no livro didático migrou de evento particular do Rio de Janeiro para lançar Sergipe nas páginas de uma experiência, reconhecidamente, nacional.
Escrita da História, como qualquer escrita da História, o livro didático possui uma característica a mais que complica a leitura fácil dos formados em História. Escrita da História, mas escrita didática. Daí a incorporação, na simples narrativa textual escrita, de títulos, fotografias e mapas que auxiliam no processo de compreensão dos conteúdos conceituais – estratégias destinadas a uma população que, a priori, não vê nenhum sentido no estudo de um movimento ocorrido há mais de 80 anos.
Por fim, penso ter demonstrado que se há uma tecnologia de ensino que se transformou nos últimos 70 anos no Brasil (sobretudo nas últimas duas décadas), essa tecnologia foi o livro didático. É por isso que venho apelando aos professores dos cursos superiores que leiam livros didáticos e, mais importante ainda, produzam livros didáticos, pois eles são ainda a principal ferramenta de informação e formação dos professores de História no Brasil REAL.
Muito obrigado

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O Tenentismo no livro didático. Palestra proferida no Memorial de Sergipe, Universidade Tiradentes. Aracaju, 4 jun. 2007.

Fontes das Imagens
Portinari, Coluna Prestes, óleo sobre tela, 46 x 55cm, Paris, 1950. <http://www.portinari.org.br>
Revolta tenentista em Aracaju< http://fontesdahistoriadesergipe.blogspot.com>

Referências bibliográficas
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