segunda-feira, 11 de abril de 2011

O que são exercícios históricos?

Estudando  (www.aulasapoio.com.br). O irônico título veicula uma máxima bastante popular: o exercício é um trabalho estafante.
Neste texto vou tratar, sinteticamente, de mais duas questões que me incomodam. Me incomodam pelas tarefas que enfrento (em termos de orientação de alunos e produção de material didático) e por causa da fragilidade da literatura circulante no Brasil. As questões são: como definir exercício (tipo ideal) e como historiar os exercícios veiculados pelos livros didáticos de História ao longo da nossa experiência educacional republicana.
...mas pode ser prazerozo e produtivo.
(www.fatec-ro.br).
Exercício pode ser definido, operacionalmente e de maneira ampla, como tarefa(s) que o aluno desempenha em situação de aprendizagem escolar. É um trabalho, tanto no sentido apresentado na crítica de Kal Marx à economia política do seu tempo – “atividade adequada a um fim”, onde o homem modifica a natureza e à sua própria natureza (cf. Marx, 2008, p. 211-212), quanto na leitura efetuada pela pedagogia diferenciada de Philippe Perrenoud – “o aluno exerce um gênero de trabalho determinado, reconhecido ou tolerado pela sociedade, e do qual retira os seus meios de sobrevivência” (Perrenoud, 1995, p. 15).
Por esse entendimento, não há e nunca houve aluno passivo. Independentemente do nome, local e parceiros – exercício (auxiliado pelo professor, em sala de aula), atividade (sozinho no livro didático ou diante do computador), dever (em grupo, no campo, nas aulas de "reforço"), tarefinha (para o lar, junto aos pais), tarefa de WebQuest (em grupo, na internet) –, o aluno sempre trabalhou e continua a trabalhar.
Uma rápida observação das teorias da aprendizagem mais empregadas no Brasil também ajuda a destronar o mito do aluno passivo. Na disciplina formal (Locke) ele lê, recorda, repete, recorda, repete.... Na concepção intuitiva (Pestalozzi),  ele observa, toca ouve, imita, responde, retém e reflete. Nos quatro passos formais (Herbart), ele observa, compara, sintetiza e inculca. No funcionalismo/progressivismo (Dewey), ele problematiza, observa, conjectura e descobre. No comportamentalismo (Skinner), ele completa lacunas, perfura cartões, gira botões e observa as respostas. No cognitivismo dos anos 1960 (Bruner), ele elabora hipóteses e descobre a partir da sua própria experimentação. Na aprendizagem cognitiva verbal significativa (Ausubel) ele relaciona os novos conhecimentos à sua estrutura cognitiva e também recapitula a matéria. Na teoria das inteligências múltiplas (Gardner), ele pode cultivar um jardim, cozinhar, elaborar um jornal ou uma animação. Na didática das competências (Perrenoud), por fim, ele sugere, estabelece objetivos, estratégias, atua de forma cooperativa e negocia as formas de avaliação.
Exercício clássico de múltipla escolha. Tipo que se propagou,
nos ensinos fundamental e médio com a modelização imposta
pelos exames vestibulares.
Com base nesses argumentos, apresentei o(s) exercício(s) como tarefa ou conjunto de tarefas que o aluno desempenha em situação de aprendizagem escolar. Entretanto, ao nos aproximarmos das referidas teorias, não é difícil perceber nuanças que obrigam a elaboração de uma definição mais precisa. Isso porque, a depender da teoria da aprendizagem e da situação organizada pelo professor, por exemplo, a orientação para o desempenho das tarefas pode estar explícita ou implícita.
Observe esse caso. Pela teoria cognitivista da aprendizagem verbal significativa de Ausubel, a repetição de trechos principais de um capítulo de livro didático na introdução do capítulo subseqüente é a demonstração de que os conteúdos conceituais e proposicionais estão sendo reapresentados ao aluno. Ao lê-los, consequentemente, ele está, mesmo sem o saber (sem orientação explícita), cumprindo uma tarefa (revisão imediata) que lhe facilitará a retenção do capítulo atual.
Quando nos deparamos com situações semelhantes, estamos diante de uma atividade que pode ou não ter sido planejada pelo autor da obra (a depender da sua erudição pedagógica) e que pode ou não ganhar o sentido de tarefa para o aluno (a depender da sua predisposição para estudar e aprender).
Meu interesse, no entanto, está focado nos exercícios explícitos, ou seja, aquele conjunto de tarefas destinadas aos alunos, intencionalmente elaboradas pelo autor do livro didático para introduzir ou reapresentar conteúdos que viabilizem a aprendizagem e a retenção do material veiculado por uma disciplina escolar.
Esse tipo de exercício é facilmente identificável. Ele é destacado do texto principal de capítulos ou unidades por vários recursos. O primeiro deles é a própria mensagem verbal que o anuncia. Exercício tem um título bastante objetivo – “atividades” – ou aparece disfarçado em convites lúdicos: “agora é com você...”, “vamos pensar um pouco?”, “O que você faria se estivesse no lugar deles?” etc. etc.
O segundo destaque é o próprio gênero no qual se configura o exercício. Ele é tópico (interrogativo ou propositivo) e, geralmente, anuncia as tarefas em sequência numérica, alfabética ou alfanumérica. Mesmo que incorpore outro conjunto de signos, como a fotografia, é fácil identificá-lo pela feição objetiva, ligeira e sumária em relação ao texto principal.
Exercício contemporâneo. Não se anuncia como "exercício" ou
"atividade" e é empregado como o exercício do exercício, ou seja,
o aluno é orientado a cumpri-lo após ter respondido questões de
interpretação de texto. (Venâncio, Zenun e Markunas, 2008, p. 80).
O terceiro é a situação na mancha, ou o lugar ocupado na página. Ele pode aparecer antes (nas apresentações e introduções), durante (interceptando o texto ou integrado ao texto principal, em forma de questões abertas). Ele também pode ser localizado após texto principal ou, ainda, ao final do menor elemento de leitura autônoma do livro didático – a unidade ou o capítulo.
A quarta representação explícita do exercício é a sua identidade gráfica. Exercício é veiculado por ícones, formas e cores que o destaca do texto principal, simulando o início de um novo momento didático (como a apresentação verbal do professor em sala de aula). Hoje são comuns as imagens que comunicam a atividade, as vinhetas, quadros, boxes, círculos, grifos, tipos, e cores diferenciadas.
O quinto diferenciador, por fim, é a disposição em seções, relativas apresentação/desenvolvimento/aquisição de determinados conhecimentos conceituais/proposicionais, procedimentais, atitudinais e de valores anunciados nos currículos da educação básica. Tais conteúdos provém de prescrições estatais, como a legislação inclusiva brasileira – “Os direitos da criança”, “Respeitando as diferenças” – ou do ethos que sustenta a corporação de especialistas. No caso da História, são comuns os exercícios que compõe seções sob os títulos de – “pensando sobre o tempo”, “trabalhando com fontes”, “você conta a história” etc.
Para concluir, penso que essas cinco maneiras de identificar os exercícios não são, apenas, formas de apresentação/identificação. Elas também oferecem/significam traços identitários para uma provável periodização.
Tal periodização, certamente, é alimentada pelo entrecruzamento de diferentes campos de conhecimento e, também, das variadas formas de abordar o artefato livro didático. Assim, uma história dos exercícios  reuniria competências e questões reivindicadas pelos campos da história do pensamento educacional (inclusas as psicologias do ensino e da aprendizagem), história das disciplinas escolares, história do design gráfico, história da tipografia, história do livro e da história da historiografia brasileira. São essas áreas, a meu ver, que mais podem fornecer os indicadores para a construção de uma futura história dos exercícios nos livros didáticos de História no Brasil.

* * *
Sei que a maioria dos leitores não tem interesse na pesquisa sobre os exercícios nos livros didáticos de História (por enquanto!). Mas, penso que a reflexão acima pode auxiliá-los em seus objetivos mais imediatos. Alguns poderiam me perguntar: o que pode ser considerado um bom exercício? Exercício e avaliação são a mesma coisa? E eu responderia sem pestanejar. Em primeiro lugar, todo exercício é uma avaliação se você a conceber com uma atividade posta a serviço da aprendizagem (avaliação formativa).
Aqui cabe mais uma observação. Sabemos que a história da avaliação é marcada pela transição do associacionismo-behaviorismo para o cognitivismo-construtivismo, ou seja, pela transformação de medidas e modificações de comportamento em processos de acompanhamento das formas (problemas, modos, velocidades etc.) de aprendizagem. No caso da história dos exercícios, segundo o raciocínio desenvolvido nesta texto, não é difícil demonstrar que eles sempre estiveram a serviço da aprendizagem.
Quanto à primeira questão – sobre o “bom exercício” –, mais simples é a resposta. Se pensarmos que os pesquisadores ainda não produziram uma teoria geral da aprendizagem, que cubra todas as situações de ensino e, ainda, se entendermos que a maioria das formas codificadas (mesmo aquelas anunciadas há séculos) são empregadas no nosso cotidiano, então poderemos afirmar que não existe, essencialmente, “o bom exercício”.
Livro de exercícios  (Buesco, 1968). É o apogeu desse elemento
de aprendizagem, se considerarmos que, nas primeiras décadas
do século XX, o livro didático ocupava-se, apenas, da apresentação
dos conteúdos conceituais e proposicionais.
Conheço colegas que abominam os exercícios de marcar "x” porque evocam o tecnicismo. Outros nunca fazem uso das interrogativas “quando”, quem”, “onde” pois lembram os questionários jesuíticos. Há professores que mantém o mesmo tipo por anos a fio e também os que mudam de formado na mesma aula, sob a justificativa de que a variação do exercício evita o tédio do aluno. Outros ainda substituem o próprio título da tarefa “exercício” por “atividade” porque esta última palavra remete às didáticas em moda. Tudo isso é resultado de desinformação (ou má formação). Um pouco de leitura sobre teorias da aprendizagem é o bastante para nos libertar da tirania de alguns medos e lugares comuns e usar e abusar das soluções que estão dispostas à nossa volta, há...digamos, dois mil e trezentos anos.
Exercícios com ou sem retroalimentação (feedback), de resposta aberta ou fechada, executados dentro ou fora da sala, sozinho ou em pares, com ou sem o auxílio de uma pessoa mais experiente, sobre o texto ou sobre o cotidiano, repetitivos ou variados, de igual complexidade ou complexidade progressiva, apresentando conteúdos conceituais, procedimentais ou atitudinais e valores, desenvolvendo memória, compreensão, aplicação, análise, crítica ou criatividade, desencadeando ou ativando inteligências múltiplas, enfim, sejam quais forem os tipos, exercícios serão “bons” na medida em que forem coerentes com os objetivos de aprendizagem planejados para um momento didático, uma aula, unidade, curso ou ano. O que, geralmente, transforma a escolha do tipo de exercício em um problema, lamentavelmente, é a nossa incapacidade de responder (para nós mesmos) o que é aprendizagem e (para os nossos alunos) o que deve ser aprendido em matéria de História.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O que são exercícios históricos? <http://itamarfo.blogspot.com/2011/04/o-que-sao-exercicios-historicos.html>.

Fontes das imagens
Estudando. Disponível em: <www.aulasapoio.com.br>. Capturado em 11 abr. 2011.
Uso clássico do exercício - Revisão para a avaliação. Disponível em: <http://segundaoacolsm.blogspot.com/2010/06/exercicios-de-historia.html>. Capturado em 11 abr. 2011.
Exercício clássico de múltipla escolha. SCHNEEBERGER, Carlos Alberto. Minimanual compacto de História do Brasil: teoria e prática. São Paulo: Riedel, 2003. p. 351.
Exercício contemporâneo. VENÂNCIO, Adriana, ZENUN, Katsue e MARKUNAS, Mônica. Conhecer e crescer - História. 2 ed. São Paulo: Escala Educacional, 2008. p. 81.
Livro de exercícios. BUESCO, Mircea. Exercícios de história econômica do Brasil. São Paulo: APEC, 1968. Disponível em: <http://www.estantevirtual.com.br/betolivros/Mircea-Buescu-Exercicios-de-Historia-Economica-do-Brasil-31042110>. Capturado em 11 abr 2011.

Referências
FREITAS, Itamar. A fixação dos conteúdos históricos. In: História regional para a escolarização básica no Brasil: o livro didático em questão (2006/2009). São Cristóvão: Editora da UFS, 2009. pp. 55-73.
______. A invenção dos testes no ensino secundário de História (1928/1935). In: Histórias do ensino de História no Brasil. São Cristóvão: Editora da UFS, 2010. pp. 135-153. v. 2.
MARX, Karl. Processo de trabalho e processo de produzir mais-valia In: O capital: crítica da economia política. 25 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. pp. 209-231. v. 1
PERRENOUD, Philippe. Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Porto: Porto, 1995.

Um comentário:

  1. Bom dia professor Itamar Freitas.
    Me chamo Ivonilda Andrade, sou licenciada em História e mestre em Educação. Resido em Alagoinhas/BA. Há algum tempo tenho acompanhado seu blog, embora o tenha feito eventualmente. Nestas ocasiões tenho lido alguns dos seus textos e muitas questões têm chamado a minha atenção, a exemplo desta discussão em torno do exercício e a relação com a aprendizagem histórica.
    Tenho desenvolvido um trabalho junto ao PARFOR no município de Cristópolis, no oeste baiano, nas disciplinas de Fundamentos Teóricos da Ação Pedagógica e Estágio e tenho observado que há uma grande dificuldade dos docentes, dentre outras, quanto à elaboração e desenvolvimento destes exercícios/atividades. Atuo como docente na rede estadual da Bahia e comecei, a partir disto, a refletir sobre a minha própria prática, porém, sem maiores elaborações. Este texto me despertou para várias questões as quais não havia refletido e que são bem instigantes à pesquisa.
    Espero ter oportunidade de dialogar mais a este respeito.

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