quinta-feira, 7 de março de 2002

Diálogos com Calazans: A historiografia sobre Sergipe nos últimos 30 anos [1]

Introdução
Há vinte e oito anos o historiador José Calazans advertia que todo trabalho inicial deveria ser julgado com benevolência. No mesmo estudo, em gesto que superava a cortesia acadêmica, Calazans (1992) agradecia “às luzes” dos que pudessem e quisessem melhorar o conteúdo da sua Introdução ao estudo da historiografia sergipana. A partir daí, não houve mais retoques por parte de outros historiadores. O texto parecia perfeito. Também não era para menos; a comunicação de José Calazans Brandão da Silva nascia madura e num período em que “o bastão do comando da historiografia regional” – conduzido desde o início do século por pesquisadores autodidatas e, principalmente, por agências como o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe – passava ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da recém-criada Universidade Federal de Sergipe. Antes de entregá-lo, porém (Calazans também fazia parte do IHGS), o memorável historiador providenciou um balanço da tradição historiográfica produzida na centúria 1870/1970, relacionando autores e registros sobre a experiência sergipana desde o século XVI. Naquele momento, a singela comunicação transformou-se no principal guia de estudos sobre a história e a historiografia de Sergipe.
De 1970 para 2000, como já era esperado, houve mudanças significativas nos estudos históricos. O bastão do comando continuou nas mãos do DHI que difundiu o interesse pelo “sergipanismo” sem descurar do refinamento teórico-metodológico exigido pela ciência histórica. A produção foi ampliada e novas contribuições surgiram em termos de gêneros, temáticas e abordagens. Também mudou a idéia de História da Historiografia: de uma tarefa centrada no inventário de autores e obras (orientação honoriana bem assimilada por José Calazans) para disciplina que ganha foros de teoria do conhecimento. A História da Historiografia, na palavra de Carlos Guilherme Mota (1990, p. 26), é hoje considerada “o mais difícil dos gêneros.” Por fim, mudaram também algumas práticas do ofício: o historiador trabalha em equipe. O profissional erudito – nos moldes do século XIX – não encontra ambiente de formação: não há mais quem controle os textos-chave de todos os domínios de Clio. Vive-se sob a égide da especialização.
A ocorrência de tantas mudanças nas últimas três décadas transforma-se, paradoxalmente, na desgraça e na virtude da Introdução de Calazans. A virtude é que o autor estabeleceu uma periodização (ainda repleta de sentido), e registrou para a memória do saber o estado-da-arte em termos de historiografia local. Isso nos permite avançar na trajetória do ofício, reconhecendo a pertinência da última fase (a historiografia universitária) e promover uma auto-avaliação da prática historiadora já que temos indicadores precisos do que foi produzido nos cem anos inventariados por José Calazans. Por outro lado, motivos idênticos como a dispersão de estudos, profissionais, cursos e escolas (superiores em nível de graduação e pós-graduação) expõem a desatualização do trabalho em termos de indicadores desse último período.
É provável ainda que tais transformações tenham inibido o “melhoramento” da citada comunicação. Na verdade, o aperfeiçoamento ou a continuação (como ele mesmo havia solicitado) de obras, esbarra em problemas, às vezes, insolúveis como a ressignificação de critérios de escolhas do autores e bibliografia a serem inventariados, o redirecionamento de objetivos, métodos, enfim, da própria idéia de história. O trabalho de reescrita levado a cabo pelos próprios autores já deixa fissuras e ossificações o que dizer das tentativas de continuidade por mãos alheias?
Dito isso, penso ter, ao mesmo tempo, esclarecido o título e classificado adequadamente esse trabalho dentro bibliografia sobre a história de Sergipe. Trata-se de um guia de literatura (não exaustivo) para facilitar o trabalho dos noviços que pela primeira vez batem á porta da historiografia em busca de orientação sobre o que ler inicialmente. É uma tentativa de sistematização do conhecimento produzido a partir de 1973 na medida em que fornece uma visão panorâmica sobre algumas esferas da experiência humana como a política, a economia, o social e a cultura. Não é obra de historiografia stricto sensu, pois recorre ao inventário puro e simples. Também, por todos os motivos já expostos, não dá continuidade ao trabalho pioneiro de Calazans. Mas, estabelece com este um diálogo fundamental quando levanta os impasses da historiografia local dos anos 1970 apontados na Introdução e procura compreendê-los com o material reunido para as aulas da disciplina História de Sergipe do curso de licenciatura em História da UFS. Todavia, para o aproveitamento integral desse artigo é necessário conhecer antes o texto pioneiro da referida comunicação.



Um estudo pioneiro e as bases para um diálogo
A Introdução ao estudo da historiografia sergipana foi apresentado no V Simpósio de História do Nordeste (Aracaju, agosto de 1973). A tentativa de sistematização, o comentário crítico equilibrado e a detecção de pontos problemáticos na prática do ofício dão o tom louvável dessa comunicação que é, por isso mesmo, considerado pelos historiadores locais como o principal estudo sobre o “desenvolvimento da nossa historiografia”.
Para introduzir-se no tema, José Calazans foi buscar no discurso de Silvio Romero (1874), cem anos antes dessa comunicação, os indícios da tentativa de produzir-se no Estado uma escrita da história em bases “científicas”. A descrição desse esforço (empreendido na mesma década de 1870) é constituída através do arrolamento de autores e obras agrupadas nos vários ramos cultivados no período de um século: historiografia dos municípios, historiografia política, didática, obras gerais e biografias.  Há segmentos do texto que privilegiam três autores representativos devido à profundeza da pesquisa (Felisbelo Freire, Carvalho Lima Júnior e Felte Bezerra) e dois relativos a um tema e uma referência capital para a historiografia local: a questão dos limites territoriais com a Bahia e a influência da Escola do Recife no movimento intelectual sergipano.  A análise desses segmentos fundamenta o estabelecimento de cinco fases na história da historiografia sergipana que dialogam com a periodização esboçada um ano antes por Silvério Fontes (1972, p. 4-13). Na primeira fase, à obra de Silva Travassos, José Calazans acrescenta o trabalho de Marco Antônio Souza e os escritos de cronistas que não necessariamente vivenciaram a história local, como Frei Vicente Salvador, Barlaeus e Rocha Pita.  Na segunda, intitulada por Silvério Fontes como “surto historiográfico”, Calazans estabelece a publicação de História de Sergipe (1892) de Felisbelo Freire como marco inicial.  Daí em diante, as duas periodizações se distanciam.  Calazans vai estabelecer o IHGS (1912) como o fundador de uma nova fase que se extingue em 1929 quando a Revista do grêmio deixa de circular.  O último período, que compreende as décadas de 1940/50 e 1960, é marcado pela retomada dos estudos sobre Sergipe no IHGS e no Departamento de História da Faculdade de Filosofia e pelos lançamentos da Revista de Aracaju da “Coleção de Estudos Sergipanos”.
O texto de Calazans não é somente um “guia” temático para os que se aventuram a produzir historiografia.  Ele também exemplifica uma possível forma de narrar a história desse saber, verificando o lugar sócio-econômico e cultural de produção, julgando, indicando e corrigindo algumas práticas do ofício.  Assim, a história do Estado – política, intelectual – é relacionada à historiografia através da exposição dos grandes temas motivadores, ao mesmo tempo em que essa escrita é valorizada pela relevância das informações transmitidas, o uso de fontes primárias, a intimidade com a pesquisa arquivística, o emprego da crítica histórica e o equilibrado julgamento sobre os agentes e os acontecimentos estudados. A Introdução é também um importante documento para a contínua reavaliação que a comunidade local de historiadores deve fazer da sua prática.
Quem tiver a o prazer de ler o comentado texto, perceberá que José Calazans experimentou historiar a historiografia em curtos passos e sem obedecer a uma orientação rígida, além de segmentar o trabalho por autor, assunto, escola e gênero. Para dialogar com o seu texto optei pelos gêneros (historiografia política, econômica etc.) como tópicos fundamentais. Essa estratégia permitiu a inclusão de alguns títulos e autores destacados nos campos demarcados, bem como nos novos domínios de Clio, a exemplo da historiografia sobre a formação social, economia e cultura, áreas proclamadas como inexistentes e agrupadas pelo autor na rubrica de “outros estudos” em 1973.
Essa ordenação da matéria em quatro esferas da experiência (economia, sociedade, política e cultura) também contempla a orientação dos cursos de História de Sergipe ministrados entre 2000 e 2001.[1] Sobre esse caráter, somente mais um esclarecimento. Concordamos que os fatos não são sociais ou culturais estricto sensu ou seja, o homem não vive de forma estanque na esfera da política ou da economia. Sabemos que a experiência humana é assim classificada (encaixada) por razões várias dentre as quais, as escolhas teórico-metodológicas do historiador e a estratégia de tornar o texto o mais didático possível. Talvez a maior motivação para esse "encaixotamento" seja a tarefa mesma do historiador: organizar o todo "caótico" que é a experiência humana em seu fazer-se cotidiano; tornar inteligível a vivência dos homens fragmentada em milhares de atos, pensamentos e sentimentos produzidos ininterruptamente.


Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Diálogos com Calazans: A historiografia sobre Sergipe nos últimos 30 anos. Gazeta de Sergipe, Aracaju, p. 6-6, 07 mar. 2002.

Notas

[1] Além dessas esferas privilegiadas, Calazans tratou das obras gerais, das biografias e dos livros didáticos. Do primeiro gênero as iniciativas ficaram a cargo de Thetis Nunes e foram citadas no decorrer dos textos sobre política e economia. Trata-se de Sergipe Colonial (I e II) e Sergipe provincial I. Sobre biografias aguarda-se o inventário produzido pelo professor José Afonso do Nascimento a ser publicado como apresentação de As elites sergipanas, conjunto de reportagens de cunho biográfico produzidas pelo jornalista Osmário Santos. O terceiro grupo de obras já foi tematizado na comunicação “Historiografia didática em Sergipe” (2000), cujo texto foi anexado como aula número cinco do programa de História de Sergipe II na UFS. Para não mutilar a idéia inicial da comunicação o texto segue sem cortes, contemplando a produção do final do século XIX até o ano 2001.

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