segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

“Base nacional comum” na África do Sul (1997-2014)

Rainbown nation
Existe base nacional curricular comum na África do Sul? Se ela existe, quais desdobramentos a sua instituição provoca sobre o estatuto disciplinar da história? Nesse texto, dou sequência à discussão sobre o tema que nos tem animado nos últimos cinco dias (e, hoje, Luis Fernando Cerri, da UEPG, prometeu juntar-se a nós). Ao final, como na postagem anterior, efetuo comparações, novamente, assimétricas, entre a situação da África do Sul e a do Brasil.
A África do Sul passou por um período ruptura (que resultou, excepcionalmente, em unidade) e de posterior refundação identitária, imediatamente após o fim do regime de Apartheid, em 1994, e a transição do poder à maioria não branca. Nesse contexto, dois modelos disputaram a primazia dos novos traços diacríticos a serem construídos: o padrão étnico e o padrão democrático (Guyver, 2007; Welton, sd.). Ao que parece, o modelo democrático saiu vencedor.
Isso implicou em mudanças radicais na formação de pessoas, como a instituição da escolarização obrigatória universal, a elaboração de um currículo nacional de feição inclusiva ou, mais que isso, um currículo de base multiculturalista. O curso das mudanças foi, assim, marcado pela adoção de interpretações alternativas à versão nacionalista Afrikaner, incorporação da história social, valorização da história do mundo, e pela a adoção da história integrada no 12º ano da escolarização básica (Eeden, 2010, p. 111). O novo desenho dos currículos, peça politicamente orientada por excelência, contou com a participação de historiadores das universidades de KwaZulu-Natal, Stellenbosch e Cape Town. Entre as mais calorosas discussões estavam o valor da cronologia e as frágeis “ligações entre os temas globais, nacionais e locais” (Eeden, 2010, p. 113).
Para o que nos interessa nessa série de estudos sobre a “base nacional curricular comum”, importa admitir que a África do Sul optou por um “currículo nacional”. Em linguagem brasileira, a África do Sul, em momento de ruptura, não produziu “diretrizes” ou “parâmetros”. Ela adotou um “programa” de história para todo o país. Dizendo de outro modo, as diretrizes são a própria Constituição da África do Sul, promulgada em 1996, e programa é o “Currículo Nacional Oficial para os anos 0-12” [The National Curriculum Statement Grades R – 12] (NCS).

Da Constituição ao currículo nacional
O Currículo nacional da África do Sul foi criado em 1997, revisado em 2000 e em 2009. Desde 2012, currículos para os anos R-9 e para o 10-2 foram unificados, dando origem ao atual NCS. Fazendo uma analogia para o nosso melhor entendimento, operou-se algo idêntico ao caso brasileiro, que incorporou todas as diretrizes (ensino fundamental, médio etc.) em apenas um documento (Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais, de 2010).
O NCS traduz, assim, os princípios da Constituição de 1996: sanar as divisões do passado e estabelecer uma sociedade baseada em valores democráticos, justiça social e direitos humanos fundamentais; promover a igualdade de vida para todos os cidadãos e a liberdade de cada pessoa; estabelecer as bases para uma sociedade democrática e aberta na qual o governo baseia-se na vontade do povo e todo cidadão é igualitariamente protegido pela lei; e construir a unidade democrática da África do Sul capaz de ocupar legitimamente o seu lugar de direito na família das nações (South Africa, 2006, p. 4).
Decodificando tais princípios em expressões mais curtas, o NCS fundamenta-se na “transformação social”, no “pensamento crítico”, em “conhecimentos e habilidades” sofisticadas, “progressão”, valorização dos saberes nativos e dos direitos humanos”, “credibilidade”, “qualidade e eficiência” e “promoção de uma educação comparável aos outros países em qualidade, extensão e profundidade”.
Observem que os princípios do NCS não reproduzem tal e qual os princípios constitucionais (novamente, a analogia, como faz a nossa LDBN em relação à constituição de 1988 e as antigas diretrizes à LDBN). Eles os interpretam. O mesmo ocorrem com os objetivos que são estruturados em habilidades: “identificar e resolver problemas e tomar decisões usando o pensamento crítico e criativo”, “trabalhar individual e coletivamente”, “organizar e cumprir suas atividades responsavelmente”, “buscar, analisar, organizar e avaliar informação”, “comunicar-se empregando habilidades de leitura em variados suportes” (visuais, escritos, simbólicas), “empregar ciência e tecnologia responsável e criticamente em benefício do desenvolvimento e da saúde dos outros” e “compreender o mundo como um conjunto de sistemas correlacionados” (South Africa, 2006, p. 10). 
Multiculturalismo
Tratamos dos princípios e objetivos. Agora, sigamos aos componentes curriculares. O NCS é estruturado em áreas que podem ou não coincidir com as nossas conhecidas disciplinas escolares. Para os primeiros três anos (foundation phase) são obrigatórios a aprendizagem da “língua [da casa]” (primeira língua), de uma “segunda língua”, “matemática” e “habilidades para a vida” (saúde, arte e primeiros conhecimentos científicos). Do 4º ao 6º ano (intermediate phase), são acrescidas as áreas de “ciências naturais” (incluindo-se a “tecnologia”) e as “ciências sociais”. As “habilidades da vida” também ganham novos conhecimentos: “educação moral” e “educação religiosa”. Do 7º ao 9º ano (senior phase) as áreas se mantém, com a ampliação de “tecnologia” e de “ciências de gestão econômica”.  Por fim, nos anos 10º, 11º e 12º (further education and training phase), além da base instituída desde os anos iniciais (língua [de casa], segunda língua, matemática e habilidades para a vida), os alunos podem escolher três outros objetos (entre os listados ao final do próximo parágrafo).
Toda essa estrutura culmina com a avaliação que possibilitará ou não a entrada do aluno em um curso de nível superior. Ao final de 12 anos de escolarização, ele pode receber o Higher certificate se obtiver um escore de 40% no exame de, ao menos, três objetos (entre os quais a primeira e a segunda língua) e 30% em outros três. O Diploma, por sua vez, é concedido aos que obtém de 40% a 49% em quatro objetos de estudo. Já o Bachelor’s Degree, esse só é acessível aos que atingem o escore de 50% a 59% ou mais, em quatro objetos de estudo, escolhidos entre os seguintes: “accounting”, “ciências agrícolas”, “negócios”, “artes dramáticas”, “engineering graphics and design”, “geografia”, “história”, “consumer studies”, “tecnologia da informação”, “línguas”, “ciências da vida”, “matemática”, “alfabetização matemática”, “música”, “ciências físicas”, “estudos de religião” e “artes visuais” (South Africa, 2011a).

Do currículo à disciplina e ao livro didático de história
Conhecemos os componentes curriculares e a lógica de seleção para a entrada no ensino superior. Vimos que há, efetivamente, uma base comum de conhecimentos (áreas), progressivamente ampliada, culminando, no 12º ano, com a possibilidade de opção de estudos (ainda que a base seja mantida, mesmo no último ano da escolarização). Mas o que dizer da história? Qual a sua situação em um currículo nacional que, na fria letra da lei, privilegia a constituição do currículo nacional por áreas?
Inclusão
A história está presente dos anos 4º ao 12º. Na 2ª e 3ª etapas (itermediate phase e senior phase), entretanto, está incorporada na área das “ciências sociais” [Social Sciences]. Contudo, em todos os programas das ciências sociais, a história mantém espaço reservado em termos de objetivos (“criar o interesse e o prazer pelo estudo do passado”, por exemplo), habilidades específicas (“compreender o valor das fontes para o estudo do passado”’), sugestões de aplicação das habilidades históricas específicas (“reconhecer variadas fontes – diários, cartas, notebooks”), metodologia de ensino (construir um museu ou escrever uma biografia), conhecimentos (tópicos – “o mundo por volta de 1600” – e em subtópicos –  “governo e sociedade do Império Mughal/Índia), formas de avaliação (realização de projetos, aplicação de testes ou  exames clássicos), quantidade e modelos de questão para os exames (“Como a Guerra Fria modificou as relações internacionais após a II Guerra Mundial?”), níveis progressivos de exigência para julgar o desempenho dos alunos (baixo – conhecer e lembrar, médio – compreender e aplicar, e alto – analisar, avaliar e sintetizar).
O nível de prescrição dos programas chega ao detalhe de estipular a quantidade de horas para o ano letivo (35 semanas para o 10º ano), para um tópico (uma semana para a Revolução Francesa) ou a duração de um exame, constituído por seis questões (3 horas).
No que diz respeito ao livro didático, a adoção de um currículo nacional altamente prescritivo parece não ter abalado a sua importância. O contrário é o que observamos, limitados à literatura aqui citada. O que reforça essa hipótese é a própria mudança evidenciada nos seus conteúdos conceituais substantivos, ainda que não na velocidade que os pesquisadores desejavam.
Em 2002, após a primeira revisão dos NCS, Sascha S. Polakow-Suransky denunciava, por exemplo, que muitos manuais de história do tempo anterior ao Apartheid circulavam nas escolas da África do Sul, negando “a colonização e conquista europeia” e afirmando que “brancos e negros chegaram simultaneamente a uma desabitada África do Sul” (Polakow-Suransky, 2002, p. 1). Trata-se do mito do “grande vazio”, disseminado em livros do final do século XIX, como também denunciou Melanie Walker (1990), quatro anos antes do fim da política de segregação. Mas nada igual aos manuais do primário, da década de 80 do século passado, que pregavam a “superioridade dos brancos sobre os negros em razão de [os brancos serem] uma civilização mais antiga”, o “Afrikaner como militarmente inteligente e forte e os ingleses, negros e comunistas como seus inimigos principais”, e a “autoridade do Estado, fundada sobre a sanção divina” (Carpentier, 2000, p. 189).
Apesar da extinção da história como componente curricular em 1997 (entendendo componente curricular como elemento primeiro do currículo nacional – “língua [da casa]”, “matemática” entre outras) e da sua inclusão como objeto de conhecimento das ciências sociais, os livros didáticos de história continuaram a ocupar lugar destacado no cotidiano docente. A prescrição do NCS, mesmo por área, transformou o livro didático de história em meio de divulgação de novas interpretações sobre o passado da África do Sul. A biografia de Nelson Mandela, por exemplo, foi apresentada como modelo de combate “pela liberdade de negros e de Brancos” e os Afrikaners não mais são vistos como “povo eleito” (Carpentier, 2000, p. 195).
O livro didático permaneceu também com veiculador de utopia nacionalista, não tanto em termos de pluralismo étnico, mas ainda como ferramenta de unidade nacional sob a ideia de democracia. E democracia, abertura da África do Sul para o mundo (ampliação da história mundial, inclusão de temas como a globalização, entre outros), são, efetivamente, resultantes de prescrições emanadas do NCS.



Conclusões
O que tentamos explicitar acima foi o fato de a África do Sul ter entendido como seu novo regime de historicidade a experiência inaugurada a partir de 1994. Essa percepção teve origem, em grande parte (para o que nos interessa diretamente), no interior das universidades, entre os historiadores, sobretudo da Universidade do Cabo. A necessidade formação de pessoas dentro de um projeto nacional (identidade e Estado) democrático e não racialista (uma novidade) gerou um consenso em relação à produção de um currículo nacional, evidentemente, bastante prescritivo, embora não revanchista. No Brasil, 1985 não é baliza consensual, mas pode, hipoteticamente (para fins de discussão) ser considerado o marco de um novo presente. Aqui também os currículos de história foram considerados instrumentos para a construção de uma sociedade democrática. Contudo, nem as fraturas sociais ganharam magnitude idêntica à da África do Sul, nem as vozes historiadoras contrárias ao regime militar estavam tão cerceadas no ambiente universitário.
Consideradas as versões marxistas sobre o processo brasileiro, podemos afirmar que toda espécie de “ismo” de esquerda ocupou certo espaço nas salas de aula, na pesquisa e nos impressos (vamos esperar o livro de Rodrigo de Pato Sá, que trata do assunto). Contudo, a solução final em termos de formatação de novos currículos para a educação básica, por motivos que não vamos aqui discutir (já estamos nas conclusões), não foi a construção de um documento nacional, e sim a elaboração de documentos estaduais, refletindo disputa coetânea e anterior à Abertura (redemocratização, fim da ditadura etc), entre os vários agentes que vendiam a renovação política (no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, por exemplo). Dizendo de outro modo, a ditadura militar, na política educacional brasileira, não representou um Apartheid e a ideia de documento nacional, no Brasil, pode ter sido entendida como ranço autoritário. Em suma, currículo nacional dá um sopro de nova vida a povos altamente segregados e representa o suspiro da morte para povos que já se consideram unificados (pela cordialidade, jeitinho, pelo amor ao verde e amarelo de Getúlio Vargas, pelo futebol etc. etc.).
A outra consideração tem a ver com o status da história: disciplina ou conteúdo de área? Com a experiência da África do Sul, penso que podemos concluir com a seguinte máxima: não importa o rótulo, não importa o ano escolar no qual esteja situada. A história reina independente como saber escolar. E reina forte. Em um país que se esforçou para refazer os livros didáticos, dotando-os de novas representações sobre o passado, com vistas a um presente de reconciliação, ou seja, em uma situação extrema, muito distante do que passamos hoje no Brasil, a história transformou-se em conteúdo das ciências sociais e permaneceu com tempo e espaço bem demarcado, material didático independente e, ainda mais, fruto de polêmicas intermináveis.
Depois de fazerem desaparecer o excepcionalismo e o racismo de Estado de suas páginas, mediante um currículo nacional, os livros de história são desafiados a não inverterem os sinais racistas – de segregação negra à segregação branca (Engelbrecht, 2008) –, a tornarem efetivos tanto a inclusão de questões de gênero e meio ambiente, valores democráticos, quanto a integração da história nacional com a história mundial (sem as ilusões vendidas pelos entusiastas do processo de globalização, ou seja, sem tornar a experiência sul-africana em um ingênuo apêndice dos interesses de conglomerados transnacionais). Alguma coisa diferente do Brasil? Sim: o nosso medo em relação ao novo. Mas, sejamos compreensivos com nós mesmos. Somos humanos e humanos têm medo.




Referências
CARPENTIER, Claude. Rupture politique et enseignement de l’histoire em Afrique du Sud: les manuels de l’enseignement primaire. International Review of Education, v. 46, n. ¾, p. 283-303, 2000. (Printed in the Netherlands).
EEDEN, Elize S. van. South Africa’s revised history curriculum on globalism and national narratives in grade 12 textbooks. História, v. 55, n. 1, p. 110-124, mei./ maiy., 2010.
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GUYVER, Robert. The history curriculum in three coutries – curriculum balance, national identity, prescription and teacher autonomy: the cases of England, New Zealand and South Africa. S.n, 2007. Disponível em: https://centres.exeter.ac.uk/historyresource/journal13/Guyver%2022.08.07.doc Consultado em 30 nov. 2014.
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SOUTH AFRICA, Department of Basic Education. Questions & answer booklet for the advocacy of the implementation of the National Curriculum Statement (NCS) Grades R-12. [Pretoria]: Department of Basic Education, 2006. Disponível em: www.education.gov.za Consultado em 30 nov. 2014.
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WALKER, Melanie. History and History Teaching in Apartheid South Africa. Radical History Review, v. 46, n. 7, p. 298-308, 1990.
WELDON, Gail. A comparative study of the construction of memory and identity in the curriculum of post-conflict societies: Rwanda and South Africa. S.d. Disponível em: http://centres.exeter.ac.uk/historyresource/journal11/Weldon.pdf Consultado em: 30 nov. 2014.

Fontes das imagens: 
Excetuando-se a fotografia (no topo da postagem), todas as ilustrações foram extraídas de SOUTH AFRICA (2006).



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