domingo, 12 de dezembro de 2010

Matinho Lutero: o valor da escola e o ensino de História (1524/1530)


Martinho Lutero pregando no Castelo de Wartburg. Óleo sobre tela (1882) de Hugo Vogel (1855/1934). Hamburger Kunsthalle.
A educação escolar é o remédio eficaz para todos os males econômicos, físicos e morais.

Pronunciada cotidianamente por economistas, parlamentares, militantes de esquerda e de direita, pedagogos e alguns pais de alunos, esta frase soa como música aos ouvidos da população semi-informada. Com menor freqüência e intensidade, no entanto, a mesma sentença vem recebendo críticas: educação escolar não é e não pode vir a ser uma “panaceia”, afirmam alguns poucos ponderados especialistas da área.
A crítica faz sentido. Escola equipada, professores bem remunerados e currículos que respeitem as expectativas dos alunos e pais de alunos não garantem a permanência do Brasil no G7, não eliminam a violência no Complexo do Alemão (RJ), não afastam as possibilidades de epidemia de dengue, gravidez precoce ou doença sexualmente transmissível. Os cruzamentos históricos e as dívidas centenárias da República com a maior parte da população brasileira não autorizam pensar a educação escolar como o remédio eficaz para todos os males que nos afligem.
Mas, na militância luterana, a frase moveu somas, contingentes profissionais e ganhou a forma de uma cruzada (!). A repercussão de alguns aspectos da Reforma em termos de letramento da população foi tão significativa que os historiadores há muito identificam fronteiras entre os países que resolveram suas necessidades básicas e aqueles que penaram até a primeira metade do século XX. O mapa da Europa das idades moderna e contemporânea, em resumo, pode ser tingido com as cores do catolicismo e do protestantismo (melhor sucedido nos processos de alfabetização).
O que vivificou a crença na educação escolar como “o remédio” para uma nova Alemanha? Arrisco uma hipótese: tal crença fundou-se num componente inexistente no nosso tempo: o cristianismo como cimento da “nação”, ou seja, a idéia de construir um "regime abençoado e cristão...em corpo e alma, em toda a abundância, para louvor e honra de Deus Pai" (Lutero, 1995, p. 325). Vejamos alguns dos princípios estabelecidos por Lutero para a escola e os valores atribuídos às histórias ensinada e erudita.

Escola e currículo nos “Conselhos” de Lutero
Para Martinho Lutero (1483/1546), três fatores o induzem a defender uma escolarização mínima para todos os alemães: 1) o combate à ignorância da população, vista pelo reformador como um sinal da vitória do Diabo; 2) o mau uso dos recursos humanos (os doutores, pastores etc.) e materiais (escolas, livros); e 3) o mandamento de Deus “que estimula e exige com tanta freqüência, por meio de Moisés, que os pais ensinem os filhos” (Lutero, 1995, p. 307-307).
Martinho Lutero (1483/1546)
Aqurela sobre pergaminho
Lucas Cranach (1532).
Urge, portanto, a transformação imediata (em alguns trechos, ele fala em três anos) das “cocheiras e escolas do diabo” em escolas cristãs. A tarefa, entretanto, não deve ficar a cargo dos pais, boa parte deles inconsciente e, em sua maioria, inapta, sem tempo e sem espaço para educar seus filhos. Cabe aos pastores e pregadores o trabalho de cuidar da educação da juventude, segundo os princípios da cristandade. Os “conselheiros” (príncipes), por sua vez, devem responsabilizar-se pela instalação de “boas escolas fundamentais e superiores”. As autoridades, enfim, “tem o dever de obrigar os súditos a mandarem seus filhos à escola” (idem, p. 362).
Mas, por que tanto esforço? Para Lutero, a escola educava o povo (toda a população alemã), formava os quadros da vida clerical (pregadores, pastores) e também os da vida secular (comerciantes, príncipes, advogados, escritores e médicos). Além de formar os governantes do povo e do país, a escola preparava as mulheres para bem governar “a casa e educar bem os filhos e a criadagem” (idem, p. 318). Sem a escola, a sociedade alemã estaria fadada a repetir o triste e conhecido destino, por exemplo, de Sodoma e Gomorra.
Os conselhos de Lutero tem um fim: formar a sociedade alemã dentro dos princípios do Evangelho. Mas os seus escritos cumprem também uma função política episódica: reagir a determinadas “ilações”: uma delas (ainda em vigor entre nós) dizia que “para servir a Deus não é preciso ser monge, e se todo o mundo dispõe da Bíblia em alemão, já não é preciso estudar grego e latim; basta saber ler e escrever o alemão” (Beck, 1995, p. 301).
Ora, Lutero fez-se transformou-se em reformador fazendo uso dos estudos clássicos, ou seja, das línguas e das artes liberais (Gramática, Dialética, Retórica, Aritmética, Música, Geometria e Astronomia). Como, então, desprezá-las na formação do cristão? São as línguas, sobretudo o hebraico (língua do Velho Testamento) e o grego (língua do Novo Testamento), o “maravilhoso e nobre dom de Deus”. Elas veicularam e desenvolveram e preservam o Evangelho. Elas permitem a compreensão do “verdadeiro sentido do texto” e instrumentalizam as pessoas para a crítica ao trabalho de interpretação da “Escritura”, a cargo de professores ou pregadores.
O currículo luterano inclui, portanto, as línguas (hebraico, grego, latim e alemão) e, ainda, o Canto, Música e Matemática, mas não detalha níveis ou conteúdos substantivos. Lutero prega, no entanto, o ensino de forma lúdica (ele é avesso aos castigos físicos), a convivência dos estudos com os ofícios, e algumas prescrições sobre o tempo escolar: a menina pode freqüentar a escola (1 hora por dia) e cumprir seus afazeres domésticos. O menino, da mesma forma, cumpriria jornada de uma ou duas horas, sem prejuízo do aprendizado de uma futura profissão.
Por fim, Lutero faz a defesa das bibliotecas e da produção de obras didáticas, hierarquizando os bons livros e demonizando os que foram “introduzidos pelo diabo, os tolos, inúteis e prejudiciais livros dos monges” (idem, p. 322).
Quadro n. 1
Livros didáticos prejudiciais e livros didáticos decentes para o currículo luterano
Livros prejudiciais*
Livros decentes**
Catholicon
Dicionário latino de João Januanense, 1286
Sagrada Escritura
Latim, grego, hebraico e alemão ou em outras línguas
Flores grammaticae
Poema latino sobre sintaxe – Ludolfo v. Luchow, 1317
Livros úteis para aprender as línguas (gramática)
Poetas e oradores gentios, cristãos, gregos ou latinos
Graecista
Coletânia léxico-gramatical em versos
Livros sobre Gramática, Dialética, Retórica, Aritmética, Música, Geometria e Astronomia e outras disciplinas
Labiryntus
Poesia sobre os infortúnios dos mestre-escolas, 1220
Livros jurídicos e de Medicina
(Selecionados para o estudo nas universidades)
Dormi secure
Sermões sobre efemérides eclesiásticas, século XV
Crônicas e compêndios de História
Em qualquer língua
(*) Lutero, 1995, p. 322; Kayser (NT), In: Lutero, 1995, p. 322. (**) Lutero, 1995, p. 324.

Os livros indicados são relacionados na coluna 2 (Cf. Quadro n. 1), em ordem de importância, figurando, em primeiro lugar, a Sagrada Escritura. Os compêndios de História, todavia, são anunciados em parágrafo reservado, já que estariam “entre os mais importantes”. Qual a razão do destaque para a História? Qual a utilidade da História e do seu ensino na escola luterana?

História: saber, experiência e valor como matéria de ensino
A palavra história, nos texto educacionais de Lutero, expressa os sentidos de experiência humana através dos séculos e também de saber que registra essa mesma experiência.
Como saber, registro escrito sobre a experiência humana, a História (escrita, entendida a Biblia como relato histórico) é oposta à memória. Esta é falha, pode levar à confusão sobre o sentido da palavra de Deus. Aquela é perene, pois viabiliza a transmissão do Evangelho (diria Lutero) em seu significado original. Ele acrescenta: não fosse a ausência de historiadores e, respectivamente, de bons livros sobre a história sua terra (lamenta o reformador), os alemães não seriam vistos pelo restante da Europa como “bestas... que só sabem fazer guerra, comer e beber” (Lutero, 1995, p. 324).
Lutero traduzindo a Bíblia. Gravura (1847) de Gustav König (1808-1869).
A publicação do Novo Testamento de 1522 em língua alemã reflete a
preocupação didática de oferecer ao povo, na própria língua, os textos que
fundamentavam as exigências e medidas da Reforma. Os préfácios ao Novo
Testamento e a livros específicos, como a Epístola aos Romanos, oferecem

ao leitor a compreensão de conceitos básicos [...]. (Beck, 1995, P. 299).
Mas, a história é também experiência. Ela foi requisitada por Lutero para para ressaltar, por exemplo, a ampliação do debate sobre a palavra de Deus, o adequado modelo educacional da Roma antiga, as estratégias de ensino dos gregos, e a importância do estudo das línguas pelos povos que antecederam os hebreus. Com esse significado, o pensador não se distancia do senso comum do seu tempo: a história como mestra da vida. 
Se é mestra, quem a recolhe? Quem reúne os exemplos da magna professora? Os evangelistas, a sua memória, a tradição dos pais? De que história está a tratar o nosso Lutero, o relato profano ou as santas escrituras? Alguns trechos dos “Conselhos” e “Prédicas” são indiciários sobre os sentidos da história. Neles, a  informação “histórica” surge como máxima atemporal: “A sabedoria é melhor que a força [Ec. 9.16 ]. Isso o comprova toda a experiência na História: jamais a força destituída da razão ou da sabedoria teve sucesso.” (Lutero, 1995, p. 348). Noutros segmentos, a experiência humana é tratada como expressão da Providência: “[Deus] entregou a Grécia aos turcos, para que os gregos, expulsos e dispersos, espalhassem a língua grega e dessem um primeiro impulso para que também se estudassem outras línguas” (idem, p. 311). 
Talvez fosse o caso de considerar a dupla fonte (profana e religiosa) como um exemplo de coerência em relação ao tratamento do secular e do divino em sua obra. Para Lutero, o regime secular "é criatura e ordem divina... sem essa instituição esta vida não pode existir" (idem, p. 347). Semelhante relação pode ser estabelecida com a ação de Melanchton e outros pensadores do seu tempo que mantiveram, embora com status diferenciados, as máximas profanas e os escritos religiosos na interpretação da história como "mestra da vida" (Cf. Koselec, 2006, p. 44).
Seja a experiência observável registrada e acumulada no regime secular, seja a explícita vontade de Deus (interpretada por Lutero), História é um conhecimento reivindicado para a educação das crianças, professores, pastores, comerciantes e príncipes. Ela dá a conhecer
a história e a sabedoria do mundo inteiro, a história desta cidade, deste império, deste príncipe, deste homem, desta mulher e, desta forma, poderiam ter diante de si, em breve tempo, como um espelho, a natureza, vida, conselho, propósitos, sucessos e fracassos do mundo inteiro. Isso lhes serviria de orientação para o seu pensamento e para se posicionarem dentro do curso do mundo com temor de Deus. Além disso, a História os tornaria prudentes e sábios, para saberem o que vale a pensa perseguir e o que deve ser evitado nesta vida exterior, e para poderem aconselhar e governar a outros de acordo com essas experiências. No entanto, a disciplina que se pratica em casa, fora de tais escolas, quer nos ensinar por experiência própria. Antes que isso aconteça estamos mortos cem vezes e agimos insensatamente a vida inteira, pois a experiência própria exige muito tempo. (idem, p. 319).
Adiante, quando justifica a inclusão dos compêndios de História entre os didáticos que devem ser lidos, Lutero sintetiza: “são maravilhosamente úteis para entender o curso do mundo e para governá-lo, mas também para enxergar os milagres e obras de Deus” (idem, p. 324).


Conclusão
Não há muito a destrinçar, depois dessas duas citações. Independentemente dos conceitos com os quais queiramos classificar a posição do reformador acerca do valor do conhecimento histórico – “antigo regime de historicidade” (Hartog, 1996), "constituição exemplar de sentido" (Rusen, 2007, p. 50-58) ou "o topos História magistra vitae" (Koselleck, 2006, p. 41-43) – é possível afirmar que a posição de Lutero, quanto ao lugar da História no ensino, é clara: a História deve figurar nos currículos porque veicula a experiência dos homens e dá visibilidade à obra de Deus, servindo, assim, como construtora da identidade alemã (memória sobre as virtudes do seu povo, a exemplo da história hebreia), prova da grandeza de Deus, orientadora do pensamento e da ação na vida secular. A História, por fim, é matéria fundamental para a ética luterana no novo povo que ele queria formar.
O que essa posição representará nos teóricos que lhe seguirão, sobretudo os estudiosos do currículo, a exemplo de Melanchton e Comenius, veremos isso um pouco mais adiante.


Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Martinho Lutero: o valor da escola e o ensino de História (1524/1530): nota de pesquisa. 12 dez. 2010.<http://itamarfo.blogspot.com/2010/12/matinho-lutero-o-valor-da-escola-e-o.html>.

Referências
BARBOSA, Luciane Muniz Ribeiro. Igreja, Estado e Educação em Martinho Lutero: uma análise das origens do direito à educação. São Paulo, 2007. 239 p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo.
BECK, Nestor L. J. Educação – introdução ao assunto: Lutero como reformador religioso da educação. In: LUTERO, Martinho. Obras selecionadas (v. 5) – Ética: fundamentos, oração, sexualidade, educação, economia. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1995. pp. 200-301.
______.Uma prédica para que se mandem os filhos à escola (1530). Introdução. In: In: Obras selecionadas (v. 5) – Ética: fundamentos, oração, sexualidade, educação, economia. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1995. pp. 326.
HARTOG, François. Regime de Historicidade. In:Time, History and the writimg of History: the Order of Time <http://www.fflch.usp.br/dl/heroes/excerpta/hartog.html>. Acesso em: 18 abr. 2010.
LUTERO, Martinho. Aos Conselhos de todas as cidades da Alemanha para que criem e mantenham escolas cristãs (1524). In: Obras selecionadas (v. 5) – Ética: fundamentos, oração, sexualidade, educação, economia. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1995. pp. 302-325.
______. Ao honrado e prudente Lásaro Spengler, síndico da cidade de Nüremberg, meu especial amado senhor e amigo. In: Obras selecionadas (v. 5) – Ética: fundamentos, oração, sexualidade, educação, economia. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1995. pp. 327-331.
______. Uma prédica de Martinho Lutero para que se mandem os filhos à escola. In: In: Obras selecionadas (v. 5) – Ética: fundamentos, oração, sexualidade, educação, economia. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1995. pp. 331-333.
______. Sermão ou prédica para que se mandem os filhos à escola. In: In: Obras selecionadas (v. 5) – Ética: fundamentos, oração, sexualidade, educação, economia. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1995. pp. 333-363.
KOSELLECK, Reinharet. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora da PUC-RJ, 2006.
RÜSEN, Jörn. História viva - Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora da UnB, 2007.