sábado, 27 de novembro de 2010

História para John Dewey: um instrumento para a análise das condições presentes

Campus da Universidade de Chicago (www.uchicago.edu, 2010). Nesta instituição, em 1899, 
John Dewey divulgou os seus primeiros trabalhos sobre Filosofia e Psicologia educacional. 
Genética, funcional e social são as característica dominantes da pedagogia de John Dewey (1859/1952), segundo Edouard Claparède (1913, p. 16). Mas, para melhor compreender o lugar do ensino de História em grande parte da sua obra, talvez fosse produtivo anunciar a distinção fundamental, estabelecida por ele próprio, entre a sua concepção de educação e as idéias herbartianas, hegemônicas no final do século XIX (Cf. Dewey, 1913, p. 81-82).


Quadro n. 1 - Pedagogia de Herbart x Pedagogia de Dewey
Pedagogia de Herbart
Pedagogia de Dewey
Centrada no mestre escola
Introjeta a obediência à autoridade
Compatível com uma ordem social fundada na subordinação
Reserva à criança um caráter passivo
Centrada na criança
Introjeta o autocontrole
Compatível com uma ordem social fundada na coordenação
Põe a criança em experimentação direta

Observem que a “revolução coopernicana” em relação ao agente e o vetor da educação está explicitada neste quadro. É a criança e não o professor o foco das atenções. É o movimento de dentro para fora da individualidade que caracteriza a educação renovada e não o contrário. Mesmo em trabalho conciliador, ele exprime nesses termos a diferença entre a “educação tradicional” e a “educação nova ou progressiva”:
A história da teoria de educação está marcada pela oposição entre a idéia de que educação é desenvolvimento de dentro para fora e a de que é formação de fora para dentro; a de que se baseia nos dotes naturais e a de que é um processo de vencer as inclinações naturais e substituí-las por hábitos adquiridos sob pressão externa. (Dewey, 1971, p. 3).
John Dewey (1859/1952).
Filósofo e Psicólogo da educação
Harvard University Archives
O quadro e a citação direta também demonstram os traços fundamentais apontados por Claparède. Em primeiro lugar, a pedagogia de Dewey é genética, pois concebe a criança como um ser que deve se desenvolver.
É funcional (no sentido biológico), já que entende os “processos mentais” e as “atividades psíquicas” da criança como instrumentos destinados à manutenção da vida (são “funções”) – para Dewey, as chamadas “faculdades mentais” não seriam fenômenos autônomos ou potências a serem despertadas e/ou exercitadas.
Por fim, a pedagogia deweana é social. Ela cultiva a idéia de que o indivíduo – membro do corpo social – deva ser preparado para ter função útil na sociedade. (Cf. Claparède, 1913, p. 17-17, 20 e 26-27).
Esses princípios vêm sendo largamente difundidos no Brasil há mais de 70 anos, desde que alguns “pioneiros” da escola nova, com destaque para Anísio Teixeira, resolveram modificar radicalmente os fundamentos da educação escolar nacional. Eles se desdobram, principalmente, no entendimento de métodos de ensino  e de aprendizagem (experimentar/pensar), na idéia de currículo, construídos sob os princípios da Psicologia biológica de William James e do evolucionismo de Charles Darwin (Cf. Van Acker, p. XIII). É o que veremos a seguir.


A experiência como matéria de ensino
As idéias-chave sobre o currículo – e o currículo para o ensino das crianças – foram lançadas entre 1895 e 1902. No entanto, quem tiver o privilégio de comparar os escritos de A criança e o currículo (1902), Democracia e educação (1916), Experiência e educação (1938) constatará a coerência dos seus argumentos em quase quatro décadas de pesquisas sobre o tema.
Em A criança e o currículo (1902), Dewey denuncia os equívocos cometidos por teóricos “tradicionais” e expoentes da [escola ativa]. Ambos colocam em oposição a “vivência imediata” da criança e os fatos e verdades condensados em “assuntos-matéria”. Não há que optar entre um e outro, afirma o filósofo. Criança e currículo “são apenas dois limites que definem um só processo”: a experiência humana (Dewey, 2002, p. 162-163).
A matéria é a experiência humana. Mas ela tem sentidos diferentes para o aluno, o especialista e o professor. O especialista preocupa-se com o anúncio de novos fatos, a proposição e verificação de hipóteses. A matéria tem fim em si mesma. Para o aluno, representa as “possibilidades” da matéria “formulada, cristalizada e sistematizada do adulto, isto é, do modo que se encontra em livros, em obras de arte etc.” (Dewey, 1979, p. 201).
Para o professor, a matéria só tem sentido como representação de um determinado estágio de desenvolvimento da experiência. Sua preocupação maior é conhecer
a forma como esse assunto se tornou parte da experiência; o que existe no presente da criança que lhe é útil; como esses elementos devem ser usados; como pode o seu próprio conhecimento do assunto-matéria auxiliar a interpretar as necessidades e os atos da criança e a determinar o meio em que a criança deve ser colocada para que o seu crescimento possa ser oportunamente dirigido. Está interessado, não como o assunto-matéria em si, mas com o assunto-matéria como um fator relacionado, numa experiência total e em crescimento. (Dewey, 2002, p. 171-172; Cf. 1971, p. 77-78).
Que fazer, então, com tantas diferenças de perspectiva? Como não recair no antagonismo experiência da criança x experiência científica? Dewey resolve o problema: é necessário “reintegrar na experiência o assunto-matéria dos estudos ou ramos do saber. Tem de ser restituído à experiência de onde foi abstraído. Precisa de ser psicologizado; transferido, traduzido para a vivência imediata e individual em que teve a sua origem e importância” (Dewey, 2002, p. 171).
Johann Freidrich Herbart (1776/1841)
Filósofo e Psicólogo da educação
que fundamentava a Pedagogia
combatida por John Dewey.
Neste ponto não há concessões ou bom senso. A Psicologia anterior (pricipalmente, a herbartiana) deve mesmo ser abandonada. A mente não pode mais ser concebida como um ente isolado do mundo externo, responsável exclusivamente pelas operações intelectuais (em detrimento da “emoção” e do “esforço”), pronta e acabada. As mentes do adulto e da criança não mais podem se diferenciar apenas pelo tamanho das faculdades ou em razão de uma aparecer mais cedo que as outras.
A psicologização da educação escolar deve pautar-se, ao contrário, por uma idéia de mente interagente com o ambiente social. A mente alimenta-se, é estimulada, desenvolve-se, modifica-se, apresentando “fases distintas de capacidade e interesse em diferentes períodos” (Dewey, 2002, p. 87-88). Esta concepção modifica radicalmente o sentido, a natureza, função, a maneira de ensinar e de aprender. Surge, assim, um novo desenho para o currículo escolar no início do século XX.


Quadro n. 2 - Estágios de desenvolvimento da criança, segundo John Dewey (1900)
Estágios
Objetivos
Critérios de seleção dos conteúdos
Conteúdos
Métodos de ensino
1
(entre quatro e oito anos)
Produção – experiências, brincadeiras e jogos como formas ativas de ação
Fases da vida, modo como as fases da vida se relacionam com o meio social da criança
Devem levar as crianças a se expressarem socialmente
Vida familiar, vizinhança, ocupações sociais relacionadas à interdependência da cidade e do campo, evolução histórica das ocupações típicas e das formas sociais que se relacionam com elas
A matéria deve ser apresentada como uma coisa que deve fazer parte da experiência da criança, através da sua própria atividade (motora ou expressiva): cozinhar, comprar, contar histórias etc.

2
(dos oito ou nove anos até os onze ou doze anos)
Investigação - descoberta de fatos e verificação de princípios
Atividades nas quais o aluno sinta que alcança alguma coisa, algo que conduza a um resultado claro e continuado
Regras e processos, formas de adaptação dos meios aos fins em perspectivas histórica, geográfica e experimental.
Detalhes sobre a vivência de determinadas populações do país, Leitura, Escrita, e Aritmética
Atividades que levem a criança a reconhecer a necessidade de assegurar para si própria o controle prático e intelectual dos métodos de trabalho e de pesquisa como forma de lhe permitir encontrar resultados para si mesma
3
(mais de 12 anos – fronteira com o ensino secundário)
O aluno deve utilizar o domínio dos métodos, instrumentos de pensamento, pesquisas, como também da especialização em estudos e artes distintos com objetivos técnicos e intelectuais
Não há inferências seguras no momento
Não há inferências seguras no momento
Não há inferências seguras no momento
Baseado em Dewey, “A psicologia da educação elementar”, 2002, p. 86-99.

O Quadro n. 1 apresenta os possíveis desdobramentos da “psicologização” da educação escolar proposta por Dewey. Por ele é possível identificar os proposições anunciadas, tanto em termos de atividade mental como de processos de desenvolvimento da criança. Nele são patentes o movimento do “fazer” ao “saber fazer” (coluna 1), a expansão da experiência das relações familiares às relações com as instituições (entre as quais o Estado), o alargamento da percepção física do espaço aonde mora para a abstração do espaço ocupado pelo sistema solar, como também da memória e dos hábitos individuais para as memórias e tradições seculares de vários povos.
Em textos de 1916 e 1938, Dewey detalha a progressão da aprendizagem escolar (sugerida na coluna n. 1). No primeiro, trata da progressão ao longo da vida do educando:
É possível, sem se forçarem os fatos, estabelecer três estágios perfeitamente típicos do desenvolvimento da matéria a aprender, na experiência do educando. Em seu primeiro estado, o saber é uma habilidade inteligente – a de poder fazer as coisas. Esta espécie de saber revela-se pelo manuseio e familiaridade da criança com as coisas. Em seguida, este saber gradualmente se avoluma e aprofunda por meio dos conhecimentos ou informações comunicados. Afinal, amplia-se e transforma-se em matéria coordenada lógica ou racionalmente – de uma pessoa relativa já competente e especializada na referida matéria (Dewey, 1979, p. 203). 
Williams James (1896/1922)
Psicólogo estadunidense que 
fundamentou parte do pensamento
educacional de John Dewey
No segundo texto, Experiência e educação (1938), Dewey estabelece as condições desse progresso e o seu mecanismo, fornecendo indícios de sua aplicação em termos de planejamento dentro de um mesmo ano. Ele afirma que o professor deve sempre iniciar o seu trabalho partindo da experiência e das habilidades que o aluno adquiriu antes de chegar à escola. Deve organizar as atividades para os alunos levando em conta o “crescimento em experiência do aluno, a expansão e organização da matéria em estudo” e conclui: “nenhuma experiência será educativa se não tender a levar – simultaneamente – ao conhecimento de mais fatos, a entreter mais idéias e o melhor e mais organizado arranjo desses fatos e idéias.” (Dewey, 1971, p. 86).
Como podemos observar, esse é o movimento prescrito pelo método experimental: uma verdade que suscita um problema que leva a novas investigações e resulta em novas verdades que suscita outro problema e assim por diante. “O processo é uma contínua espiral” (Dewey, 1971, p. 86, 82). A mesma orientação é sugerida para as formas de aprender: observar o ambiente, levantar problemas, formular hipóteses, selecionar instrumentos e técnicas, extrair informações e concluir.
Depois dessa breve exposição sobre a idéia de conteúdo, método de ensino e de aprendizagem, resta-nos discorrer sobre o lugar da História no currículo deweano. Quais fatos e idéias devem ser selecionados? Qual o valor do passado e da História na experiência cotidiana? Como garantir a progressão da experiência cotidiana para a ordem científica? Como aplicar, enfim, o método experimental em conhecimentos que, a rigor, não mais podem ser experimentados? (Continua).


Para citar este texto
FREITAS, Itamar. História: um instrumento para a análise das condições presentes.<http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historia-um-instrumento-de-analise-das.html>

Fontes das imagens
Campus da Universidade de Chicago. <www.uchicago.edu>. Acesso em: 27 nov. 2010.
John Dewey. Harvard University Archives. <www.harvardsquarelibrary.org>.
Acesso em: 27 nov. 2010.
Johann Friedrich Herbart <herbart.fae.blogspot.com>. Acesso em: 25 nov. 2010.
Williams James. <http://plato.stanford.edu>. Acesso em 27 nov. 2010.

Referências
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