Detalhe do cartaz do VII Encontro Nacional de História e Cultura, Universidade Tiradentes, dez. 2010. |
Boa noite!
Gostaria de agradecer o convite do Prof. Antônio Bittencourt e parabenizar os colegas desta instituição por manterem um evento nacional na área de História por tanto tempo e com a mesma qualidade (...).
O assunto desta fala
O assunto desta fala
João Ribeiro de Andrada Fernandes é hoje considerado um dos mestres da língua “brasileira” e um divisor de águas na historiografia didática para o ensino secundário.
Nesta fala, entretanto, tratarei da escrita didática para as crianças configurada na História do Brasil. A obra foi impressa em três versões, provavelmente, pela primeira vez em 1900, ano do IV Centenário da Independência e época em que foi lançada a História do Brasil para os cursos médio e superior (curso ginasial).
Aqui, problematizarei a relação entre a ciência de referência e a escrita da História escolar, dentro dos marcos da história das disciplinas estabelecidos por Andrés Chervel.É importante informar que as conclusões anunciadas nesta fala são parte de um texto intitulado “Erudição histórica e livro didático de História na primeira República”. O texto é um dos capítulos do livro Histórias do ensino de História no Brasil (volume 2), lançado hoje, neste evento (Cf. capa na imagem à direita).
História: conteúdos substantivos e concepções de ciência
Benjamin Constant. Um dos personagens eleitos nos Rudimentos. Ribeiro, 1912, p. 143. |
Mas, o que ele pensava ser a ciência da História? A resposta é fornecida em outro livro didático – História universal – publicado em 1894 e reimpresso sem alterações substantivas em 1919.
Para João Ribeiro a História não poderia “ser a narrativa de sucessos casuais desordenados e incompatíveis com uma coordenação metódica e científica”[1]. Com essa afirmação pela negativa ele queria dizer que a História era ciência ao modo positivo, ou seja, fundamentada em leis, generalização e causalidade.
Duque de Caxias. Um dos personagens eleitos nos Rudimentos.Ribeiro, 1912, p. 131. |
Como organismos, portanto, homens e sociedades estariam submetidos às “influências” mesológicas (fenômenos astronômicos, habitat, altitude, longitude/latitude e clima), biológicas (progresso, crescimento, diferenciação, hereditariedade, filogênese e ontogênese), e psicológicos (que pesavam na construção das instituições – linguagem, direito, moral, religião, arte e ciência).
A grande estratégia metodológica para aferir a regularidade da maioria das ações humanas, por fim, seria fornecida pela Estatística.
Exposta a sua teoria, cabe colocar a questão ligada à ideia de transposição didática: em que medida tais soluções sobre a ciência da História, a origem e a identidade brasileiras seriam transferidas para o manual de História do Brasil destinado ao ensino primário no início do século XX?
Uma síntese da História do Brasil
Na História do Brasil para crianças, João Ribeiro privilegia o acontecimento, em lugar dos grandes homens. O acontecimento é o insumo básico para caracterizar a sua hipótese sobre a origem, desenvolvimento e a identidade do Brasil.
O tempo da experiência brasileira é limitado pelo descobrimento (1500) e a proclamação da República. As justificativas para o marco inicial são os condicionantes da expansão marítima e comercial europeia, impressos sobre a vida brasileira e não o voluntarismo de homens como Colombo e Cabral. O final da História (1889), por outro lado, é indicador de erudição. Para o autor, os fatos ainda estão em ebulição, não havendo maturidade ainda para o julgamento desse presente imediato.
Isso não quer dizer que a História do tempo presente não seja privilegiada. O tempo narrado, contabilizado em páginas, indica que 28% do livro é dedicado ao século XIX, o tempo da autonomia e da implantação da democracia. Esse número também significa o dobro do espaço concedido aos eventos iniciais como o descobrimento, exploração e colonização, que foi de 14%.
Ao longo do livro de 156 páginas, 22 capítulos distribuem a matéria aparentemente destinada a 22 lições. Lições que ocupam de 5 a 7 páginas em média, em forma de narração. Os 22 capítulos, entretanto, obedecem (de forma adaptada) à lógica comunicada no livro para o ensino “superior” – sua aposta cientificista para a organização da experiência brasileira.
Essa lógica orientou a periodização em 6 atos: 1. descobrimento, exploração e início da colonização (1500/1549); 2. lutas contra o monopólio dos franceses, ingleses e holandeses; 3. formação do Brasil, revoltas nativistas; 4. definição do território; 5. surgimento do espírito de autonomia; 6. transição do absolutismo para a democracia.
As ações, majoritariamente, depõem sobre a experiência do político, embora iniciem-se sob domínio do econômico: o próprio modo de periodizar já fornece indícios desse caráter. As ações dominantes, enfim, são: descobrir, explorar e colonizar; guerrear, invadir, restaurar, libertar, rebelar-se, lutar, fundar, expulsar, conspirar, condenar, executar, revolucionar, submeter, partir, ficar, tornar-se independente, abdicar, unificar, abolir, proclamar, e suceder (durante a República).
Os cenários são, inicialmente, o litoral norte, depois a Bahia, o Rio de Janeiro, Pernambuco, Maranhão, Ceará, Minas Gerais, Rio da Prata, Paraguai e Rio de Janeiro, novamente, ao final da História. Nesses espaços, passeiam personagens masculinos, obviamente, ligados à experiência do político – nobres, administradores, militares, clérigos, comerciantes – e, de forma residual, os índios, companhias de comércio e partidos políticos.
A síntese da História do Brasil, enfim, é um desfilar de conflitos que explicam (que dão sentido) a chegada dos portugueses, a formação inicial da sociedade, configuração do território, a origem do sentimento de autonomia, o esforço para evitar a fragmentação, e a implantação do regime democrático – na figura da República (Cf. seções - textos complementares - da obra nas duas imagens que se seguem).
Excerto de texto principal - "O descobrimento", acompanhado de imagem estética e estimuladora. Ribeiro, 1912, p. 6-7. Foto: itamarfo.blogspot.com (2010). |
Excerto de texto principal - "Os índios selvagens", acompanhado de imagem estética e estimuladora. Ribeiro, 1912, p. 14-15. Foto: itamarfo.blogspot.com (2010). |
Relações entre a historiografia de referência e a escrita histórica escolar
Em que medida as escolhas para o ensino primário são devedoras das suas ideias sobre a ciência da História e os objetos da História do Brasil?
A investigação nos obrigou a considerar a ideia de João Ribeiro de que a escrita didática para as crianças deve reproduzir o ambiente da sala de aula. A divisão em capítulos de dimensões simétricas é o primeiro indício: capítulos são aulas, praticamente independentes umas das outras, com início, meio e fim, título, sumário, texto narrativo e sinopse ao final de um período.
Mesmo que João Ribeiro fosse avesso à “afetação pedagógica”, resultante de uma espécie de “linguagem infantil” comum nos livros didáticos da época, não deixou, contudo de preocupar-se com a dosagem da “quantidade de matéria”, e de simplificar o vocabulário e a sintaxe da obra. Basta comparar as versões da História do Brasil do curso primário, com os exemplares para os cursos médio e superior.
Também é evidente a sua tentativa de traspor a aposta cientificista. A ideia de Brasil como um organismo, estruturado em células, o desenvolvimento nacional explicitado em termos de leis e causalidades (o progresso), o fim da monarquia e a abolição como fatos inexoráveis explicitam a transposição.
Por outro lado, não há como verificar no livro didático o uso da base estatística para a regularidade das ações humanas, nem os fatores psicológicos que tanto pesavam na construção das instituições. Linguagem, direito, moral, religião, arte e ciência, instituições básicas, contudo, não ganham espaço na obra de João Ribeiro para as crianças. (Cf. seções - sinopse, cronologia e sumário - da obra nas duas imagens que se seguem).
Excerto de "sinopse geral - fatos e datas - lutas contra os invasores". Ribeiro, 1912, p. 14-15. Foto: itamarfo.blogspot.com (2010). |
Excerto de "cronologia" e "índice" [sumário]. Ribeiro, 1912, p. 14-15. Foto: itamarfo.blogspot.com (2010). |
Conclusões
No início, anunciei a proposta de examinar a relação entre a ciência de referência e a escrita da História escolar de João Ribeiro. As conclusões a que cheguei, embora centradas na análise de um manual, podem fundamentar novas hipóteses sobre a ideia de transposição didática no início da República, em vigor entre pesquisadores da História da historiografia e da História do ensino de História.
João Ribeiro cunhou justificativas para a defesa da História como ciência e tais justificativas sofreram poucas modificações ao longo de 25 anos.
No ato de escrever para as crianças, João Ribeiro transpôs a sua aposta (especulativa e cientificista) no trabalho de organização da experiência brasileira. O historiador sergipano, por outro lado, encontrou muitas dificuldades para transferir alguns traços dominantes das teorias da História professada – se é que queriam mesmo efetuar essa transposição. Outros condicionantes agiram na configuração da escrita da História para as crianças. Tais condicionantes foram, provavelmente, as finalidades e a clientela dessa modalidade historiográfica.
Essas conclusões me levam a reforçar a hipótese de que a historiografia didática é uma outra História, que não obedece à risca um suposto padrão fornecido por uma instituição legitimadora da ciência de referência, e nem mesmo é coerente com a epistemologia histórica professada por quem dela se ocupa.
Ainda que alguns historiadores e professores de História da primeira República tenham pensado em termos de transposição didática, ou seja, disciplina escolar como reflexo da ciência de referência – a produção de livros didáticos com espelho de um suposto cânone do IHGB –, os estudiosos sobre o tema devem matizar essa afirmação (e o seu próprio desejo) sob pena de falsear os resultados da investigação.
Mapa (imagem substitutiva e estética) - "Cerco do Recife pelas forças luso-brasileiras (1653)". Ribeiro, 1912, p. 54. Foto: itamarfo.blogspot.com (2010). |
Paisagem (imagem estética e estimuladora) - "Alcaçar da Boa Vista - Pernambuco". Ribeiro, 1912, p. 47. Foto: itamarfo.blogspot.com (2010). |
Muito obrigado!
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Erudição histórica e historiografia didática na primeira República: a iniciativa de João Ribeiro. Palestra proferida no VII Encontro Nacional de História e Cultura. Aracaju, Universidade Tiradentes, 03 dez. 2010.<http://itamarfo.blogspot.com/2010/12/erudicao-historica-e-historiografia.html>
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Erudição histórica e historiografia didática na primeira República: a iniciativa de João Ribeiro. Palestra proferida no VII Encontro Nacional de História e Cultura. Aracaju, Universidade Tiradentes, 03 dez. 2010.<http://itamarfo.blogspot.com/2010/12/erudicao-historica-e-historiografia.html>
Notas
[1] RIBEIRO, João. A ciência da História. In: História universal: lições escritas de conformidade com o programa de 1918 do Colégio Pedro II. 2 ed. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos, 1919. pp. 337-355. [Trecho citado - p. 355]. Cf. RIBEIRO, João. A ciência da História. In: História Antiga (Oriente e Grécia). Rio de Janeiro, s. n., 1894. pp. 1-26.
[1] RIBEIRO, João. A ciência da História. In: História universal: lições escritas de conformidade com o programa de 1918 do Colégio Pedro II. 2 ed. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos, 1919. pp. 337-355. [Trecho citado - p. 355]. Cf. RIBEIRO, João. A ciência da História. In: História Antiga (Oriente e Grécia). Rio de Janeiro, s. n., 1894. pp. 1-26.