quarta-feira, 20 de fevereiro de 2002

O livro didático de história de Sergipe

O livro didático é um dos elementos menos explorados pela história da historiografia. As sínteses sobre a escrita da história brasileira praticamente excluem exemplares do gênero. Não obstante, esse tipo de narrativa constitui-se em uma das mais preciosas fontes sobre o ofício do historiador e um importante indicador acerca do ensino de história nos níveis fundamental e médio (metodologias e políticas públicas) e do perfil do cidadão que se deseja “formar” no ato de publicação das obras. Essas prerrogativas fazem do livro escolar objeto privilegiado tanto da História da Educação quanto da História da Historiografia, ambas circunscritas nas vertentes da História Cultural. Esse artigo inventaria as iniciativas já identificadas em Sergipe ao longo dos últimos cem anos e convida os pesquisadores a olharem para o livro didático de história com maior atenção.
Em Sergipe, os primeiros produtos desse gênero vieram a público logo após a proclamação da República sob a rubrica de corografias (obras descritivas que enfocam regiões, Estados sob os aspectos físicos – limites, clima, relevo, hidrografia etc.;  e políticos – história, representação política, listagem de comarcas, municípios, povoados etc.). Por volta de 1893, já estava pronto o Quadro Corográfico de Sergipe de Laudelino Freire embora fosse publicado somente em 1898 pela H. Garnier do Rio de Janeiro. Antecipando-se ao irmão de Felisbelo Freire, o baiano L. C. da Silva Lisboa lançou, no ano de 1897, pela Imprensa Oficial de Aracaju, a Corografia do Estado de Sergipe, obra rigorosamente resenhada pelo historiador-geógrafo Manoel dos Passos de Oliveira Telles em 1903.
As corografias em Sergipe atravessaram o século XX em plena forma. Delas se ocuparam Florentino Menezes e Antônia Angelina de Menezes Sá (ambos enfocando aspectos do Brasil), Evangelino José do Faro – Corografia de Lagarto (inédita), Laudelino Freire – Quadro Corográfico (2 ed. Rio de Janeiro/Paris: H. Garnier, 1902) e Elias Montalvão – História e Corografia de Maruim (Aracaju: F. Sampaio, 1921). Mas, foi ainda no século XIX que surgiu o primeiro livro didático especificamente elaborado para a matéria de Clio. Trata-se de História de Sergipe (Aracaju: Tip. do Estado de Sergipe, 1898), um resumo da obra homônima publicada em 1891 por Felisbelo Freire. O livro nasceu no momento em que alguns dos novos Estados federados buscavam legitimar sua independência política e suas posses territoriais, sendo indicado para uso em escolas primárias e como introdução ao estudo da “história pátria”.
A iniciativa de Laudelino Freire pode não ter surtido o efeito desejado. Um livro não seria didático somente por reduzir textos e concentrar conteúdo. É o que parece ter entendido a Congregação da Escola Normal do Estado de Sergipe que considerou Meu Sergipe (Aracaju: Tipografia Comercial, 1916) de Elias Montalvão como o primeiro “livro puramente didactico... em matéria de História e Corographia de Sergipe”. A aprovação oficial se dera em virtude da adequação da linguagem, segundo o autor, “bem accommodada á comprehensão da creança”. Essa linguagem, nada mais é do que a narrativa da experiência local em forma de contos. Em Meu Sergipe quem conta a história são personagens ligados à vida do estudante como a avó, a tia, os colegas de turma e o professor. A obra foi reeditada em 1919 sem grandes alterações no conteúdo original.
Somente depois de meio século, o ensino primário ganharia novo livro didático. Coube ao cearense Acrísio Torres de Araújo sintetizar a vivência sergipana a partir da trajetória política do executivo estadual. Os capítulos enfocam Colônia, Império e República e cada tópico descreve as principais realizações de cada governante. História de Sergipe (Aracaju: s.n, 1967) é um resumo de História de Sergipe produzida um ano antes para os professores dos cursos normal e colegial. Nesse livro, já existe uma tentativa de relacionar a experiência local à nacional. Para o autor, o livro deveria estimular o amor dos sergipanos  por sua terra e, ainda mais importante, preparar os futuros cidadãos para assumirem as tarefas político-administrativas do Estado. O trabalho de Acrísio Torres transformou-se em coleção que pode ter chegado a uma dezena de títulos voltados para as séries do primário e ginásio durante a década de 1970, parte deles sob a classificação de Estudos Sociais.
Na década de 1980, duas obras foram produzidas: Vamos conhecer Sergipe (Déborah Neves) e O novo Sergipe de Genialda Matos de Oliveira (Rio de Janeiro: MEC/FAE,  1988). Segundo Antônio Wanderley, o primeiro historiador a resenhar essa historiografia específica, são trabalhos pretensiosos; em alguns pontos, são oficialistas e conservadores (Gazeta de Sergipe,10-20 nov.1988). Ambos estão repletos de equívocos em termos de texto e iconografia. Sobre a segunda obra, Luiz Fernando Ribeiro Soutelo foi mais além, solicitando, através do Conselho Estadual de Cultura, o recolhimento imediato da obra diante dos “inúmeros erros geográficos, históricos, econômicos e culturais relativos a Sergipe (Of. CEC n.º 89/88).
Em 1991, foi a vez de os professores da Universidade Federal de Sergipe prestarem a sua contribuição à escrita didática. Inaugurava-se a narrativa temática onde cada autor, dentro de sua respectiva especialidade, transferiria para o saber escolar os mais recentes resultados da pesquisa “de ponta”  acerca dos índios, atividades produtivas, poder, terra, trabalho e cultura. A escrita dos Textos para a história de Sergipe, organizado por Diana M. F. L. Diniz (Aracaju: UFS/Banese, 1991), ficou um pouco acima da clientela inicialmente projetada (alunos do antigo segundo grau). Mas, o livro tornou-se a síntese mais utilizada sobre Sergipe, assegurou espaço nas bibliografias e estantes dos professores do ensino de 1º e 2º graus e chegou a servir de base para a exposição de longa duração do Museu do Homem Sergipano. A obra está esgotada há muitos anos e não acredito  que possa reunir os mesmos especialistas em uma segunda edição.
Em 1994, mais uma iniciativa de exposição didática, voltada para as séries iniciais do 1º grau foi veiculada no Estado: Sergipe – geografia,  história (São Paulo: FTD, 1994) de Maria Gorete da Rocha Santos. Curiosamente, apresenta-se como uma espécie de síntese das obras já inventariadas. Mantém a narrativa linear de Laudelino Freire e os recortes temáticos inaugurados por Elias Montalvão (conquista, holandeses, transferência da capital, entre outros). Os espaços para as ilustrações são mais amplos que os textos. Mapas, pinturas e paisagens contemporâneas são incorporados à narrativa dentro da proposta de integrar a experiência local à nacional.
A última iniciativa em termos de livro didático, também para o primário, partiu das professores Lenalda Andrade Santos e Terezinha Oliva, ambas participantes dos Textos para a História de Sergipe. Para conhecer a história de Sergipe (Aracaju, Secretaria do Estado da Educação e do Desporto e Lazer/MEC/BIRD, 1998) mantém o objetivo centenário inaugurado por Felisbelo Freire: demonstrar que Sergipe foi o lugar de importantes momentos da história nacional. Entretanto, as estratégias diferem bastante dos trabalhos anteriores, já que incorporam teses e abordagens em vigor na pesquisa universitária. A disposição da matéria, por exemplo, é feita através de temas e não há preocupação rígida em obedecer a uma cronologia. A grande novidade do livro, também o centro da proposta, é trabalhar os conteúdos da história de Sergipe através de elementos do patrimônio cultural.
Fora da rubrica história “de Sergipe” outras iniciativas devem ser citadas nesse inventário. São, principalmente, as “cartilhas”, “pequenas histórias” e livros didáticos produzidos por professores sobre localidades do interior do Estado que, infelizmente, possuem tiragens reduzidas e não seguem para as bibliotecas públicas. Terra do povo Xocó (Aracaju: MEC/SEED, 2000) é um exemplo:  quem perdeu o lançamento oficial da obra dificilmente poderá conhecer a proposta didática dos professores da Ilha de São Pedro (Porto da Folha) para os alunos indígenas da Escola Dom José Brandão de Castro. As “cartilhas” da professora Kátia Maria Araújo Souza que tematizam Capela (UNIT, 1999) e sobre  o baixo São Francisco (IBAMA/NEA, 1995) já se transformaram em raridade assim como “o livro para ensinar a ler” intitulado Cartilha cultural de Japaratuba que foi produzido pelo Projeto Nordeste (MEC/BIRD, 1998) sob a consultoria de Aglaé D’Avila Fontes de Alencar. Por certo, não deverá ocorrer o mesmo com Vamos conhecer Estância (Estância: Prefeitura Municipal, 2000) de Vera Lúcia Alves França e Rogério Freire Graça. Elaborada sob as perspectivas histórica e geográfica, a obra é dedicada aos mestres (do município, principalmente) em sua batalha diária contra o desconhecimento da realidade local.
Quando o objeto é a capital, a situação é mais alentadora. Estão guardados na memória institucional, por exemplo, os livros Aracaju minha capital, de Acrísio Torres de Araújo e suas reedições e os “cadernos de textos” produzidos pela Secretaria Municipal de Educação dentro do “Projeto Ponta de Lápis”. Dessa última coleção, destinada a professores e alunos do 1º grau, sabe-se notícia de dois números: Aracaju: viver e conhecer, que trata do nome e de aspectos relacionados à transferência e aos primeiros anos da nova capital através de desenhos, letras de músicas, textos e exercícios; e o n.º 2 (Aracaju: SEMED, 1996) um pequeno estudo sobre as praças Fausto Cardoso, Olímpio Campos, Almirante Barroso e General Valadão.
Vê-se, portanto, que as iniciativas em torno do livro didático de História de Sergipe foram escassas. Mas, os produtos conhecidos abrem oportunidades para o enfrentamento de questões importantes relacionadas à prática de produzir historiografia e ensinar História. Apela-se, então, aos que desejam enveredar na pesquisa acerca desses manuais, para a divulgação imediata de novas peças inventariadas. Ao mesmo tempo, sugerem-se algumas problemáticas (dentre tantas outras em nível de produção, circulação e consumo) para a análise e interpretação do gênero didático, alertando, é claro, para o caráter necessariamente pluridisciplinar desse tipo de estudo: o que é ser didático em Sergipe? Qual a relação entre a pesquisa “de ponta” e a história ensinada? Que novos esclarecimentos podem fornecer o livro didático acerca de concepções historiográficas, teorias pedagógicas, práticas de leitura em sala de aula, políticas de educação e projetos de formação do homem sergipano?


Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O livro didático de história de Sergipe. Jornal da Cidade, Aracaju, p. 4-4, 20 fev. 2002.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

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