Estátua de Wilhelm von Humboldt e fachada da Universidade de Berlim, onde Jörn Rüsen lecionou Teoria da História.
|
Quem
se predispuser a examinar a obra do filósofo Jörn Rüsen, publicada em
português, em busca de sua idéia de ensino de história, por certo encontrará
algumas dificuldades: o caráter abstrato da discussão, ausência de comentadores
dedicados à propedêutica, o sutil distanciamento entre os conceitos, a exemplo
de cultura, cultura histórica, formação, aprendizado e consciência histórica
etc. Uma delas, entretanto, não está na própria obra, mas na expectativa que
criamos sobre o que ela poderia oferecer.
Claro
que há vários trechos da sua teoria da história dedicados à definição,
estrutura, forma e função de uma didática da história. O problema é que a
didática da historia, criticada e prescrita por Rüsen é um campo de
investigação, obviamente, alemão. Ele até esboça algumas definições bastante
familiares aos brasileiros, como neste exemplo: a didática histórica é uma
disciplina responsável pela formulação da “competência específica para a sala
de aula” (Rüsen, 2007, p. 90).[1]
Mas,
quando se debruça objetivamente sobre o tema, informa que o objeto da didática
da história é a “consciência histórica”. E, ainda, que “a didática da história
se volta para aqueles processos mentais ou atividades da consciência [...] que
geralmente encontram-se por trás dos conteúdos e que habitualmente ficam
velados ao aprendiz” (Schörken, 1972, p 84 apud. Rüsen, 2010, p. 42, grifos de
Schörken). Dizendo de um modo bem brasileiro: a didática da história de Rüsen ganha
o sentido de uma espécie de “psicologia do desenvolvimento”, que se preocupa primordialmente
com a natureza mental dos humanos e não, como esperávamos no início da leitura,
com o anúncio de estratégias para ensinar e aprender história em sala de aula.
E
agora? Como minimizar essa quebra de expectativas? Aqui vai a minha alternativa. Em Jörn Rüsen e o ensino de história (Cf. capa ao lado), no texto que prescreve o livro de história didaticamente correto – um instrumento que tem a função de potencializar as
competências da percepção, interpretação e orientação históricas –, nosso
filósofo tece considerações gerais acerca da “utilidade [do livro didático]
para o ensino prático”. E é, exatamente, nessa exposição despretensiosa – sobre
as funções que o livro didático deve cumprir (para além da sua contribuição
como “canal” dos resultados da pesquisa histórica ou do “impulso” à
aprendizagem histórica) – que podemos encontrar de forma clara algumas
respostas relacionadas aos problemas-chave de uma didática da história à
brasileira (ou da teoria do currículo à americana).
Dito
de outra forma, aí, nesse fragmento produzido a partir da vulgada sobre a
didática da história na Alemanha, podemos colher as idéias de finalidades,
seleção e progressão de conteúdos, aprendizagem, estratégias de ensino e
avaliação.
Didática rüseniana à brasileira
Comecemos
com as finalidades. Já sabemos que a história como disciplina escolar tem a
função de desenvolver as competências de percepção, interpretação e orientação –
contribui para a formação da consciência histórica. Mas, no fragmento em
questão, Rüsen indica a necessidade de os alunos terem acesso aos objetivos, às
“intenções didáticas”, ao “conteúdo” e aos “conceitos metodológicos de ensino”
de forma clara.
Sobre
a escolha desses conteúdos, Rüsen afirma: tem que “guardar uma relação com as
experiências e expectativas dos alunos”. Em outras palavras, os materiais
apresentados aos alunos (documentação, narrativas) e as atividades a ele
destinados têm que ser significativos. É o interesse presente e futuro do aluno
quem comanda a seleção do material. Ele, no entanto, ressalva: há que contar
também com alguma matéria que contemple “as necessidades de orientação no
conjunto da sociedade”. Embora tais matérias sejam dispostas de forma fragmentada
nos conteúdos, a seleção destes, repetimos, deve resumir-se aos interesses
individuais-pessoais dos alunos.
Sobre
a aprendizagem Rüsen se esparrama por todos os volumes da sua teoria. Mas,
nesse trecho ele desce ao chão da escola quando defende a necessidade de
traduzir a matéria às peculiaridades cognitivas dos alunos. É preciso
distribuí-la “de acordo com a capacidade de compreensão” (Rüsen, 2010, p.
116).
Jörn Rüsen
|
Por
fim, a estratégia de ensino. É fundamental “estabelecer uma boa relação com o
aluno”. A ação é simples. Deve o mestre “dirigir-se a ele explicitamente”. Não
esqueçamos que Rüsen está a tratar de livro didático. Mas, pensem na sala de
aula e verão que o conselho se encaixa (apesar da indiferença de muitos mestres
com os seus pupilos). A honestidade e a clareza na exposição dos temas, no
anúncio da perspectiva teórica de interpretação e a referência direta (estou
falando com você) são valores e estratégias que podem convencer o aluno de que ele
é realmente o sujeito da aprendizagem, que o professor não está fingindo e,
ainda, de que o processo de didatização significa idiotização. Em termos bem
brasileiros, Rüsen propõe uma relação dialógica com o aluno.
Alunos, professora, livro didático e preleção. Aracaju: uma história em quadrinhos. Eduardo Oliveira e Thiago Neumann. 2010. |
Conclusões
Evidentemente,
Rüsen não é um teórico da didática histórica, de metodologia, do ensino, da
pedagogia histórica etc. Em recente encontro com a professora Maria Auxiliadora
Smith (UFPR), ele fez questão de ressaltar que não pesquisa sobre ensino de
história. “Quem quiser se inteirar desse assunto deve procurar o Borris”. [2] (Referia-se
ao Bodo Von Borries que há mais de 35 anos dedica-se à pesquisa sobre ensino de
história na Alemanha).
No
entanto, e apesar de Rüsen não ser um especialista na nossa área, e dos
entraves encontrados na sua teoria da história, é possível encontrar os
princípios de uma didática da história que corresponda aos interesses de
professores brasileiros, acostumados ao esquema quádruplo: finalidades da
disciplina, seleção e progressão dos conteúdos, aprendizagem e ensino e
aprendizagem. Basta que não busquemos o que queiramos do modo que costumamos
encontrá-lo nos manuais brasileiros de metodologia. Mesmo em texto no qual o
filósofo não se propôs, objetivamente, a fornecer diretrizes de
ensino-aprendizagem, podemos identificar uma vulgata didática (alemã ?), se não
elaborada, ao menos, aprovada por Rüsen.
E
mais: podemos até situar as suas considerações no curso das correntes
pedagógicas circulantes na Europa, EUA e Brasil do século XX. Com todas as
licenças pedagógicas que possamos conseguir, arrisco dizer que Rüsen, como
qualquer teórico sensato, nesse texto, utiliza-se de uma vulgata que inclui as
diretrizes de formatação dos objetivos educacionais de Ralph Tyller, a tradução
dos objetivos às peculiaridades cognitivas do aluno de Jerome Bruner, a seleção
de conteúdos significativos de David Ausubel, inclusão de conteúdos relativos à
satisfação de necessidades sociais de John Dewey e demais progressistas, a
idéia de reforço natural de Burrus Skinner e o dialogismo de Lev S. Vigotsky e
Paulo Freire. Numa palavra, como todo sensato, ele é um eclético. De dogmático,
apenas a sua idéia de mente humana fundada nas operações da consciência
histórica.
Assista ao vídeo
É um trecho do programa
"Espaço aberto" da Globo News" , exibido, provavelmente, em
[2009]. Como o texto de Rüsen aborda o livro didático de história e,
indiretamente, aquilo que ele considera fundamental em termos de conduta para
os professores de história, pensei ser oportuno o exame das posições de um
historiador brasileiro que circula entre o trabalho de erudição (a pesquisa na
pós-graduação) e a produção de livros didáticos de história para a
escolarização básica.
Que você pensa sobre a posição do
prof. Marco Antônio Villa?
Veja outras postagens sobre o tema
Contextualizando a teoria da história de Jörn Rüsen. Disponível em: <http:www.itamarfo.blogspot.combr/2012/03/contextualizando-teoria-da-historia-de.html>.
Estátua
de Wilhelm von Humboldt e detalhe da fachada da Universidade de Berlim.
Disponível em: <http://www.dw.de>. Capturada em 25 mar. 2012.
Capa
de Jörn Rüsen e o ensino de história. Disponível em:
<http://www.relativa.com.br>. Capturado em 25 mar. 2012.
Jörn
Rüsen. Disponível em: <http://www.joern-ruesen>. Capturada em 2 abr.
2011.
Detalhe
de Aracaju: uma história em quadrinhos. Eduardo Oliveira e Thiago
Neuman. Aracaju: Tecned, 2010. Disponível em: <http://itamarfo.blogspot.com.br/2011/03/aracaju-uma-historia-em-quadrinhos.html>.
Referências
RÜSEN,
Jörn.História viva– Teoria da história III: formas e funções do
conhecimento histórico. Brasília: Editora da UnB, 2007.
______.Jörn
Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Editora da UFPR, 2010. (Organização
de Maria Auxiliadora Smith, Isabel Barca e Estevão de Rezende Martins).
Para citar este texto
FREITAS,
Itamar. O livro didático ideal de Jörn Rüsen e a representação de uma didática
para a história. Disponível em:
<http://www.itamarfo.blogspot.com.br/2012/03/o-livro-didatico-ideal-de-jorn-rusen-e.html>.
Notas
[1] Diferenciando-a
da teoria da história, que é a “didática da ciência da história”, isto é, a
disciplina responsável pela formação da competência profissional (pesquisa
histórica e historiografia).
[2]
Informação fornecida durante palestra proferida no III Seminário de História e
Cultura Histórica, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 28 de set. 2011.
Muito bom.
ResponderExcluir