Bandeira de Cuba |
Pois bem, cresci, cognitivamente, e
produzi a minha própria avaliação sobre a importância de Fidel Castro para as
utopias da esquerda, em vigor na América Latina, a escandalosa iniciativa do
“bloqueio à Cuba” e as limitações da “Revolução” no que diz respeito à
liberdade de expressão, etc. Contudo, as notícias sobre a excelência da Ilha, em
determinados setores como a educação, não pararam de chegar aos meus ouvidos.
Nos mesmos anos de crise e no pós-dissolução
da União Soviética, o sistema educacional cubano era considerado um sucesso,
comparado aos demais países que passaram por revoluções socialistas (Carnoy,
1989; Gasperini, 2000). Em 2014, quinze anos depois, portanto, o Banco Mundial
(sim, o “pavoroso” Banco Mundial dos meus tempos de adolescência) afirma em
relatório que o sistema educacional cubano é o melhor da América Latina e do
Caribe, destacando os usos e abusos de algumas medidas simples como: a
proximidade entre o órgão gestor do sistema (o Ministério da Educação) e as
instituições de formação de professores e o emprego de 72% da carga horária dos
cursos de formação de professor para atividades de prática de ensino no
interior das escolas: são 5.600 horas que ajudam a fazer a
diferença em relação, por exemplo, ao Brasil (Bruns; Luque et. al, 2014). Para
resumir a história, o sistema cubano está entre os melhores do mundo,
juntinho aos de Singapura, Finlândia e Canadá.
Em 2009, o súbito interesse de parte
da elite econômico-financeira brasileira pela educação pública resultou na
tradução a baixo custo do livro Cuba’s Academic
Advantage: Why Students in Cuba Do
Better in School
(2006) [A vantagem acadêmica de cuba:
por que seus alunos vão melhor na escola] (Fundação Lemann, 2009). Os “segredos
para o sucesso” da Ilha, segundo Martin Carnoy, Amber Gove e Jeffery Marrshall
(2009, p. 156), são mantidos, desde o estudo realizado na década de 90 do século passado:
Em Cuba, ironicamente, as escolas
dirigidas pelo governo são organizadas para funcionar como muitas empresas
privadas tradicionais das sociedades capitalistas. Elas supervisionam seus funcionários-gerentes, ajudam-nos a
aumentar a produtividade, a conhecer melhor seus clientes e a monitorar o
produto escolar com cuidado.
Como os termos acima são bastante
ofensivos aos meus ouvidos de “ex-revolucionário”, vou replicar a citação em expressões
mais palatáveis:
Uma das chaves para o
sucesso cubano em educação é o recrutamento, para o magistério, dos melhores
alunos do ensino médio e a excelente formação que lhes é dada, ao redor de um
sólido currículo. Outra é a garantia de que os alunos são saudáveis e estão bem
alimentados. E a terceira é o sistema de tutoria e supervisão dos professores,
focada na melhoria da instrução.
Mas o elemento crucial é
o compromisso total com a melhoria dos padrões de ensino e fazer o que for
necessário para que esse padrão chegue até as salas de aula do menor vilarejo
das regiões mais pobres (Carnoy; Gove; Marshall, 2009, p. 18. Grifos nossos).
Com todo o acúmulo de
informação que temos sobre o Banco Mundial e os seus velhos planos de abrir o
secundário e o superior ao setor privado, entre outros interesses, acho difícil
discordar da razoabilidade das suas conclusões.
* * *
Todo esse preâmbulo, em síntese, produzi
para apresentar as seguintes questões: (1) se a educação escolar cubana, comparada
a dos países da América Latina, Caribe, América do Norte, Europa, Ásia e
Oceania é considerada de excelência (dentro de uma provável aceitação do
leitor sobre a razoabilidade referida acima), por que emprego do currículo nacional,
estruturado em “materiais instrumentales”
(língua espanhola e matemática), “noções
elementales” (sobre a natureza e a sociedade), “atividades” (educação física, laboral e estética) e “asignaturas” (história de Cuba,
geografia de Cuba, ciências naturais, educação física) é reconhecido com um dos
pilares do sistema? (2) Qual é o lugar da história dentro desse currículo
altamente centralizado em um país de proporções espaciais e de contingente
populacional reduzidos?
Um currículo a serviço da
Revolução
A resposta à primeira questão é simples e já foi comunicada
por vários especialistas ao tratarem do ensino de história como memória nacional
em diversos países. Um dos trabalhos mais conhecidos no Brasil sobre o tema é o livro de Marc Ferro,
intitulado Comment on raconte l’histoire
aux enfants à travers le monde entier (Paris: Payot, 1986). Aqui vou me
restringir ao mais recente tese defendida no Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade de Brasília: Guerrilhas
da memória - Estratégias de legitimação da Revolução cubana (1959-2009), de
Giliard da Silva Prado, orientada pelo professor Jaime de Almeida.
O título já torna público o
segredo: para legitimar a Revolução e a manutenção do grupo que está no poder
há quase 60 anos foi necessário criar uma série de estratégias de
representação, escrita, reescrita, uso e reuso do passado cubano. Prado
examinou algumas dessas medidas: a metamorfose dos discursos comemorativos da
Revolução, as relações de “amizade/inimizade” entretidas com os Estados Unidos
e a União Soviética, e a ação discursiva e repressiva dos tribunais
revolucionário sobre os “inimigos [internos] da pátria” (Prado, 2013).
Ele mostrou como os discursos foram
moldados ao sabor dos contextos econômico e político e delineou quatro momentos
característicos para essa história: a fase “nacionalista e democrática”
(1959-1961), a “socialista e marxista-leninista” (1961-1969), a fase do
socialismo atrelado às reformas da União Soviética (1970-1979), e a volta ao
“nacionalismo revolucionário” (1980-2014). Em metáforas mais prazerosas, o
Estado cubano inicia a sua propaganda com tons verde-oliva, passa ao vermelho
(nativo), ao vermelho” (soviético) e, por fim, volta ao verde oliva dos anos
1950. Será que apresentará uma nova tonalidade com o início do fim do “bloqueio”,
anunciado há 15 dias? Será que as relações de “amizade/inimizade serão
modificadas quando o "outro" for os EUA?
EUA ignora as orientações da ONU contra o embargo. |
Essas perguntas e muitas outras (inclusive as que surgem no momento do “desbloqueio”, relacionadas à formação dos novos jovens cubanos) devem ser respondidas por Ana Luíza Araújo Porto (IFET/AL), aprovada em doutorado, recentemente (3, dez. 2014), no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe com projeto que esmiuça o ensino de história em Cuba. Da minha parte, neste texto, apenas abro, principalmente para a interessada, Luiza Porto, o varedo que a conduzirá ao conhecimento aprofundado do lugar da disciplina escolar história no currículo nacional prescrito pelo regime cubano, inclusive o que está exposto na rede mundial de computadores e que ela mesma divulgou no face book. Aqui, seguem as primeiras versões de resposta à segunda questão apontada há pouco.
O
“Programa de Estudio” e a legitimação
do maxismo-leninismo?
Na Ilha, a história é asignatura inserta no segundo ciclo da
escola “primaria” (“Historia de Cuba” - 5º e 6º ano), em
toda a “secundaria” (“Historia Antigua” e “Historia de la Edad Media” – 7º, “Historia Moderna” e “Historia Contemporánea” – 8º, história
de “Cuba” [de los antecedentes de la nacionalidade
y la nación cubana”, século XVI, até “La
obra de la Revolución, década de 1990 do século XX] – 9º e na escola “media superior” (“Historia Contemporánea”, “Historia
de América” – 10º, história “del Pueblo
cubano” [do século XVI a 1952] – 11º, e “La República que soñó Martí” [do início do século XX a 1952] – 12º
ano.
Poster comemorativo. |
Se nos aproximarmos ainda mais, veremos que as expectativas são apresentadas do modo mais detestável (entre os pesquisadores de ponta na área): são listas de conhecimentos substantivos. Nada de verbos (habilidades, fazer o quê com algo). Quando descemos ao detalhe, aí é que aumentam as chances de o programa vir a ser rotulado de conservador, no sentido da seleção dos objetos do conhecimento histórico: são, efetivamente, as batalhas, as ideias e ações dos grandes homens. Mas, há uma singularidade em relação aos críticos brasileiros (anti-Cabral, anti-D. Pedro I, anti-Deodoro da Fonseca, enfim, anti-Médici): são, dominantemente, as batalhas, as ideias e as ações dos grandes homens que construíram a Cuba do século XX (José Martí ganha relevo), antecedidos da pré-colônia, colônia e encarnados nas tentativas de independência, de neo-colonização, Revolução e manutenção da Revolução.
Quem viveu os anos 1980, como eu, e
foi simpático à Cuba – ouvindo Caetano Veloso cantarolar “mamãe eu quero ir à
Cuba, quero ver a vida lá” – pode rapidamente justificar tal opção, usando o
velho e (outrora?) sábio Plekhanov (1995, p. 199):
os
indivíduos exercem uma influência considerável no destino da sociedade, mas
esta influência é determinada pela estrutura interna dessa sociedade e pela sua
relação com outras sociedades. [...] Assim, as qualidades pessoais dos homens
eminentes determinam as características individuais dos eventos históricos; e o
elemento acidental [...] desempenha sempre um papel no curso destes eventos,
cuja orientação é determinada [...] pelo desenvolvimento das forças produtivas
e pelas relações mútuas entre os homens e o processo econômico-social de
produção.
Todavia, os que não demonstram “boa
vontade” com o sistema cubano, também e imediatamente, vão afirmar: não há nada
de renovado na seleção de conteúdos substantivos e, consequentemente, nas
concepções de aprendizagem e de ensino (limitando-se, é claro, ao
currículo prescrito e divulgado na Internet hoje). Trata-se de um dos tipos
mais conhecidos da história exemplar (e se é exemplar, não pode ser crítica. Será?).
Uma história de grandes homens por seus pensamentos, tomadas de decisão e ação.
Por traz desses fazeres humanos está um rígido sistema de valores comprometidos com determinada causa. Assim, a prescrição cubana indicaria um
ensino de história retrógrado.
Obama e o início da solução sobre o embargo. |
Saindo um pouco desse labirinto e voltando a atenção ao colega que manifesta antipatia à prescrição curricular cubana, quero lembrar que um fato complica o fechamento da sua equação sobre a ideia exemplaridade: o suposto telos que alimenta e prepara o conhecimento histórico e a consciência dos alunos foi atingido em meados do século passado - Revolução da década de 1950.
Então as finalidades previstas e/ou inventadas pelos grandes homens teriam se transformado em mito de origem? Esse tipo de questão transforma o modelo cubano ainda mais interessante como objeto de estudo.
Vamos adiante. Sendo crítica ou exemplar, a
história prescrita pelo programa nacional não é perfeita, ou seja, não atinge,
evidentemente, os propósitos imaginados pelo regime. Escrevendo no interior de
Cuba e a partir de entrevistas com os alunos do ensino superior, Lyen Labrador
Urraca ([2007]) lista uma série de insuficiências geradas pelo programa ou a
partir da forma de aplicação desse instrumento: dificuldades para expressar
argumentos, valorizar a forma oral e escrita, identificar características de
períodos históricos e estabelecer relações temporais entre acontecimentos.
Quanto às causas, Urraca é enfático: o ensino superior é ineficaz na criação de
estratégias para a aprendizagem da experiência dos grandes homens, para explorar os
valores expressos por esses personagens e relacionar tais valores à vivência extraescolar dos alunos.
Se fosse possível materializar a voz
do(s) autor(es) do programa, ouviríamos as seguintes respostas em sua autodefesa:
“a história escolar em Cuba não pode constituir-se, dominantemente, na
trajetória dos grandes homens. Concebemos história como vida (acontecimentos e
processos) e conhecimento (fundamentado em leis). E o conhecimento histórico dá
a compreender a origem e o desenvolvimento da espécie humana e dos povos, sendo
a fonte de sentimentos e de ações que orientam homens e mulheres em suas
respectivas vidas práticas” (Não exatamente com esses termos e ordem é o que
aparece na introdução aos “Programas de Estudo” de história). Mas, seria esse o
sentido construído pelo conjunto conteúdos substantivos listados no programa? Vamos
deixar a resposta, mais uma vez, com a doutoranda Ana Luiza Porto. Importa agora encerrar essa
postagem que já se excedeu mais que o esperado.
Conclusões
Como fiz nos últimos escritos,
aqui no blog, tentei narrar fragmentos de uma experiência extranacional para
inspirar (iluminar) as tarefas que se nos avizinham: a construção de uma nova
Base Nacional Curricular Comum de história para a escolarização básica no
Brasil e a posterior reforma das licenciaturas em história, ambos prescritos
pelo Plano Nacional da Educação (2014).
Assim, partindo dos comentários sobre
as prescrições cubanas, espero ter deixado claro que, nesse caso, a instituição
de uma base nacional comum não exclui a história como disciplina acadêmica,
tampouco reduz a sua importância entre os demais saberes que compõem o currículo.
Aliás, em um Estado sob extrema pressão externa (e interna), a alternativa pela
centralização foi exitosa como forma de controle social (o que os
revolucionários e os ex-revolucionários têm pavor que aconteça no Brasil).
Por outro lado, a iniciativa estabeleceu
as bases, pelo menos em outras disciplinas, para um bom acompanhamento da
formação de professores, da ação dos professores no interior das escolas e, o
mais importante, dos resultados da ação docente na vida prática dos alunos,
quando adultos (Mesmo quem não entende de política educacional fica tiririca da
vida quando perdemos no vôlei, basquete, box, atletismo, nos elogios ao sistema
educacional e, recentemente, quando somos “invadidos” por milhares de médicos
cubanos: como eles conseguem isso?!!!).
Evidentemente, não somente a
prescrição centralizada bastou. Foram necessárias grandes doses de autoritarismo
em várias dimensões da vida prática (a diminuição de expectativas da população letrada,
quanto às possibilidades de escolher um ofício a partir da sua própria “razão”
é uma delas). Os reduzidos espaço físico e contingente populacional também
auxiliaram no combate aos problemas cruciais que ainda afetam sociedades modernas,
a exemplo do subdesenvolvimento das capacidades humanas de ler e de compreender o que se está
lendo. Contudo, é forçoso refletir: centralização, leitura, compreensão e
alfabetização histórica em porções aceitáveis para a maioria da população
somente são realizáveis em regime discricionário? Seleção de conteúdos substantivos,
valores e estratégias mínimas, postas em uso em todo território nacional pelo Estado, somente são compatíveis com a legitimação de uma Revolução e de um grupo
político no poder?
No extremo das elocubrações, questiono,
por fim: teríamos que promover a luta armada e manter uma peleja de cinco
décadas com os Estados Unidos e a China para ver os nossos alunos e professores
de história estabelecendo relações lógicas de tempo e espaço, quando questionados,
por exemplo, sobre as origens dos prováveis desvios de verba em milhares de
obras financiadas pelo Estado, desde a construção de Brasília (para não sucumbir ao mito das origens - Ave François Simiand!) e as
expectativas de fortalecimento do sistema representativo no país? Conhecimento,
valorização, crítica e prática de categorias como "público" e "privado", "ditadura" e "democracia", "neoliberalismo" e "social democracia" não deveriam pautar
os currículos de história da educação básica de TODO o país? Ou esses valores,
conhecimentos e atitudes seriam apenas conteúdos históricos reservados à formação
de juízes paranaenses?
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. "Base nacional curricular comum" em Cuba. Aracaju, 28 dez. 2014. Disponível em: http://itamarfo.blogspot.com.br/.
Para envolver-se com a discussão sobre a "Base nacional curricular comum", que está estreitamente relacionada ao tema "ideologia", acompanhe a série:
Referências
BRUNS,
Barbara; LUQUE, Javier et. al. Professores
excelentes: como melhorar a aprendizagem dos estudantes na América Latina e
no Caribe. Washington: Banco Internacional de Reconstrucción y Fomento/Banco
Mundial, 2014.
CARNOY, Martín. Educational reform and social transformation
in Cuba, 1959-1989. In: CARNOY, M.; SAMOFF, J. Education and socal transition in the Third World. Prnceton:
Princeton University Press, 1989.
CARNOY, Martin; GOVE, Amber K.; MARSHALL, Jeffery H. A vantagem acadêmica de Cuba: por que
seus alunos vão melhor na escola. São Paulo: Fundação Lemann, 2009.
CARNOY,
Martin; GOVE, Amber K.; MARSHALL, Jeffery H. Cuba’s Academic Advantage: Why
Students in Cuba Do Better in School.
Palo Alto, CA: Stanford
University Press, 2007.
FERRO, MARC. Comment on
raconte l’histoire aux enfants à travers le monde entier. Paris: Payot,
1986.
GASPERINI, Lavinia. The Cuban Education System. Country Studies Education Reform and
Management Publication Series. v. 1, n. 5, jul. 2000.
Learning in Latin America and the Caribbean]. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/.
Consultado em 1 dez. 2014.
PLEKHANOV,
Georgi. O papel do indivíduo na história. In:GARDINER, Patrick. Teorias da história. 4 ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1995. pp. 170-205.
PRADO, Giliard da Silva. Guerrilhas
da memória: estratégias de legitimação da Revolução Cubana (1959-2009).
Brasília, 2013. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em
História, Universidade de Brasília.
Programas de Estudo [de historia de Cuba]. Disponível em: http://historia.cubaeduca.cu/. Consultado em: 5 dez. 2014.
URRACA, Lyen Labrador. Algunas
consideraciones sobre la enseñanza de la historia de Cuba. Disponível em: http://www.monografias.com/trabajos45/ensenanza-de-historia/ensenanza-de-historia.shtml#evol.
Consultado em 12 jun. 2013.
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