domingo, 25 de março de 2012

O livro didático ideal de Jörn Rüsen e a representação de uma didática para a história


Estátua de Wilhelm von Humboldt e fachada da Universidade de Berlim, onde Jörn Rüsen lecionou Teoria da História.

Quem se predispuser a examinar a obra do filósofo Jörn Rüsen, publicada em português, em busca de sua idéia de ensino de história, por certo encontrará algumas dificuldades: o caráter abstrato da discussão, ausência de comentadores dedicados à propedêutica, o sutil distanciamento entre os conceitos, a exemplo de cultura, cultura histórica, formação, aprendizado e consciência histórica etc. Uma delas, entretanto, não está na própria obra, mas na expectativa que criamos sobre o que ela poderia oferecer.
Claro que há vários trechos da sua teoria da história dedicados à definição, estrutura, forma e função de uma didática da história. O problema é que a didática da historia, criticada e prescrita por Rüsen é um campo de investigação, obviamente, alemão. Ele até esboça algumas definições bastante familiares aos brasileiros, como neste exemplo: a didática histórica é uma disciplina responsável pela formulação da “competência específica para a sala de aula” (Rüsen, 2007, p. 90).[1]
Mas, quando se debruça objetivamente sobre o tema, informa que o objeto da didática da história é a “consciência histórica”. E, ainda, que “a didática da história se volta para aqueles processos mentais ou atividades da consciência [...] que geralmente encontram-se por trás dos conteúdos e que habitualmente ficam velados ao aprendiz” (Schörken, 1972, p 84 apud. Rüsen, 2010, p. 42, grifos de Schörken). Dizendo de um modo bem brasileiro: a didática da história de Rüsen ganha o sentido de uma espécie de “psicologia do desenvolvimento”, que se preocupa primordialmente com a natureza mental dos humanos e não, como esperávamos no início da leitura, com o anúncio de estratégias para ensinar e aprender história em sala de aula.
E agora? Como minimizar essa quebra de expectativas? Aqui vai a minha alternativa. Em Jörn Rüsen e o ensino de história (Cf. capa ao lado), no texto que prescreve o livro de história didaticamente correto – um instrumento que tem a função de potencializar as competências da percepção, interpretação e orientação históricas –, nosso filósofo tece considerações gerais acerca da “utilidade [do livro didático] para o ensino prático”. E é, exatamente, nessa exposição despretensiosa – sobre as funções que o livro didático deve cumprir (para além da sua contribuição como “canal” dos resultados da pesquisa histórica ou do “impulso” à aprendizagem histórica) – que podemos encontrar de forma clara algumas respostas relacionadas aos problemas-chave de uma didática da história à brasileira (ou da teoria do currículo à americana).
Dito de outra forma, aí, nesse fragmento produzido a partir da vulgada sobre a didática da história na Alemanha, podemos colher as idéias de finalidades, seleção e progressão de conteúdos, aprendizagem, estratégias de ensino e avaliação.

Didática rüseniana à brasileira
Comecemos com as finalidades. Já sabemos que a história como disciplina escolar tem a função de desenvolver as competências de percepção, interpretação e orientação – contribui para a formação da consciência histórica. Mas, no fragmento em questão, Rüsen indica a necessidade de os alunos terem acesso aos objetivos, às “intenções didáticas”, ao “conteúdo” e aos “conceitos metodológicos de ensino” de forma clara.
Sobre a escolha desses conteúdos, Rüsen afirma: tem que “guardar uma relação com as experiências e expectativas dos alunos”. Em outras palavras, os materiais apresentados aos alunos (documentação, narrativas) e as atividades a ele destinados têm que ser significativos. É o interesse presente e futuro do aluno quem comanda a seleção do material. Ele, no entanto, ressalva: há que contar também com alguma matéria que contemple “as necessidades de orientação no conjunto da sociedade”. Embora tais matérias sejam dispostas de forma fragmentada nos conteúdos, a seleção destes, repetimos, deve resumir-se aos interesses individuais-pessoais dos alunos.
Sobre a aprendizagem Rüsen se esparrama por todos os volumes da sua teoria. Mas, nesse trecho ele desce ao chão da escola quando defende a necessidade de traduzir a matéria às peculiaridades cognitivas dos alunos. É preciso distribuí-la “de acordo com a capacidade de compreensão” (Rüsen, 2010, p. 116). 
Jörn Rüsen
Além de por o aluno no centro do ensino-aprendizado, nosso teórico também se preocupa em tornar o processo mais prazeroso. Aí alerta aos profissionais: não há que fazer malabarismos. “A experiência histórica tem um potencial próprio de encantamento que se pode aproveitar com oportunidade de aprendizagem” (Rüsen, 2010, p. 117). Dizendo de outra forma, a matéria veiculada nas aulas de história é, em si mesma, um reforçador natural. Não é necessário muito esforço para fazer com que os alunos estudem história confortavelmente.
Por fim, a estratégia de ensino. É fundamental “estabelecer uma boa relação com o aluno”. A ação é simples. Deve o mestre “dirigir-se a ele explicitamente”. Não esqueçamos que Rüsen está a tratar de livro didático. Mas, pensem na sala de aula e verão que o conselho se encaixa (apesar da indiferença de muitos mestres com os seus pupilos). A honestidade e a clareza na exposição dos temas, no anúncio da perspectiva teórica de interpretação e a referência direta (estou falando com você) são valores e estratégias que podem convencer o aluno de que ele é realmente o sujeito da aprendizagem, que o professor não está fingindo e, ainda, de que o processo de didatização significa idiotização. Em termos bem brasileiros, Rüsen propõe uma relação dialógica com o aluno.


Alunos, professora, livro didático e preleção. Aracaju: uma história em quadrinhos. Eduardo Oliveira e Thiago Neumann. 2010.


Conclusões
Evidentemente, Rüsen não é um teórico da didática histórica, de metodologia, do ensino, da pedagogia histórica etc. Em recente encontro com a professora Maria Auxiliadora Smith (UFPR), ele fez questão de ressaltar que não pesquisa sobre ensino de história. “Quem quiser se inteirar desse assunto deve procurar o Borris”. [2] (Referia-se ao Bodo Von Borries que há mais de 35 anos dedica-se à pesquisa sobre ensino de história na Alemanha).
No entanto, e apesar de Rüsen não ser um especialista na nossa área, e dos entraves encontrados na sua teoria da história, é possível encontrar os princípios de uma didática da história que corresponda aos interesses de professores brasileiros, acostumados ao esquema quádruplo: finalidades da disciplina, seleção e progressão dos conteúdos, aprendizagem e ensino e aprendizagem. Basta que não busquemos o que queiramos do modo que costumamos encontrá-lo nos manuais brasileiros de metodologia. Mesmo em texto no qual o filósofo não se propôs, objetivamente, a fornecer diretrizes de ensino-aprendizagem, podemos identificar uma vulgata didática (alemã ?), se não elaborada, ao menos, aprovada por Rüsen.
E mais: podemos até situar as suas considerações no curso das correntes pedagógicas circulantes na Europa, EUA e Brasil do século XX. Com todas as licenças pedagógicas que possamos conseguir, arrisco dizer que Rüsen, como qualquer teórico sensato, nesse texto, utiliza-se de uma vulgata que inclui as diretrizes de formatação dos objetivos educacionais de Ralph Tyller, a tradução dos objetivos às peculiaridades cognitivas do aluno de Jerome Bruner, a seleção de conteúdos significativos de David Ausubel, inclusão de conteúdos relativos à satisfação de necessidades sociais de John Dewey e demais progressistas, a idéia de reforço natural de Burrus Skinner e o dialogismo de Lev S. Vigotsky e Paulo Freire. Numa palavra, como todo sensato, ele é um eclético. De dogmático, apenas a sua idéia de mente humana fundada nas operações da consciência histórica.

Assista ao vídeo
É um trecho do programa "Espaço aberto" da Globo News" , exibido, provavelmente, em [2009]. Como o texto  de Rüsen aborda o livro didático de história e, indiretamente, aquilo que ele considera fundamental em termos de conduta para os professores de história, pensei ser oportuno o exame das posições de um historiador brasileiro que circula entre o trabalho de erudição (a pesquisa na pós-graduação) e a produção de livros didáticos de história para a escolarização básica. 
Que você pensa sobre a posição do prof. Marco Antônio Villa?
 
Veja outras postagens sobre o tema
Contextualizando a teoria da história de Jörn Rüsen. Disponível em: <http:www.itamarfo.blogspot.combr/2012/03/contextualizando-teoria-da-historia-de.html>. 

Fontes das imagens
Estátua de Wilhelm von Humboldt e detalhe da fachada da Universidade de Berlim. Disponível em: <http://www.dw.de>. Capturada em 25 mar. 2012.
Capa de Jörn Rüsen e o ensino de história. Disponível em: <http://www.relativa.com.br>. Capturado em 25 mar. 2012.
Jörn Rüsen. Disponível em: <http://www.joern-ruesen>. Capturada em 2 abr. 2011.
Detalhe de Aracaju: uma história em quadrinhos. Eduardo Oliveira e Thiago Neuman. Aracaju: Tecned, 2010. Disponível em: <http://itamarfo.blogspot.com.br/2011/03/aracaju-uma-historia-em-quadrinhos.html>.

Referências
RÜSEN, Jörn.História viva– Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora da UnB, 2007.
______.Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Editora da UFPR, 2010. (Organização de Maria Auxiliadora Smith, Isabel Barca e Estevão de Rezende Martins).

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O livro didático ideal de Jörn Rüsen e a representação de uma didática para a história. Disponível em: <http://www.itamarfo.blogspot.com.br/2012/03/o-livro-didatico-ideal-de-jorn-rusen-e.html>.

Notas
[1] Diferenciando-a da teoria da história, que é a “didática da ciência da história”, isto é, a disciplina responsável pela formação da competência profissional (pesquisa histórica e historiografia).
[2] Informação fornecida durante palestra proferida no III Seminário de História e Cultura Histórica, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 28 de set. 2011.

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