Olhando para o passado |
Historiadores do “século de ouro da
História” – ideólogos e inventores de um ofício para o historiador – também ocuparam
algum tempo de suas vidas
com a reflexão e a tomada de posição sobre os conteúdos históricos e a formação
das crianças e adolescentes dos seus respectivos países, nações, povos etc.
A propedêutica universitária da História,
na Alemanha, em 1857, e na França, em 1898, deixava claro que o ensino e a aprendizagem
histórica também justificavam a existência da História e do ofício do
historiador. Gustav Droysen e Langlois e Seignobos afirmaram que os conteúdos
históricos, veiculados nas escolas, viabilizavam o próprio processo de
humanização e concretizavam as finalidades do saber erudito: afastar os
mitos/mentiras, difundir a alteridade e ajudar a manter a
democracia.
No século XX, entretanto, com o
processo de institucionalização da História nas Universidades e a consequente
criação dos cursos de licenciatura em História, verificou-se um progressivo
afastamento da erudição em relação ao ensino que pode ser visualizado em, pelo
menos, três perspectivas: entre as matérias propedêuticas da formação
historiadora e as discussões sobre o ensino de História escolar; entre os
difusores de tendências historiográficas e os formuladores de políticas
públicas para a disciplina História; entre a pesquisa histórica na
pós-graduação e os usos dessa produção.
Na Alemanha, como anunciou Jörn Rüsen
(2006), os historiadores praticamente relegaram as questões de ensino aos
profissionais da educação. Tal atitude resultou na
formação de uma Didática da História apartada da Teoria da História e de uma
Teoria da História amputada em uma das principais funções: a formação histórica.
Nos Estados Unidos, ao contrário, os
historiadores até lutaram para manter o controle sobre o que ensinar. Mas a
atuação de John Dewey, entre outros fatores, foi fundamental no processo de
afastamento da História (objetivista e política) como carro-chefe das
Humanidades, substituída a partir de 1916, pelos Social Studies. (Cf. Novic, 1998;
Fallace, 2009).
No Brasil, a admissão dos professores
do ensino básico como membros da Associação Nacional de História – ANPUH,
somente duas décadas após a sua fundação, é um indício de que tal separação foi
um dia institucionalizada e, ainda, de que as sensibilidades do ofício foram
alteradas. Em outras palavras, é um sinal de que, também por aqui, a corporação
de historiadores reviu suas posições, atualizou seus traços identitários e
assumiu a articulação passado/presente/futuro como procedimento e saber
fundamentais para a formação das consciências, independentemente da coloração
ideológica que tais consciências ganharam ao longo da nossa trajetória como
nação.
No entanto, ainda que a reflexão sobre
os usos do passado fosse defendida como prerrogativa da seara dos historiadores
de ofício – e que esses mesmos historiadores tenham auferido vantagens com o
interesse do Estado na articulação de uma memória nacional, resultando na
manutenção do conhecimento histórico como disciplina escolar por mais de 170
anos – a discussão sobre qual história ensinar, qual passado construir não foi
elemento privilegiado na pauta dos historiadores nos últimos 50 anos.
Margarida Oliveira |
Em seguida, a professora Margarida elenca
as “oportunidades desperdiçadas” pelos profissionais da História a fim de discutir a natureza do conhecimento histórico escolar: os momentos
de elaboração do Diagnóstico e Avaliação dos Cursos de História no Brasil
(1981/1986), das Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação
em História (2001) e dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de
História (2006). Como não desejo esvaziar a curiosidade do leitor, farei
referência a apenas aos PCN.
Eurípedes Simões de Paula Fundador da Revista Brasileira de História |
Tudo bem. Se não podemos transpor o
último modelo da historiografia francesa para as consciências da nossa
juventude, que saber então devemos mobilizar?
Neste livro, professora Margarida aponta possibilidades, fornece referências teóricas nacionais e apresenta
iniciativas em tal sentido, convidando os interessados ao diálogo: pedagogos,
psicólogos e historiadores à mesa (!). Esse é o sonho.
O convite ao diálogo vem acompanhado,
entretanto, de denúncias.
Morte ao pedagogismo – a ideia de que o domínio de recursos técnicos possibilita ensinar qualquer conteúdo.
Ao denunciar o corporativismo alheio, de forma
indireta, aponta o correspondente comportamento dos historiadores, que eu
chamaria de historismo – a
concepção de que dominar conteúdos conceituais históricos possibilita ensinar
em qualquer nível de ensino.
Ela também denuncia, e de certa forma
assume, os equívocos da corporação, quando aponta a visão preconceituosa e
estereotipada dos professores universitários em relação a os
professores da escolarização básica. Mas, não emprega
eufemismos para explicitar a falta de senso da realidade dos historiadores
sobre as funções sociais e o peso do licenciado em História no mercado
nacional. Ela afirma ser um equívoco tratar equitativamente as várias
competências do graduado em História – (pesquisa,
preservação documental, assessorias na área de patrimônio histórico-cultural) – quando o maior espaço de atuação é a
sala de aula do ensino fundamental e médio. Ela denuncia, por fim, a incúria
dos departamentos de História com a pesquisa sobre ensino, a reflexão sobre os
currículos da escolarização básica, as teorias do desenvolvimento humano.
Ao final da leitura deste livro, mesmo
sabendo que a pesquisa foi concluída há quase uma década, não é difícil
chegarmos a uma amarga conclusão: continuamos a desperdiçar oportunidades no
nosso dia a dia. Negamo-nos a discutir o “direito ao passado” todas as vezes
que recusamos o convite da Secretaria da Educação para analisar ou elaborar um
simples ementário para os alunos da escolarização básica; a repensar os
conteúdos conceituais históricos que povoam as provas do vestibular há décadas;
a assumir turmas de Prática de Ensino e de Estágio supervisionado, alegando não
ser da nossa especialidade; quando recusamos um projeto de pesquisa na
graduação ou pós-graduação que tem o ensino como problema central; quando não
relacionamos inovação historiográfica e estratégias didáticas no ensino, por
exemplo, nas aulas de História Antiga...
Penso que essa é uma das principais
funções do trabalho da professora Margarida Oliveira. Ela dá a conhecer e provoca a reflexão. Dirão que qualquer livro de História dá a
conhecer e provoca a reflexão e eu argumentarei: poucos dão a conhecer as
nossas entranhas – conchavos, conluios, omissões em relação à formação da
consciência histórica dos pequenos brasileiros; poucos provocam a reflexão sobre
as mazelas da formação inicial de profissionais de História no Brasil.
Referências
DROYSEN, Johann Gustav. Historica: lecciones sobre la Enciclopedia y
metodologia de la historia. Barcelona: Alfa, 1983.
FALLACE, Thomas. John Dewey’s on the
origins of the Social Studies: an analysis of the historiography and new
interpretation. Review of Educational
Research, v. 79, n. 2, pp. 601-624, jun. 2009.
FREITAS, Itamar. Matinho Lutero: o valor da escola e o ensino de História
(1524/1530). Disponível em: <http://itamarfo.blogspot.com/2010/12/matinho-lutero-o-valor-da-escola-e-o.html>.
LANGLOIS, Charles Victor e SEIGNOBOS,
Charles. Introduction
aux études historiques. Paris: Kimé, 1992.
NOVICK, Peter.
Thet noble dream: the “objectiviy
question” and the american historical profession. Cambridge: Cambridge University, 1998.
RÜSEN, Jörn. Didática da História: passado,
presente e perspectivas a partir do caso alemão. Práxis Educativa. Ponta
Grossa, v. 1, n. 2, p. 7-16, jul./dez. 2006.
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