segunda-feira, 30 de julho de 2012

Qual ensino, qual passado?

Olhando para o passado
Qual o valor dos estudos históricos na formação de crianças e adolescentes? O que se deve transferir da historiografia produzida pelos eruditos aos currículos da escolarização básica? Como o saber histórico escolar é construído? Essas questões vêm sendo respondidas háno mínimo500 anos por teólogos, filósofos, educadores, sociólogos. Erasmo, Lutero, Vives, Comênios, Rousseau, Condorcet, Loke, Herbart, Bain, Spencer, Durkheim, Dewey  –  para citar apenas os mais conhecidos – posicionaram-se a respeito.
Historiadores do “século de ouro da História” – ideólogos e inventores de um ofício para o historiador – também ocuparam algum tempo de suas vidas com a reflexão e a tomada de posição sobre os conteúdos históricos e a formação das crianças e adolescentes dos seus respectivos países, nações, povos etc.
A propedêutica universitária da História, na Alemanha, em 1857, e na França, em 1898, deixava claro que o ensino e aprendizagem histórica também justificavam a existência da História e do ofício do historiador. Gustav Droysen e Langlois e Seignobos afirmaram que os conteúdos históricos, veiculados nas escolas, viabilizavam o próprio processo de humanização e concretizavam as finalidades do saber erudito: afastar os mitos/mentiras, difundir a alteridade e ajudar a manter a democracia.
No século XX, entretanto, com o processo de institucionalização da História nas Universidades e a consequente criação dos cursos de licenciatura em História, verificou-se um progressivo afastamento da erudição em relação ao ensino que pode ser visualizado em, pelo menos, três perspectivas: entre as matérias propedêuticas da formação historiadora e as discussões sobre o ensino de História escolar; entre os difusores de tendências historiográficas e os formuladores de políticas públicas para a disciplina História; entre a pesquisa histórica na pós-graduação e os usos dessa produção.
Na Alemanha, como anunciou Jörn Rüsen (2006), os historiadores praticamente relegaram as questões de ensino aos profissionais da educação. Tal atitude resultou na formação de uma Didática da História apartada da Teoria da História e de uma Teoria da História amputada em uma das principais funções: a formação histórica.
Nos Estados Unidos, ao contrário, os historiadores até lutaram para manter o controle sobre o que ensinar. Mas a atuação de John Dewey, entre outros fatores, foi fundamental no processo de afastamento da História (objetivista e política) como carro-chefe das Humanidades, substituída a partir de 1916, pelos Social Studies. (Cf. Novic, 1998; Fallace, 2009).
No Brasil, a admissão dos professores do ensino básico como membros da Associação Nacional de História – ANPUH, somente duas décadas após a sua fundação, é um indício de que tal separação foi um dia institucionalizada e, ainda, de que as sensibilidades do ofício foram alteradas. Em outras palavras, é um sinal de que, também por aqui, a corporação de historiadores reviu suas posições, atualizou seus traços identitários e assumiu a articulação passado/presente/futuro como procedimento e saber fundamentais para a formação das consciências, independentemente da coloração ideológica que tais consciências ganharam ao longo da nossa trajetória como nação.
No entanto, ainda que a reflexão sobre os usos do passado fosse defendida como prerrogativa da seara dos historiadores de ofício – e que esses mesmos historiadores tenham auferido vantagens com o interesse do Estado na articulação de uma memória nacional, resultando na manutenção do conhecimento histórico como disciplina escolar por mais de 170 anos – a discussão sobre qual história ensinar, qual passado construir não foi elemento privilegiado na pauta dos historiadores nos últimos 50 anos.
Quem conta essa história é a professora Margarida Oliveira, militante das hostes da ANPUH, ou seja, da corporação dos historiadores por formação inicial e ofício. Em O direito ao passado, inicialmente, ela trata da assunção do ensino de História a objeto de pesquisa histórica. Esse passo, fundamental para o reconhecimento da sua relevância na área, ocorreu nos anos 1970, quandohá décadasjá se produzia trabalhos de pós-graduação no Brasil.
Margarida Oliveira
Usando a Revista Brasileira de História como suporte e “vitrine”, a professora Margarida infere que a pesquisa sobre o ensino nasceu como relato de experiências – uma espécie de “como fazer” – ameu ver, não muito diferente da produção que os didatas da educação inauguraram nas apropriações iniciais das escolas novas, lá pelos idos dos anos 1920. Quando passou à investigação sistematizada, a cargo de profissionais de História – e da Educação inclusive –, o produto da pesquisa sobre o ensino configurou-se como uma “historiografia da falta” ou uma “historiografia denúncia”, omitindo questões fundamentais: qual passado abordar? Que conteúdos ensinar?
Em seguida, a professora Margarida elenca as “oportunidades desperdiçadas” pelos profissionais da História a fim de discutir a natureza do conhecimento histórico escolar: os momentos de elaboração do Diagnóstico e Avaliação dos Cursos de História no Brasil (1981/1986), das Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em História (2001) e dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de História (2006). Como não desejo esvaziar a curiosidade do leitor, farei referência a apenas aos PCN. 
Eurípedes Simões de Paula
Fundador da Revista Brasileira
de História
O processo de elaboração dos PCN foi, talvez, o “desperdício” mais emblemático. A narrativa dos diálogos veiculados neste livro – entre o Estado e a Sociedade Civil, entre profissionais da História que representavam ambos os lados – revela uma das faces mais perversas da tríplice separação de que tratei acima. Como os historiadores organizados deram às costas à discussão sobre o que ensinar e, ainda, como a construção do saber escolar modelada pelos Parâmetros deveria ancorar-se no saber de fronteira – à época, representado pela Escola dos Annales (ou não seria aceita por esses mesmos historiadores) –, os autores dos PCN prescreveram um “remédio” francês para os adolescentes que na França já era considerado um “veneno” para os “petit garçons”, segundo autores como Jaques Le Goff e Marc Ferro: o fim da cronologia e a implantação da história por temas.
Tudo bem. Se não podemos transpor o último modelo da historiografia francesa para as consciências da nossa juventude, que saber então devemos mobilizar?
Neste livro, professora Margarida aponta possibilidades, fornece referências teóricas nacionais e apresenta iniciativas em tal sentido, convidando os interessados ao diálogo: pedagogos, psicólogos e historiadores à mesa (!). Esse é o sonho.
O convite ao diálogo vem acompanhado, entretanto, de denúncias. Morte ao pedagogismo – a ideia de que o domínio de recursos técnicos possibilita ensinar qualquer conteúdo. Ao denunciar o corporativismo alheio, de forma indireta, aponta o correspondente comportamento dos historiadores, que eu chamaria de historismo – a concepção de que dominar conteúdos conceituais históricos possibilita ensinar em qualquer nível de ensino.
Ela também denuncia, e de certa forma assume, os equívocos da corporação, quando aponta a visão preconceituosa e estereotipada dos professores universitários em relação os professores da escolarização básica. Masnão emprega eufemismos para explicitar a falta de senso da realidade dos historiadores sobre as funções sociais e o peso do licenciado em História no mercado nacional. Ela afirma ser um equívoco tratar equitativamente as várias competências do graduado em História – (pesquisa, preservação documental, assessorias na área de patrimônio histórico-cultural) – quando o maior espaço de atuação é a sala de aula do ensino fundamental e médio. Ela denuncia, por fim, a incúria dos departamentos de História com a pesquisa sobre ensino, a reflexão sobre os currículos da escolarização básica, as teorias do desenvolvimento humano.
Ao final da leitura deste livro, mesmo sabendo que a pesquisa foi concluída há quase uma década, não é difícil chegarmos a uma amarga conclusão: continuamos a desperdiçar oportunidades no nosso dia a dia. Negamo-nos a discutir o “direito ao passado” todas as vezes que recusamos o convite da Secretaria da Educação para analisar ou elaborar um simples ementário para os alunos da escolarização básica; a repensar os conteúdos conceituais históricos que povoam as provas do vestibular há décadas; a assumir turmas de Prática de Ensino e de Estágio supervisionado, alegando não ser da nossa especialidade; quando recusamos um projeto de pesquisa na graduação ou pós-graduação que tem o ensino como problema central; quando não relacionamos inovação historiográfica e estratégias didáticas no ensino, por exemplo, nas aulas de História Antiga... 
Penso que essa é uma das principais funções do trabalho da professora Margarida Oliveira. Ela dá a conhecer e provoca a reflexão. Dirão que qualquer livro de História dá a conhecer e provoca a reflexão e eu argumentarei: poucos dão a conhecer as nossas entranhas – conchavos, conluios, omissões em relação à formação da consciência histórica dos pequenos brasileiros; poucos provocam a reflexão sobre as mazelas da formação inicial de profissionais de História no Brasil.

Referências
DROYSEN, Johann Gustav. Historica: lecciones sobre la Enciclopedia y metodologia de la historia. Barcelona: Alfa, 1983.
FALLACE, Thomas. John Dewey’s on the origins of the Social Studies: an analysis of the historiography and new interpretation. Review of Educational Research, v. 79, n. 2, pp. 601-624, jun. 2009.
FREITAS, Itamar. Matinho Lutero: o valor da escola e o ensino de História (1524/1530). Disponível em: <http://itamarfo.blogspot.com/2010/12/matinho-lutero-o-valor-da-escola-e-o.html>.
LANGLOIS, Charles Victor e SEIGNOBOS, Charles. Introduction aux études historiques. Paris: Kimé, 1992.
NOVICK, Peter. Thet noble dream: the “objectiviy question” and the american historical profession. Cambridge: Cambridge University, 1998.
RÜSEN, Jörn. Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão. Práxis Educativa. Ponta Grossa, v. 1, n. 2, p. 7-16, jul./dez. 2006.

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