quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O americanismo progressivista de João Roberto Moreira e o ensino de História para a "moderna" escola primária brasileira (1960)

Alfred Binet. Psicólogo
francês (1857/1911)
Muito se reclama da supremacia de modelos europeus na educação histórica brasileira. Em relação à escola primária, Alfred Binet, Ovídio Decroly e Maria Montessori são exemplares bastante citados. No entanto, as apropriações de teses norte-americanas (que, evidentemente, dialogam com as européias) no campo do currículo são centenárias. Basta lembrar as marcas de o renomado Parecer de Rui Barbosa (1883), produzido nos últimos tempos do Império. O mesmo pode-se dizer das iniciativas de implantação dos Estudos Sociais, em vários momentos do século XX. Este componente curricular ganhou ardorosos defensores, entre os quais, os professores Carlos Delgado de Carvalho, de quem já tratei em outro trabalho (Cf. Freitas, 2006), e João Roberto Moreira.[1]
Moreira era um americanófilo, com certeza. Bordões (educação para uma civilização em mudança), autores (J. Dewey, E. L. Thorndike), desenho do currículo (core-curriculum, unidades didáticas), estratégias de ensino/aprendizagem (métodos de projetos e de problemas), princípio da “graduação do ensino das matérias” a partir de testes, flexibilização de horários, autonomia didática do professor, respeito aos interesses dos alunos (Cf. Moreira, 1955, p. 215-218), enfim, tudo isso foram propostas incorporadas à sua obra, desde o lançamento de Introdução ao estudo do currículo da escola primária (1955). Mas, no momento de prescrever o currículo do primário inovador, premido pelas peculiaridades sócio-econômicas brasileiras, fez síntese, inclusive das idéias educacionais do velho mundo.
As alternativas de origem norte-americana também foram anunciadas em Teoria e prática da escola elementar (1960) como antídoto à organização “tradicional” dos currículos brasileiros do seu tempo. Como ficaria a História dentro dessa proposta de fundo estadunidense?
Em primeiro lugar, não haveria ensino de História, nem de qualquer outra disciplina isoladamente. Moreira aconselha agrupá-las segundo a natureza do conhecimento e ministrá-las de forma correlacionada. Surge assim o estudo da “linguagem”, “número e o cálculo”, das “ciências”, e dos “valores humanos, práticas e estudos sociais elementares” – que incorpora a História, Geografia e Ciências Sociais. Linguagem, Estudos Sociais, etc. ofereceriam os seus “mínimos” à formação da criança para a vida presente. O “mínimo” da História seria o desenvolvimento da noção de passado e de presente nas crianças (Moreira, 1960, p. 352). Organizados interativamente, esses mínimos poderiam receber o nome de “unidade de ensino” (Cf. Moreira, 1960, p. 361).
Uma unidade de ensino era concebida como um plano de execução de várias atividades, demandadas pela vida em sociedade, surgidas imediatamente a partir do interesse dos alunos. O modelo apresentado por Moreira prevê uma gradação: “estimulação ou sondagem de interesses, formulação de objetivos, atividades e propósitos, investigação e coleta de dados, integração e correlação dos dados, culminação das atividades e aplicação da aprendizagem” (Moreira, 1960, p. 369).
Tal progressão também deveria ser observada entre as várias séries do ensino primário.[2] As unidades seriam organizadas de forma a respeitar o “velho princípio de que aquilo que está mais próximo e mais intimamente ligado a nós é o que pode ser mais facilmente por nós compreendido, e que, neste particular corresponde a dados da psicologia evolutiva” (Moreira, 1955, p. 350).
Se quisesse justificar teoricamente (Moreira não explicita), poderia afirmar que suas escolhas pautaram-se nos princípios e exemplos de Decroly e de Dewey que – guardadas as devidas diferenças entre as experiências européia e estadunidense – sugeriam a progressão do individual para o social, da experiência familiar para a experiência nacional (idem, p. 86-88). Observemos o quadro das unidades sugeridas para a primeira série do ensino primário.
Quadro n. 1
Problemas/Atividades sugeridos para o currículo da escola 
primária brasileira (Primeira série)
PRIMEIRA SÉRIE PRIMÁRIA (Parte 1)
Problemas/atividades relacionados à vida em família
De que modo os membros de nossa família podem ajudar-se mutuamente na realização de suas próprias tarefas diárias?
Como as diferentes repartições (quartos ou dependências) de nossas casas contribuem para nos ajudar a viver juntos? Como usamos esses quartos ou dependências? Seria possível usá-los de melhor forma?
Que máquinas e utensílios usamos em casa, por que, para que?
Como a nossa família se distrai ou diverte em casa (diariamente e em ocasiões especiais)?
Visitas a serem feitas: a casa de amigos, a lojas, a jardins e praças públicas, a fábricas, à fazenda etc.
De que forma recebemos os que nos visitam? (hospitalidade, cortesia etc.)
Saúde e segurança em casa
Auxílio mútuo na vida quotidiana em casa e entre vizinhos. (Caráter social, ter cuidado, tomar conta, cooperação, simpatia, gentileza etc.)
Como podemos demonstrar concretamente o nosso amor para com os nossos pais e avós? (Pode-se, neste caso, comparar as diferenças entre as famílias humanas e as dos animais domésticos)
PRIMEIRA SÉRIE PRIMÁRIA (Parte 2)
Problemas/atividades relacionados à vida na escola
Como é a nossa escola? (Edifícios, pátios, pessoal que trabalha na escola, atividades, amigos, responsabilidade etc.)
Como devemos cuidar de nossa escola? (Segurança, conservação, limpeza, respeito para com os outros alunos e para com o pessoal que trabalha na escola etc.)
Que podemos fazer juntos em nossa escola? (Planejamento, construção, jogos, tarefas coletivas de teatro, canto, dança, passeios etc.)
Em que tarefas ou trabalhos escolares temos que nos revezar, trabalhando por turnos?
Que dias especiais celebramos na escola e quais outros devíamos celebrar? Como celebrá-los? Como organizar os programas para esses dias? (Aniversários, dias especiais, Páscoa, feriados, dias santos etc.)

John Dewey. Filósofo e
psicólogo estadunidense
(1859/1952)
Como se pode perceber, pelo Quadro n. 1, Moreira não apresenta um programa acabado. As frases estão longe de oferecer um padrão. São desequilibradas entre os substantivos e os processos. Mas é possível identificar claramente a ênfase nos valores. A cooperação está presente nas sugestões sobre o viver em família, viver juntos, ajudar-se mutuamente, trabalhar em grupo, ser cortês, respeitar os mais velhos. A autopreservação da vida está representada nos cuidados com a segurança e a higiene, o conhecimento do meio (visitas aos amigos, praças, fábricas) e de si próprio (modos de divertir-se e de utilizar, trabalhar e utilizar os frutos do trabalho – a tecnologia).
O estímulo ao autoconhecimento pode também ser entendido como o esforço para a construção de identidades pessoais e coletivas. Em tal sentido, a seleção, justificativas e celebração de datas especiais pode representar uma tentativa de conciliação dos objetivos dos Estudos Sociais dos EUA com algumas abordagens do ensino de História do seu tempo.

Quadro n. 2
Problemas/Atividades sugeridos para o currículo da escola 
primária brasileira (séries 2, 3, 4 e 5)
SEGUNDA SÉRIE
TERCEIRA SÉRIE
QUARTA SÉRIE
QUINTA SÉRIE
A vida na comunidade ou nas áreas vizinhas da escola
A comunidade em que se acha a escola com as áreas e comunidades vizinhas
Ampliação das práticas sociais
Ampliação dos estudos sociais, de ciência experimental, cálculo e outras atividades curriculares
O Estado em que está localizada a escola
O Brasil...em vista da sua realidade, dos seus principais problemas e necessidades
O Estado em que está localizada a escola
O Brasil...em vista da sua realidade, dos seus principais problemas e necessidades

As sugestões para as séries restantes, como expressas no Quadro n. 2, indicam a progressão prescrita. Elas mantém, entretanto, a mesma indicação das habilidades e procedimentos a serem desenvolvidos: “observações”, “excursões”,  “reportagens”, “coleta de informações”, “troca de idéias sobre o que observaram”, e sugerem a avaliação dos resultados – que, ao contrário do que ocorre no ensino “tradicional”, deve ocupar a menor parte do tempo escolar (Moreira, 1960, 251-254)
Este seria, então, o conteúdo esperado para o ensino da nova escola primária brasileira. Por ele seriam cultivados o significado do trabalho, o espírito de cooperação, liberdade, verdade e justiça, valores da sociedade em mudança e antídotos ao liberalismo excessivamente individualista. As “unidades” completariam outro conjunto de atividades (assistemáticas) responsáveis por realizar um princípio da escola ativa: aprender fazendo/compreender vivenciando. Tratar-se-iam das “experiências socializantes”: assembléias, reuniões, festas, efemérides e comemorações, organização de clubes escolares, atividades musicais e de ritmos.
Ovide Decroly. Educador belga
(1871/1932)
Unidades de ensino, experiências socializantes, por fim, fariam cumprir a finalidade da educação primária: preparar o aluno para a vida presente, socializando-o, “orientar e dirigir o desenvolvimento da criança em função das oportunidades e das solicitações da vida coletiva” (Moreira, 1960, p. 322).
Para Antônio Flávio Moreira, a teoria curricular de J. E. Moreira é “inconsistente. Idéias das tendências tecnicista e progressivista são combinadas com elementos da tradição católica, o que forma um estranho mosaico de princípios e técnicas” (Moreira, 2002, p. 104).
Em relação ao ensino de História, não me espanta que tal proposta curricular tenha caído no esquecimento, principalmente no que diz respeito ao seu espírito presentista. Em um país ansioso por tornar-se nação (ao modo grandioso da Europa do século XIX), pulverizado de institutos históricos e de cursos de Geografia e História em todos as suas regiões, seria muito difícil renovar o ensino primário, principalmente, se o preço fosse este, como queria Moreira: reduzir o enunciado dos conteúdos históricos à função de “desenvolver nas crianças a noção de passado e de presente”.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O americanismo de progressivista de João Roberto Moreira e o ensino de História para a "moderna" escola primária brasileira (1960). Belo Horizonte, 24 nov. 2010. <http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/o-americanismo-progressivista-de-joao.html>

Fontes das imagens
Alfred Binet, Ovide Decroly e John Dewey <http://hmenf.free.fr> Acesso em: 25 nov. 2010.

Referências
MOREIRA, Antônio Flávio. Currículos e programas no Brasil. 9 ed. Campinas: Papirus, 2002.
BARBOSA, Rui. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947. [Primeira edição em 1883].
FREITAS, Itamar. A pedagogia histórica de Jonathas Serrano. São Cristõvão: Editora da UFS, 2008.
MOREIRA, João Roberto. Introdução ao estudo do currículo da escola primária. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) / Campanha de Inquéritos e Levantamentos do Ensino Médio e Elementar (CILEME), 1955.
______. Teoria e prática da escola elementar: introdução ao estudo social do ensino primário. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) / Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPO), 1960.

Notas
[1] João Roberto nasceu em Mafra-SC (1912), foi professor e diretor de colégios e de escolas normais nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio de Janeiro, graduou-se em Pedagogia pela PUC-PR e especializou-se nos Estados Unidos e na França. Atuou como técnico de educação do Ministério da Educação e Cultura, coordenador da Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, e diretor de Programa do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. Entre outros trabalhos, publicou: Os sistemas ideais de educação (1945), A educação em Santa Catarina (1954), Introdução ao estudo do currículo da escola primária (1955), Educação e Serviço Social (1957), Educação e desenvolvimento no Brasil (s.d.), Uma experiência educacional em curso: relatório interpretativo e crítico (s.d.), Teoria e prática da escola elementar (1960).
[2] A organização “moderna”, preconizada por Moreira é melhor detalhada na Introdução ao estudo do currículo da escola primária. Lá ele previa a “continuidade” e a “progressão” do currículo, a partir de seis critérios: 1) dificuldade de conteúdo; 2) interesses, capacidade, necessidades dos alunos da classe; 3) nível de maturidade dos alunos; 4) eficácia do material didático disponível; 5) tendência dos educadores das escolas em geral, quanto à fixação de graus ou etapas progressivas; e 6) desenvolvimento progressivo dos alunos” (Moreira, 1955, p. 205).