sábado, 4 de dezembro de 2010

Erudição histórica e historiografia didática na primeira República: a iniciativa de João Ribeiro (1895/1912)

Detalhe do cartaz do VII Encontro Nacional de História e Cultura, Universidade Tiradentes, dez. 2010.
Colegas da Unit, 
Boa noite!
Gostaria de agradecer o convite do Prof. Antônio Bittencourt e parabenizar os colegas desta instituição por manterem um evento nacional na área de História por tanto tempo e com a mesma qualidade (...).


O assunto desta fala
João Ribeiro de Andrada Fernandes é hoje considerado um dos mestres da língua “brasileira” e um divisor de águas na historiografia didática para o ensino secundário.
Nesta fala, entretanto, tratarei da escrita didática para as crianças configurada na História do Brasil. A obra foi impressa em três versões, provavelmente, pela primeira vez em 1900, ano do IV Centenário da Independência e época em que foi lançada a História do Brasil para os cursos médio e superior (curso ginasial).
Aqui, problematizarei a relação entre a ciência de referência e a escrita da História escolar, dentro dos marcos da história das disciplinas estabelecidos por Andrés Chervel.
É importante informar que as conclusões anunciadas nesta fala são parte de um texto intitulado “Erudição histórica e livro didático de História na primeira República”. O texto é um dos capítulos do livro Histórias do ensino de História no Brasil (volume 2), lançado hoje, neste evento (Cf. capa na imagem à direita).


História: conteúdos substantivos e concepções de ciência
Benjamin Constant. Um dos
personagens eleitos nos
Rudimentos. Ribeiro, 1912, p. 143.
Como já foi bastante anunciado neste evento, a natureza da ciência da História professada por João Ribeiro em sua obra mais conhecida – História do Brasil (1900) é uma apropriação da história da cultura alemã, centrada em noções de “sentimentos característicos” e “células”.
Mas, o que ele pensava ser a ciência da História? A resposta é fornecida em outro livro didático – História universal – publicado em 1894 e reimpresso sem alterações substantivas em 1919.
Para João Ribeiro a História não poderia “ser a narrativa de sucessos casuais desordenados e incompatíveis com uma coordenação metódica e científica”[1]. Com essa afirmação pela negativa ele queria dizer que a História era ciência ao modo positivo, ou seja, fundamentada em leis, generalização e causalidade.
Duque de Caxias. Um dos
personagens eleitos nos
Rudimentos.Ribeiro, 1912, p. 131.
Esse padrão de regularidade, em termos de História, era recente (século XIX). A Biologia o fornecia. Estava diretamente relacionado às noções de “divisão do trabalho”, de “progresso por diferenciação”, de sociedade e indivíduos como “organismo”.
Como organismos, portanto, homens e sociedades estariam submetidos às “influências” mesológicas (fenômenos astronômicos, habitat, altitude, longitude/latitude e clima), biológicas (progresso, crescimento, diferenciação, hereditariedade, filogênese e ontogênese), e psicológicos (que pesavam na construção das instituições – linguagem, direito, moral, religião, arte e ciência).
A grande estratégia metodológica para aferir a regularidade da maioria das ações humanas, por fim, seria fornecida pela Estatística.
Exposta a sua teoria, cabe colocar a questão ligada à ideia de transposição didática: em que medida tais soluções sobre a ciência da História, a origem e a identidade brasileiras seriam transferidas para o manual de História do Brasil destinado ao ensino primário no início do século XX?


Uma síntese da História do Brasil
Na História do Brasil para crianças, João Ribeiro privilegia o acontecimento, em lugar dos grandes homens. O acontecimento é o insumo básico para caracterizar a sua hipótese sobre a origem, desenvolvimento e a identidade do Brasil.
O tempo da experiência brasileira é limitado pelo descobrimento (1500) e a proclamação da República. As justificativas para o marco inicial são os condicionantes da expansão marítima e comercial europeia, impressos sobre a vida brasileira e não o voluntarismo de homens como Colombo e Cabral. O final da História (1889), por outro lado, é indicador de erudição. Para o autor, os fatos ainda estão em ebulição, não havendo maturidade ainda para o julgamento desse presente imediato.
Isso não quer dizer que a História do tempo presente não seja privilegiada. O tempo narrado, contabilizado em páginas, indica que 28% do livro é dedicado ao século XIX, o tempo da autonomia e da implantação da democracia. Esse número também significa o dobro do espaço concedido aos eventos iniciais como o descobrimento, exploração e colonização, que foi de 14%.
Ao longo do livro de 156 páginas, 22 capítulos distribuem a matéria aparentemente destinada a 22 lições. Lições que ocupam de 5 a 7 páginas em média, em forma de narração. Os 22 capítulos, entretanto, obedecem (de forma adaptada) à lógica comunicada no livro para o ensino “superior” – sua aposta cientificista para a organização da experiência brasileira.
Essa lógica orientou a periodização em 6 atos: 1. descobrimento, exploração e início da colonização (1500/1549); 2. lutas contra o monopólio dos franceses, ingleses e holandeses; 3. formação do Brasil, revoltas nativistas; 4. definição do território; 5. surgimento do espírito de autonomia; 6. transição do absolutismo para a democracia.
As ações, majoritariamente, depõem sobre a experiência do político, embora iniciem-se sob domínio do econômico: o próprio modo de periodizar já fornece indícios desse caráter. As ações dominantes, enfim, são: descobrir, explorar e colonizar; guerrear, invadir, restaurar, libertar, rebelar-se, lutar, fundar, expulsar, conspirar, condenar, executar, revolucionar, submeter, partir, ficar, tornar-se independente, abdicar, unificar, abolir, proclamar, e suceder (durante a República).
Os cenários são, inicialmente, o litoral norte, depois a Bahia, o Rio de Janeiro, Pernambuco, Maranhão, Ceará, Minas Gerais, Rio da Prata, Paraguai e Rio de Janeiro, novamente, ao final da História. Nesses espaços, passeiam personagens masculinos, obviamente, ligados à experiência do político – nobres, administradores, militares, clérigos, comerciantes – e, de forma residual, os índios, companhias de comércio e partidos políticos.
A síntese da História do Brasil, enfim, é um desfilar de conflitos que explicam (que dão sentido) a chegada dos portugueses, a formação inicial da sociedade, configuração do território, a origem do sentimento de autonomia, o esforço para evitar a fragmentação, e a implantação do regime democrático – na figura da República (Cf. seções - textos complementares - da obra nas duas imagens que se seguem).
Excerto de texto principal - "O descobrimento", acompanhado de imagem estética e estimuladora.
Ribeiro, 1912, p. 6-7. Foto: itamarfo.blogspot.com (2010).

Excerto de texto principal - "Os índios selvagens", acompanhado de imagem estética e estimuladora.
Ribeiro, 1912, p. 14-15. Foto: itamarfo.blogspot.com (2010).

Relações entre a historiografia de referência e a escrita histórica escolar
Em que medida as escolhas para o ensino primário são devedoras das suas ideias sobre a ciência da História e os objetos da História do Brasil?
A investigação nos obrigou a considerar a ideia de João Ribeiro de que a escrita didática para as crianças deve reproduzir o ambiente da sala de aula. A divisão em capítulos de dimensões simétricas é o primeiro indício: capítulos são aulas, praticamente independentes umas das outras, com início, meio e fim, título, sumário, texto narrativo e sinopse ao final de um período.
Mesmo que João Ribeiro fosse avesso à “afetação pedagógica”, resultante de uma espécie de “linguagem infantil” comum nos livros didáticos da época, não deixou, contudo de preocupar-se com a dosagem da “quantidade de matéria”, e de simplificar o vocabulário e a sintaxe da obra. Basta comparar as versões da História do Brasil do curso primário, com os exemplares para os cursos médio e superior.
Também é evidente a sua tentativa de traspor a aposta cientificista. A ideia de Brasil como um organismo, estruturado em células, o desenvolvimento nacional explicitado em termos de leis e causalidades (o progresso), o fim da monarquia e a abolição como fatos inexoráveis explicitam a transposição.
Por outro lado, não há como verificar no livro didático o uso da base estatística para a regularidade das ações humanas, nem os fatores psicológicos que tanto pesavam na construção das instituições. Linguagem, direito, moral, religião, arte e ciência, instituições básicas, contudo, não ganham espaço na obra de João Ribeiro para as crianças. (Cf. seções - sinopse, cronologia e sumário - da obra nas duas imagens que se seguem).
Excerto de "sinopse geral - fatos e datas - lutas contra os invasores". Ribeiro, 1912, p. 14-15. 
Foto: itamarfo.blogspot.com (2010).

Excerto de "cronologia" e "índice" [sumário]. Ribeiro, 1912, p. 14-15. Foto: itamarfo.blogspot.com (2010).

Conclusões
No início, anunciei a proposta de examinar a relação entre a ciência de referência e a escrita da História escolar de João Ribeiro. As conclusões a que cheguei, embora centradas na análise de um manual, podem fundamentar novas hipóteses sobre a ideia de transposição didática no início da República, em vigor entre pesquisadores da História da historiografia e da História do ensino de História.
João Ribeiro cunhou justificativas para a defesa da História como ciência e tais justificativas sofreram poucas modificações ao longo de 25 anos.
No ato de escrever para as crianças, João Ribeiro transpôs a sua aposta (especulativa e cientificista) no trabalho de organização da experiência brasileira. O historiador sergipano, por outro lado, encontrou muitas dificuldades para transferir alguns traços dominantes das teorias da História professada – se é que queriam mesmo efetuar essa transposição. Outros condicionantes agiram na configuração da escrita da História para as crianças. Tais condicionantes foram, provavelmente, as finalidades e a clientela dessa modalidade historiográfica.
Essas conclusões me levam a reforçar a hipótese de que a historiografia didática é uma outra História, que não obedece à risca um suposto padrão fornecido por uma instituição legitimadora da ciência de referência, e nem mesmo é coerente com a epistemologia histórica professada por quem dela se ocupa.
Ainda que alguns historiadores e professores de História da primeira República tenham pensado em termos de transposição didática, ou seja, disciplina escolar como reflexo da ciência de referência – a produção de livros didáticos com espelho de um suposto cânone do IHGB –, os estudiosos sobre o tema devem matizar essa afirmação (e o seu próprio desejo) sob pena de falsear os resultados da investigação.
Mapa (imagem substitutiva e estética) - "Cerco do Recife pelas forças luso-brasileiras (1653)".
Ribeiro, 1912, p. 54. Foto: itamarfo.blogspot.com (2010).

Paisagem (imagem estética e estimuladora) - "Alcaçar da Boa Vista - Pernambuco". Ribeiro, 1912, p. 47.
Foto: itamarfo.blogspot.com (2010).
Ensinar “História como uma ciência”, não é o mesmo que ensinar “a ciência da História” na escolarização básica. Dizendo de outra forma e com referentes contemporâneos: no ensino de História da primeira República, são tão rarefeitas as teorias da História professadas no IHGB, quanto o são as possibilidades de apropriação da(s) nova(s) História(s) no dia a dia da maioria das classes de História no Brasil do início do século XXI.
Muito obrigado!


Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Erudição histórica e historiografia didática na primeira República: a iniciativa de João Ribeiro. Palestra proferida no VII Encontro Nacional de História e Cultura. Aracaju, Universidade Tiradentes, 03 dez. 2010.<http://itamarfo.blogspot.com/2010/12/erudicao-historica-e-historiografia.html>

Notas
[1] RIBEIRO, João. A ciência da História. In: História universal: lições escritas de conformidade com o programa de 1918 do Colégio Pedro II. 2 ed. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos, 1919. pp. 337-355. [Trecho citado - p. 355]. Cf. RIBEIRO, João. A ciência da História. In: História Antiga (Oriente e Grécia). Rio de Janeiro, s. n., 1894. pp. 1-26.