domingo, 4 de janeiro de 2004

Alfredo Cabral e a história universal

O aracajuano Alfredo Cabral (1887/?) foi considerado um virtuoso entre os Brasileiros ilustres de Liberato Bittencourt (1913, p. 7-9). Contista aos doze anos, resenhista aos dezessete, professor, jornalista e filósofo aos vinte e cinco anos, Cabral teve sua “precocidade intelectual” comparada à de Rui Barbosa.
Mais comedido nos elogios, Armindo Guaraná (1925, p. 9) limitou-se a registrar a trajetória de formação do bacharel – secundário no Ginásio Sergipense, curso de direito no Recife –, a sua atividade profissional como professor de história do Atheneu, promotor público em Estância, Laranjeiras e Maruim, e colaborador em periódicos de Aracaju, Própria, Recife, Salvador e São Paulo.
Desde 2001, porém, quando os historiadores da educação em Sergipe resolveram investigar, com maior intensidade, a vida dos intelectuais do século passado, o personagem Alfredo Cabral ganhou outro interesse. Isso se deveu, por um lado, ao rumoroso concurso que resultou na sua assunção a catedrático do Atheneu e, por outro, a uma suposta obra de história universal que ele teria produzido e que, segundo o biógrafo Bittencourt, o firmaria “definitivamente além das fronteiras sergipanas.”
Sobre o concurso para a cadeira de história universal, ocorrido em maio de 1910, tratou, recentemente, o professor Jorge Carvalho do Nascimento (Cf. Cinforme, 24 nov.; 1 dez., 2003). Houve de tudo um pouco nessa disputa: quebra de sigilo das provas; renúncia de membros da banca examinadora; inclusão de novos pontos no programa, após a aprovação do mesmo; desligamento dos concorrentes de Alfredo Cabral, Durval Madureira e José de Magalhães Carneiro; reprovação, por parte da congregação, do parecer da banca, dando Cabral como vitorioso; devolução do processo de nomeação do candidato aprovado; e mudança do voto de seis dentre treze membros da congregação, ao referendar-se a vitória do candidato único.
Ao final do processo, afirma Jorge Carvalho, “ficou a impressão de que o concurso fora organizado para entronizar Alfredo Cabral em um dos cargos de maior prestígio do Estado, no início do século XX: o de catedrático do Atheneu”. Em todo esse imbróglio, provavelmente, deveria estar a participação do presidente de Sergipe à época, o dr. Rodrigues Dória – também defenestrado (por Nina Rodrigues) em um concurso para catedrático da Faculdade de Medicina da Bahia.
O concurso de Cabral é um índice das práticas do novo regime em relação ao recrutamento para o funcionalismo e às disputas intelectuais por uma espécie de capital sócio-cultural que uma cadeira do Atheneu poderia render ao seu ocupante. Aprofundados os exames, não seria difícil concluir que, apesar do concurso, os procedimentos de escolha de um professor dessa prestigiada instituição escolar não destoariam muito da forma de preenchimento de uma vaga de professor primário, numa escola isolada, em qualquer recanto do Estão. Viver a oligarquia era a regra naquele tempo.
Mas, o concurso também é índice sobre a prática historiadora no Estado. Ele não gerou uma tese, de imediato, embora tenha forçado o bacharel Alfredo Cabral a esmerar-se na elaboração de uma história universal, obra inédita, pelo menos, até 1925, data do fechamento da edição do Dicionário de Armindo Guaraná. As notas foram produzidas pouco antes do concurso e publicadas em O Estado de Sergipe, entre 10 de abril e 01 de maio de 1910. Nesse mesmo ano, Cabral encerrava viagens de estudos e de lazer às terras de São Paulo – terra de “raça superior”, do homem da montanha, “sereno”, “senhor de si”, “educado” e “moderno”. (Cf. Cabral, 1910).
A modernidade dos costumes e o progresso dos negócios paulistas, que tão boas impressões havia deixado em Alfredo Cabral, eram vistos, por alguns homens dos anos 1900, como fruto da contemporaneidade. Para o futuro professor, só mesmo a história universal – que se ocupava das causas, do encadeamento dos fatos e das leis do desenvolvimento da sociedade – seria capaz de conduzir as pessoas a um exercício de alteridade e a reconhecer que os hábitos da sua época, educação, sistema de leis e modelos literários, por exemplo, teriam raízes fincadas na Antiguidade, sendo até possível , desse período, extrair-se os elementos da “alma humana” (greco-romana e cristã?).
Mas, esse avanço no auto-conhecimento de cada geração, via história universal, era possibilitado, em grande parte, pelo progresso da própria ciência da história – método de crítica filológica, interpretação de monumentos e pesquisas arqueológicas. Cabral também afirmava que a história havia partido da pragmática dos antigos para o espírito religioso dos conventos medievais, passando pela renascença italiana com Vico, até configurar-se em “ciência positiva”, no início do século XIX, com o criticismo dos alemães Niebuhr e Mommsen.
É uma pena que não possamos escrever muito sobre o tipo de sergipano que se buscava formar com a disciplina história universal naqueles tempos em que a congregação do Atheneu poderia dividir-se entre o espiritualismo de Brício Cardoso e o cientificismo de Prado Sampaio. Do livro de Alfredo Cabral, só conhecemos os sete artigos iniciais, uma espécie de “introdução aos estudos históricos”, bastante comum em obras do gênero no final do século XIX.
Num tempo em que ensinar história era “ler” história universal e que escrever história era biografar sergipanos ilustres, rememorar episódios da política, transcrever e comentar a documentação produzida pelo Estado, distinguem-se as iniciativas de professores do Atheneu, como Justiniano de Melo e Silva – Uma nova luz sobre o passado (1906), Maria Thétis Nunes – A civilização árabe: sua influência na civilização ocidental (1945), e a própria História universal de Alfredo Cabral. Quem der notícia sobre essa obra estará contribuindo bastante para o conhecimento do modo de formação da maioria dos sergipanos que passaram pelo ensino secundário no início do período republicano em Sergipe.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Alfredo Cabral e a História universal. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 04 jan. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumario desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

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