A nova base nacional comum francesa, produzida em 2013, entrará em vigor em 2016. |
No meio da tarde, o
professor Paulo Melo (UEPG) ofereceu-se para “pôr a colher nesse angu” e
eu lhe disse: “não só pode como deve. E não tenhamos medo de apresentar
posições e modificá-las ao longo da discussão”. Essa é a função do debate
acadêmico, quando não está em jogo a disputa por um cargo, como, felizmente,
não é esse o caso (está claríssimo que eu e o professor Saddi, acho que posso
incluir também o professor Melo nesse grupo, não queremos assumir o Ministério
da Educação da Presidente Dilma). O que desejamos é qualificar o debate na área
de história que, em boa parte das nossas iniciativas historiadoras, não está à
altura da demanda e da urgência.
Assim, seguindo as
indicações comunicadas ao Paulo Melo, não vou responder às discordâncias do
Saddi, imediatamente (mas darei respostas objetivas em breve). Nos dias que se
seguem, farei três ou quatro descrições de como o problema da “base” vem sendo
enfrentado em outros países e também refinarei as categorias que uso (e nesse
ponto, os argumentos de Saddi já começaram a surtir efeito na minha escrita).
Para começar, tento
comunicar o sentido de “base comum” expresso pelos franceses, que passaram por
processo semelhante há alguns anos e agora enfrentam os dilemas da sua
aplicação (Develay, 2014). Em seguida, nas conclusões, estabeleço comparações
entre Brasil e França e comento possíveis saídas postuladas por alguns dos nossos
colegas (não necessariamente Saddi ou Melo, mas alguns profissionais com quem
tenho conversado, por exemplo em Cachoeira-BA, Florianópolis-SC, Natal e Porto
Alegre-RS).
Quero agradecer os
apoios dos mestres citados e também do professor José Vieira, da Universidade
Federal de Alagoas (UFAL), e comunicar que, pela primeira vez, abro espaço
nesse blog para outros autores publicarem. Estejam à vontade para contribuir,
trazendo experiências de diferentes espaços e tempos ou mesmo contestando as
nossas teses (se preferirem, podem usar o espaço dos comentários,
disponibilizado na ao final dessa página). Aqui, diferentemente dos debates que
temos participado, o tempo de exposição não é limitado a 20 minutos, a
discussão não se encerra às 22h, as falas não se perdem ao vento (e não
aguardam seis meses para o depósito em Anais), as dúvidas e questionamentos dos
interessados podem ser feitas mediante várias intervenções (na hora da postagem
ou em dias depois), e o registro das descrições, teses e dúvidas permanecem Ad Eternum, ou seja, construímos um
arquivo corrente-permanente (ao menos, até a até a extinção das “nuvens”).
Em junho último, a
presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei do Plano Nacional da Educação (Lei n.
13.005, de 25 de junho de 2014), que prescreve, entre várias metas, a de n. 7.1, que afirma:
Aprender a aprender deveria ser a principal competência da base comum francesa, reclama o historiador Claude Leliévre. |
estabelecer e implantar, mediante pactuação interfederativa,
diretrizes pedagógicas para a educação básica e a base nacional comum dos
currículos, com direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dos (as)
alunos (as) para cada ano do ensino fundamental e médio, respeitada a
diversidade regional, estadual e local (Brasil, 2014. Grifos nossos).
Como Lei,
subtende-se que o Estado incorpora essa prescrição e o(s) Governo(s)
encarrega(m)-se de viabilizá-las. Contudo, a definição de “base nacional comum
dos currículos” (BNCC) não é apresentada. Da mesma forma, o responsável por sua elaboração é dúbio. A frase “caberá [...] a adoção de medidas [...]
necessárias ao alcance das metas” não responsabiliza o MEC e/ou as secretarias
estaduais e municipais de Educação pela produção do documento que estabelece a
BNCC.
Essa situação, para
o mal ou para o bem, incita-nos ao confronto político e, consequentemente, nos deixa livres para buscar os referentes que
julgamos (operacional e hipoteticamente) adequados
ao preenchimento da lacuna. E a busca pode ser feita, entre tantos lugares, em
nossos sonhos militantes, em nossos saberes experienciais, na literatura
especializada e na vivência de outros países. Contudo, mais que conhecer as
variações sintáticas e semânticas, importa distinguir referenciais teóricos,
justificativas e natureza dessas bases comuns. Em outras palavras, importa
descobrir: base de quem? Base para quem?
A base comum francesa de 2006 é justificada por três razões: a diversificação dos conhecimentos ocorrida nas últimas décadas, o cumprimento das finalidades estatais para a educação escolar do aluno (efetivar sua escolaridade, construir seu futuro pessoal e profissional e ser bem sucedido na vida em sociedade) e o compartilhamento dos “valores da República”. Uma razão, entretanto, é revelada ao final da introdução da brochura que melhor traduz a lei para os franceses: “a definição de base comum apoia-se, igualmente sobre a recomendação do Parlamento Europeu e do Conselho da União europeia em matéria de competências-chave para a educação e a aprendizagem ao longo da vida” (France, 2006b, p. 3. Grifos do autor). Aqui, os legisladores demonstram preocupação com os resultados da França obtidos nos exames transnacionais, notadamente o PISA. Aqui também estão algumas das razões para certa repulsa à base comum, envolvendo denúncias que vão, desde a perda da autonomia nacional ao perigo da extinção das disciplinas escolares (acompanhe o vídeo).
A filiação teórica
de “conhecimentos” e de “competências” não é explicitada na brochura ou no
Decreto. Aliás, no Decreto, há menções à “base comum”, mas também aos “objetivos”
de cada ciclo e às “referências anuais prioritárias” (França, 2006a). Contudo,
pelas prescrições – que “não substituem os programas da escola primária e do
colégio” e nem os sintetizam (France, 2006b, p. 3) – podemos definir claramente
os “conhecimentos” [connaissances]
como conteúdos conceitual (conceitos, princípios, acontecimentos etc.),
traduzidos por substantivos, e as “capacidades” [capacités] como habilidades, traduzidas, evidentemente, por verbos.
Observem que o Decreto e o título da brochura fazem referências a competências
[compétences], mas o interior da
brochura menciona “capacidades”, nos levando a concluir que os termos
“capacidades” e “competências” portam o mesmo sentido.
Outro desvio
significativo para nós brasileiros, acostumados a criticar as contradições e
dubiedades da nossa legislação educacional é a inclusão, na brochura, das “predisposições”
[atitudes] como terceiro elemento da “base”. As predisposições, excluídas do
título da brochura e também no Decreto, são traduzidas por
substantivos adjetivados (valores).
Por fim, segue a
natureza dessa base. São sete os elementos: 1. dominar a língua francesa [La maîtrise de la langue française]; 2.
praticar uma língua vida estrangeira [La
pratique d’une langue vivante étrangère]; 3. dominar os principais
elementos das matemáticas e das culturas científica e tecnológica [Les principaux éléments de mathématiques et
la aculture scientifique et technologique]; 4. dominar as técnicas usuais
de informação e da comunicação [La
maîtrise des techiques usuelles de l’information et de la communication];
5. adquirir cultura humanística [La
culture humaniste]; 6. adquirir competências sociais e cívicas – viver em
sociedade e preparar-se viver como cidadão [Les
compétences sociales et civiques]; 7. adquirir autonomia e espírito de
iniciativa [L’autonomie et l’initiative].
Detalhe da capa de Le socle commun des connaissances et des compétences (2006) |
Como vimos acima, a
elaboração de um documento intitulado base nacional comum enfrenta os mesmos
dilemas e apresenta idênticas fragilidades previamente apontadas pelos
brasileiros reticentes ou céticos à existência de um instrumento semelhante no
Brasil.
Em primeiro lugar, a
legislação é omissa, dúbia e/ou contraditória em termos teóricos. Ela não
define a natureza dos elementos constituintes da base. No caso
da palavra socle, pode ser compreensível.
É provável que transmita o mesmo sentido para 99% da população alfabetizada
francesa. O mesmo não serve para competências e para capacidades.
A base não
substitui os programas de ensino, ou seja, os documentos que comunicam
substantivos, habilidades e substantivos adjetivados em última instância (os
objetivos educacionais a serem ensinados pelos professores e atingidos pelos
alunos). Podemos entender que o seu detalhamento está presente na maioria dos
programas e em diferenciadas doses, mas não representa um programa para nenhuma
região do país. Trocando em miúdos, a aplicação da base francesa não resulta em
homogeneização de programas; são, no sentido que a maioria dos especialistas
entende no Brasil, diretrizes ou parâmetros.
Como desdobramento,
a base nacional francesa não gera direitos de aprendizagens nacionais. Ela
poderia até gerar direitos mas, como não substitui os programas, não se pode
dizer que haja um conjunto de prescrições a serem exigidas por pais e alunos de
todo o país em todas as escolas francesas. Se há liberdade para transformar
esta ou aquela “referência” em objetivo educacional (ou expectativa de
aprendizagem), o “direito” a determinados conhecimentos e competências, para
usar o glossário francês, caso exista, é difuso.
Outro dado
importante é que a base não é estruturada sobre disciplinas. Essa condição
significou o fim das disciplinas escolares? Não.
Para começar, três
das competências referem-se diretamente à “língua francesa”, “língua
estrangeira” e às “matemáticas”. A história e a geografia, ainda que venham
desacompanhadas da expressão “disciplina” (são “referências históricas” e
“referências geográficas”), devem fornecer as capacidades e atitudes que permitam
a aquisição da quinta “competência”: a cultura humanística. Entre os
“conhecimentos”, a base prescreve “dominar/possuir referências históricas” [avoir des repères historiques]
(períodos, tratados, datas, atores, acontecimentos, obras literárias, conceitos
do mundo político e econômico etc.). Entre as capacidades, a base orienta, por
exemplo: situar eventos e obras artístico-literárias no tempo e mobilizar
conhecimentos para dar sentido à atualidade. Por fim, entre as atitudes, a base
afirma ser fundamental ler, frequentar museus e adquirir a consciência de
universalidade da experiência humana (France, 2006b, p. 18-19).
Desenho de A. Legrand. Cafe pédagogique. |
Conclusões
Fazendo um
exercício de aproximações e distanciamento entre duas assimétricas unidades de comparação (Brasil e França) e, consequentemente, não tomando a França como como
exemplo de excelência (nosso objetivo é melhor entender a nossa situação a
partir do exame do “outro”), podemos afirmar que já temos a certidão de
nascimento da nossa “base nacional”. Trata-se das Diretrizes Curriculares Nacionais
Gerais para a Educação Básica (DCNGEB), instituída pela Resolução CNE/CEB n. 4,
de 13 de julho de 2010. Seu objetivo é claro: traduzir os princípios
educacionais comunicados pela Constituição de 1988 e pela Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDBN), entre outros dispositivos, em “orientações
que contribuam para assegurar a formação básica comum nacional” (Brasil,
2010, Art. 2º, I. Grifos meus). Observem que esse artigo das DCNGEB não menciona os termos
“currículo” ou “curricular”. Mas é o que quer dizer e fazer quando estabelece “língua
portuguesa”, “matemática”, “o conhecimento do mundo físico, natural, da
realidade social e política, especialmente do Brasil, incluindo-se o estudo da
História e das Culturas Afro-Brasileira e indígena”, a “arte”, a “educação
física” e o “ensino religioso” como “componentes curriculares” da “base
nacional comum nacional” (sic). (Brasil, 2014, Art. 14, § 1º).
Em síntese, o que nos falta, por esse raciocínio, não é uma BNCC. O que necessitamos é de “orientações que contribuam para assegurar a formação básica comum
nacional”. E o que seriam essas orientações, se as DCNGEB já prescrevem (na
verdade, replicam) os “princípios” e os “componentes curriculares”? Só vejo,
por ora, uma resposta: as sentenças, constituídas por substantivos, habilidades
e valores, produzidas a partir de cada “componente curricular” que constituiriam
os conteúdos a serem ensinados pelos professores e aprendidos pelos anos. Se o
PNE não prescreve uma “nova” base curricular nacional comum, então,
logicamente, o que se há de elaborar são mesmos esses conteúdos, ou seja (como afirma o próprio documento), as
sentenças que comunicam os “direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dos (as) alunos
(as) para cada ano do ensino fundamental e médio” (Brasil, 2014. Art. 7.1. Grifos
nossos).
Aos que veem
incompatibilidade da opção francesa com a realidade brasileira, ou seja, para
os que entendem que as nossas diretrizes são insuficientes e genéricas
(interpretáveis sob os mais diferentes interesses) ou irrealizáveis (por
incapacidade formativa dos nossos professores, incapacidade operacional dos
sistemas educacionais estaduais e municipais e, ainda, pelas contradições
apresentadas pelas próprias DCNGEB), fica difícil não concluir que o nosso Plano
Nacional de Educação já nasce morto, posto que apenas reúne, em um
mesmo parágrafo, o “curricular” e o “base nacional comum”. Seguindo essa lógica,
uma das saídas para o natimorto PNE seria, então, partir diretamente para o
“abominável” programa nacional (documento que detalha conhecimentos,
capacidades e predisposições, que os alunos têm direito de aprender e os
professores a responsabilidade de ensinar, ano a ano, em todo o Brasil), ainda
que seja considerada uma margem para a criação de diretos de aprendizagem
fundadas em conhecimentos sobre o local.
Para esses
colegas, já adianto a partir da empiria: é assim que ocorre na França e tal
saída também não implica em problema menor. Por lá, os programas de história
são nacionais – produzidos pelo Estado (inspetores, professores
universitários), sob consulta pública (professores, pais de alunos,
sindicalistas, entre outros). Contudo, esses mesmos programas são de livre
interpretação pelos autores/editores de livros didáticos e, o maior complicador,
de livre interpretação e aplicação por parte dos professores, já que contam com
uma centenária prerrogativa intitulada pela expressão “liberdade pedagógica”.
Acompanhe as demais postagens dessa série
4. "Base nacional comum" na África do Sul (1997-2014) - Itamar Freitas, 01/12/2014.
3. Base nacional comum: a experiência Francesa - Itamar Freitas, 01/12/2014.
Acompanhe as demais postagens dessa série
4. "Base nacional comum" na África do Sul (1997-2014) - Itamar Freitas, 01/12/2014.
3. Base nacional comum: a experiência Francesa - Itamar Freitas, 01/12/2014.
2. Sobre a obrigatoriedade de um currículo nacional para a educação básica - Rafael Saddi, 28/11/2014.
1. Base nacional comum do currículo em debate - Itamar Freitas, 25/11/2014. Referências
BRASIL, Ministério da Educação.
Resolução n. 4, de 13 de julho de 2010, que define Diretrizes Curriculares
Nacionais Gerais para a Educação Básica. Brasília, Ministério da Educação,
Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Básica. Disponível em: file:///C:/Users/Itamar/Downloads/rceb004_10.pdf
Consultado em 29 nov. 2014.
DEVELAY, Michel. Compreendre la
vie – Quels contenus d’enseignement dispenser dans une école du socle? À
nouvelle conception de l’école, nouvelles approches des savoirs? Les Cahiers Pédagogiques, [Paris], n.
415, p. 22-3, sept. / oct. 2014.
FRANCE, Ministère de l'educaton nationale, de l'enseignement supérieur et de la recherche. Décret du 11 juillet 2006 relatif au socle
commun de connaissances et de compétences et modifiant le code de l’éducation.
[Paris]: MEN, 2006a. Disponível em: http://www.education.gouv.fr/bo/2006/29/MENE0601554D.htm
Consultado em 29 nov. 2014.
FRANCE, Ministère de l'educaton nationale, de l'enseignement supérieur et de la recherche. Le socle commun des connaissances et des
compétences: tout ce qu’il est indispensable de maîtriser à la fin de la
scolarité obligatoire. [Paris]: MEN, 2006b. Disponível em: http://media.education.gouv.fr/file/46/7/5467.pdf
Consultado em 29 nov. 2014.
FREITAS, Itamar. O
bom livro didático na França. In:
Relatório de Pós-Doutorado, apresentado ao Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade de Brasília. Brasília: 27 nov. 2014. p. 118-131.
Nenhum comentário:
Postar um comentário