A Cultura
Nos anos 1970, os estudos culturais não configuravam campo específico para os historiadores. Com isso não quero afirmar que esse tipo de experiência não fora tematizada ainda. O interesse por literatura e algumas linguagens artísticas como a música e a pintura rondava a escrita histórica sergipana, afirmou o próprio Calazans ao citar A literatura em Sergipe (1908) de Joaquim do Prado Sampaio[1] como estudo pioneiro no gênero. Com interesse equivalente (diferençando-se apenas por estar voltado para as coisas do vulgo), destacou-se no período trabalhado por Calazans o pesquisador Clodomir Silva. Minha Gente (1926) foi sua obra de destaque. Ambos, Sampaio e Silva, sob os olhares do historiador do século XXI, tematizaram a esfera da cultura. Seus contemporâneos, entretanto, concordariam em classificar esses trabalhos como etnopsicologia (ou até antropogeografia) já que os mesmos haviam apropriado-se da veia culturalista do conterrâneo Silvio Romero.
Nas últimas três décadas, também em Sergipe, os estudos sobre as “as formas padronizadas de pensar, agir e sentir” migraram da antropologia para a História. A noção de cultura deixou de designar os fenômenos da arte, literatura e música para “referir-se a quase tudo que pode ser aprendido em uma dada sociedade – como beber, comer, andar, falar, silenciar e assim por diante. Em outras palavras, a história da cultura inclui agora a história das ações ou noções subjacentes à vida cotidiana”. (Burke, 1989, p. 25). Esse deslocamento (das formas elevadas do espírito – arte, literatura etc. – para as atitudes prosaicas do dia a dia) provocou uma avalanche de trabalhos acadêmicos que, no âmbito do DHI, começa a sufocar algumas áreas até então dominantes como a política e a economia.
Em relação à literatura, Jackson da Silva Lima manteve solitariamente a tutela dos estudos históricos. Publicou dois volumes da História da Literatura Sergipana (1971 e 1986) e várias monografias e antologias sobre literatos como Fausto Cardoso, José Sampaio, Tobias Barreto e Santo Souza. As demais formas de arte não conheceram ainda o seu Jackson da Silva Lima. Os trabalhos que tematizam as atividades cênica, plástica e visual são esparsos e sucintos. A produção teatral por exemplo, foi alvo de duas monografias. (cf. Prata, 1989; Santos, V. L, ?). Em termos de síntese, há o livro do ator Isaac Enéias Galvão que abrange as décadas de 1940/1980 mas insiste em permanecer inédito. Como síntese mais significativa da prática teatral no Estado podem ser citados os três artigos da jornalista Sueli Carvalho (1999) publicadas pela revista Aracaju Magazine.
“Alguns aspectos sobre a música popular sergipana” de Antônio Alves do Amaral e Wellington dos Santos (2000) é o melhor panorama dessa linguagem. O produto musical tematizado situa-se entre música produzida pela indústria cultural e o trabalho instrumental típico do conservatório estadual. Sobre esse tipo de instituição Ivete Eça da Conceição (1997) escreveu Sergipe cantava em Allegro Ma Montroppo: o canto orfeônico em Sergipe e a fundação do Instituto de Música e Canto Orfeônico de Sergipe/1930-1950. Para ampliar esse universo de produção e consumo seria necessário retroceder um pouco os marcos temporais desse trabalho e incluir a palestra do maestro Leosírio Guimarães intitulada “Panorama da música em Sergipe”. A dança é enfocada num curto artigo de Dorinha Teixeira Machado (2000) que reúne informações sobre bailarinos, espetáculos, escolas e grupos de dança entre os anos 1950 e 2000. As artes plásticas não conhecem síntese. Mas a súmula produzida por Ana Conceição Sobral de Carvalho (2000) é um interessante ponto de partida. Para conhecer esse universo, individualista pela própria natureza da atividade, é necessário folhear catálogos e algumas biografias publicadas como a de Adalto Machado, Melciades, Pythiu e J. Inácio.(cf. Almeida, 2000; Mittaraquis, 2001; Rodrigues, 2001; Inácio, 2001). Do cinema, em nível de consumo, é imprescindível consultar os vários artigos veiculados em diários aracajuanos por Ivan Valença. No DHI, Sueli Bispo da Silva (2000) retratou os cinemas de bairro em Aracaju e, no âmbito da produção, Dijaldino Mota Moreno é o responsável pela matéria. O rádio e os músicos populares foram estudados por Dilton Cândido Maynard (1999). Sobre a arquitetura (ou sobre o patrimônio edificado) devem ser destacados os trabalhos de Verônica Maria Menezes Nunes, Maria Lúcia de Carvalho Leite, José Anderson do Nascimento (198_), Kátia Loureiro (1999) e a monografia de Rogério Freire da Graça (1999) no DHI.
Das artes nobres para as instituições intelectuais os trabalhos proliferam-se. Dentro da academia mereceram atenção as instituições e equipamentos intelectuais como a Universidade Federal de Sergipe, Arquivo Público Estadual, Museus do Homem Sergipano e Afro, bibliotecas Clodomir Silva e Pública Epifânio Dória, centros culturais como o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e a Casa de Cultura Afro-Sergipana e Academia Sergipana de Letras. (cf. Oliva, 1990; Barreto, 1996; Nascimento, 1999). A produção intelectual, notadamente a escrita dos historiadores também foi tema de estudo no DHI, ganhando destaque os autores Felisbelo Freire, Sebrão Subrinho, Maria Thetis Nunes, José Silvério Leite Fontes e José Calazans.
Em termos de educação, o esboço de um panorama dos estudos históricos já começa a ser viabilizado a partir dos recentes levantamentos de Jorge Carvalho do Nascimento. De 1906 a 2000, entre artigos, monografias e livros de síntese, foram produzidos cerca de cento e vinte trabalhos sendo que oitenta e três publicados entre os anos 1990 e 2000. Para esse mesmo autor, até a entrada da UFS nesse campo de pesquisas, vivia-se sob a hégide de uma “santíssima trindade” formada por José Calazans, Nunes Mendonça e Maria Thétis Nunes. Esta última, por exemplo, foi responsável pela maior parte da produção do gênero nos anos 1980. Entretanto, uma década mais tarde, o Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação toma as rédeas da produção e, juntamente com as monografias do curso de Licenciatura em História permite-nos conhecer a experiência educacional de temáticas como: história das disciplinas, política educacional, cotidiano escolar, história das instituições de ensino. Deve-se louvar, além dessas iniciativas, o trabalho exterior à Universidade produzido pelo Núcleo de Pesquisas em História da Educação da Prefeitura Municipal de Aracaju,[2] a circulação das revistas especializadas na área, Hora da Escola, Educar-se, Revista do Mestrado em Educação e o esforço solitário de Jackson da Silva Lima que aborda Os estudos filosóficos em Sergipe. Não se deixem enganar pelo título. Quem quiser conhecer a vida educacional de Sergipe entre os anos 1830 e 1930, além dos textos de Maria Thétis Nunes e de José Calasans, terá, obrigatoriamente que consultar o trabalho desse literato.
As instituições religiosas e fraternais foram também outro campo da cultura estudado pela historiografia recente. Sobre os católicos há trabalhos pioneiros como o de Francisco José Alves (1991) – o “Calendário religioso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Estância: 1772/1827 – e o estudo de Péricles Andrade Júnior (2000) Sob o olhar dirigente do pastor. Este último, além de tratar do processo de romanização em Sergipe, esboça uma história da Igreja católica no século XIX e início do XX. As práticas protestantes são estudadas Jônatas Silva Meneses, Clésia Oliveira Caetano Santos (1997), Ester Vilas Boas (2000), Edvar Freire Caetano (2001). As religiões afro-brasileiras foram estudadas por Beatriz Góis Dantas (1988) e Janaina Couvo (1988). Os espíritas também tiveram registradas as suas Memórias e a Maçonaria encontrou o seu memorialista na pena de José Anderson do Nascimento. (cf. Jesus, 1997; Nascimento, 2000).
As atitudes da população diante de grandes epidemias também foram estudadas recentemente. Exemplos significativos são os trabalhos de Amâncio Cardoso, Terezinha Oliva e Milton Barbosa da Silva (1996) sobre o impacto das epidemias de cólera que se abateram sobre Sergipe no século XIX. Em Sob o signo da peste, Amâncio Cardoso (2001) elaborou uma verdadeira geografia do cólera em Sergipe e já se pode visualizar os desdobramentos dessa dissertação no curso de licenciatura em História. (cf. Lima, I. 2000).
As manifestações das culturas populares permaneceram objeto de especialistas (antropólogos, literatos, arte-educadores) como José Calazans, Beatriz Góis Dantas, Paulo de Carvalho Neto, Luiz Antônio Barreto, Jackson da Silva Lima, Aglaé Fontes de Alencar e Núbia Marques. Mas parece que o clímax dos estudos sobre folclore (principalmente) e culturas populares deu-se mesmo nos anos setenta e oitenta com a vitalidade de iniciativas como a Campanha em defesa do Folclore Brasileiro, Revista Sergipana de Folclore (1976/1979), Encontro Cultural de Laranjeiras, Festival de Arte de São Cristóvão e a criação das secretarias e fundações municipais e estaduais para o fomento da cultura. Nos anos 1990 a produção arrefeceu bastante e mesmo na Universidade a literatura folclórica de feição historiográfica é cada vez mais rara no curso de Ciências Sociais. A publicação periódica dos Anais dos simpósios em Laranjeiras, no Encontro cultural, têm sido a maior contribuição do Governo do Estado para os estudos do gênero com feição historiográfica. No DHI, porém, há grande interesse no estudo das festas profanas e religiosas mas, com a orientação dos profissionais da história cultural e não de folcloristas clássicos. Deste ramo, pode-se destacar as monografias dedicadas ao Divino Espírito Santo, São José, São João, Santos Reis, Carnaval e às festas comemorativas ao centenário de Aracaju.(cf. Santos, M. F., 2000; Mendonça, 1998; Barros, 1990; Santos, V., 1999; Araújo, 1995; Menezes, 2000; e Fontes, 1998).
Conclusão
Através desse rápido sumário tentei demonstrar o valor do trabalho pioneiro de Calasans, tanto em relação à história da historiografia como no esboço do tipo ideal de escrita da história no início dos anos 1970. Nesse suposto diálogo, ficou evidenciado o crescimento considerável dos estudos sobre a economia. Hoje, aguarda-se uma síntese sobre o tema, bastante oportuna em um momento onde o modelo de desenvolvimento econômico foi radicalmente alterado no Estado. As questões relativas ao social exorbitaram o campo dos historiadores e foram exploradas por sociólogos e economistas, principalmente. Foi das áreas que menos se expandiu. A política, que nasceu renovada, criticando o modelo “tradicional”, nos anos 2000 já definha, abrindo espaços para a velha narrativa factual, linear e voluntarista. E a experiência cultural, deslocada da “alta” cultura, abre brechas importantes na fronteira com as ciências sociais, estando em franca expansão os estudos sobre o lúdico e a história da Educação.
Mas, as possibilidades desse diálogo não se restringem aos quatro campos aqui citados. O diálogo prossegue em outros textos e autores, comparando a atividade historiadora em pelo menos três “gêneros” trabalhados por Calasans: historiografia didática, biografia, e história dos municípios. A historiografia didática já ganhou o seu balanço em artigo publicado no Jornal da Cidade (cf. Freitas, 2002) que reúne todos os títulos conhecidos publicados entre 1896 e 2002. Sobre biografias aguarda-se o inventário produzido pelo professor José Afonso do nascimento a ser publicado como apresentação de Memórias de políticos de Sergipe no século XX, conjunto de reportagens memorialistas produzidas pelo jornalista Osmário Santos. Outro estudo sobre o mesmo gênero está presente na introdução do Catálogo da Revista do IHGS a ser lançado em agosto de 2002. Por fim, a história dos municípios foi inventariada recentemente e aguarda lançamento de obra específica intitulada Bibliografia dos municípios sergipanos, organizada pela professora Terezinha Oliva e com distribuição prevista para abril de 2001. O exame atento da produção historiográfica sobre Sergipe prossegue com essas e outras contribuições, no sentido de contribuir para a construção de uma síntese sobre a matéria pois “o mínimo que se exige de um historiador é que seja capaz de refletir sobre a história da sua disciplina, de interrogar os sentidos vários do trabalho histórico, de compreender as razões que conduziram à profissionalização do seu campo acadêmico.” (Nóvoa, 1999, p. 15).
FREITAS, Itamar. Diálogos com Calazans: A historiografia sobre Sergipe nos últimos 30 anos (A Cultura). Gazeta de Sergipe, Aracaju, p. 6-6, 14 mar. 2002.
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