A “data de nascimento” de Sergipe independente não é consensual entre os historiadores. Fala-se em 8 de julho de 1820 – dia em que D. João VI decretou a independência do governo local em relação ao da Bahia – e em 24 de outubro do mesmo ano, suposto dia em que a notícia do decreto teria chegado a São Cristóvão. Fala-se também no 5 de março de 1822, data da posse do primeiro governador da terra, nomeado por D. Pedro I, Manoel Fernandes Silveira.
Com propriedade, poder-se-ia acrescentar o 20 de janeiro de 1821 a esses marcos de origem. Essa data corresponde à posse do primeiro governantes nomeado por D. João VI para administrar a província de Sergipe, dezessete dias após a expedição do referido documento emancipatório. Mas, essa efeméride, como a da posse de Fernandes Silveira, não encontra muito apelo entre os estudiosos do nosso passado.
A razão do desprestígio, entre tantos motivos, deve-se ao fato de o “tumultuado governo de Burlamaque” ter durado apenas 26 dias. Sua administração foi atingida em cheio pelos desdobramentos da Revolução Constitucionalista do Porto, que interferiu, tanto na trajetória da novel capitania, quanto na vida do brigadeiro português, designado para governá-la. Com o constitucionalismo imposto ao Rei, no início de 1821, Sergipe perdeu sua independência e Carlos Burlamaque foi parar numa latrina do Forte do Mar, na rebelada cidade de Salvador.
O texto que trata dessas desventuras, ou dos 26 dias que abalaram o mundo de Burlamaque e a coletividade “sergipana”, foi publicado em 1821. Pode muito bem ser considerado a primeira história política sobre Sergipe no século XIX. Inicia-se com a notícia da emancipação concedida por D. João VI, a nomeação do governador Burlamaque e a elaboração do “termo declaratório relativo às rendas” que, a partir de janeiro de 1821, deveriam ser cobradas e destinadas ao lado de cá do rio Real.
A narrativa trata também da cerimônia de posse, a 20 de janeiro, das primeiras medidas de organização dos serviços de segurança pública, de administração fazendária, das liberdades de ir e vir, de comercializar, de manifestar opinião. Informa, ainda, sobre o avanço das tropas constitucionalistas, dentro e fora de Sergipe, do juramento à Constituição do Porto em Laranjeiras e Estância, do motim que resultou na derrubada de Burlamaque, na prisão deste e de autoridades civis e eclesiásticas e do envio do governador, secretário, oficiais e familiares para a cidade de Salvador.
É, portanto, uma história. Uma história imediata e curta, como indica o título. Brevíssima na abrangência temporal (apenas algumas semanas) e na extensão do texto (dez boas laudas manuscritas). Ainda assim, uma história provida por todo o aparto testemunhal (termos, petições, atestados, bandos, circulares, correspondência), não obstante figurar o Burlamaque como o quase-único depoente apresentado. A narrativa é tão convincente que a própria Maria Thétis Nunes, maior autoridade sobre o tema, empregou-a como eixo principal, no início da sua História de Sergipe (1878) para explicar as causas da emancipação local.
Mas, a Memória de Burlamaque também pode ser lida como crônica stricto sensu. Escrita no calor da hora, no tempo dos acontecimentos, não deixa de ter o seu sabor autobiográfico. No texto, o narrador atenta para a defesa as honra pessoal, estabelece divisas entre a atitude despótica e o comportamento liberal e define o personagem principal como um “vassalo” e como um “cidadão”.
História ou crônica? Essa é uma questão sutil, cara aos historiadores da historiografia. Melhor seria encará-la Burlamaque como uma possibilidade, um exemplo de trabalho que dá substância ao gênero memória, ao lado do relatório protocolarmente administrativo e do tradicional registro de reminiscências.
Melhor ainda seria prestar atenção ao documentário apenso ao texto, onde o governador, por exemplo, exorta o “povo sergipano” a honrar o seu passado: “vossos avós fizeram sempre uma grande figura na História (...) A guerra que houve sustentar com os franceses e com os holandeses nos subministram fatos que admiram, e a desgraçada e sempre terrível sublevação de Pernambuco fez reviver, nos corações de vossos filhos, a memória grata dos feitos dos seus antecedentes.” (Burlamaque, 13 mar. 1931). Para Burlamaque, portanto, já havia um “povo sergipano” em 1821, fundado, inclusive, numa memória comum de lutas contra os inimigos da Coroa, que eram também os inimigos dos habitantes desta terra.
Um século e meio após, o infortúnio de Burlamaque foi interpretado por Thétis Nunes como um divisor de águas entre dois grupos: os “portugueses radicados na terra”, junto com “senhores de engenho, presos aos comerciantes de Salvador por compromissos financeiros, e os “taberneiros e donos de casas da cidade (...) um esboço de classe média urbana, além de senhores da terra, principalmente, ligados à atividade pastoril.” (Nunes, 1878, p. 40-41).
Hoje, temos notícias de que nada estava definido em 1821. Não se sabia se mais vantajoso era ganhar a cidadania portuguesa ou a brasileira, quanto mais optar entre ficar na velha Bahia ou construir uma naturalidade sergipana.
Mas, é justamente o laivo patriótico o que chama atenção na Memória histórica e documentada dos sucessos ocorridos em Sergipe D’El Rei. Estonteado, em meio ao turbilhão de acontecimentos, e desconhecendo o final daquele tormentoso ano de 1821, Burlamaque foi categórico ao afirmar que as violências e prepotências praticadas pelo governo da Bahia tinham “o fim de assegurar a dependência e escravidão da província e as suas rendas.” Para um português que vivera pouco mais que uma quinzena em sua função, sem nenhuma ligação afetiva com a nova Capitania, esse aspecto unificador (identitário) da sua retórica em torno do “sergipano” merece se estudado com maior profundidade.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A breve história de Carlos Burlamaque. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 11 jan. 2004.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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