sábado, 29 de novembro de 2014

Base nacional comum: a experiência francesa

A nova base nacional comum francesa, produzida em 2013, entrará em vigor em 2016.
No artigo de ontem, publicado pelo professor Rafael Saddi (UFG) - "Sobre a obrigatoriedade de um currículo nacional para a educação básica", fui questionado em três pontos sobre minhas posições acerca de uma Base Nacional Curricular Comum para oBrasil (BNCC) e prometi ao colega que responderia em seguida.
No meio da tarde, o professor Paulo Melo (UEPG) ofereceu-se para “pôr a colher nesse angu” e eu lhe disse: “não só pode como deve. E não tenhamos medo de apresentar posições e modificá-las ao longo da discussão”. Essa é a função do debate acadêmico, quando não está em jogo a disputa por um cargo, como, felizmente, não é esse o caso (está claríssimo que eu e o professor Saddi, acho que posso incluir também o professor Melo nesse grupo, não queremos assumir o Ministério da Educação da Presidente Dilma). O que desejamos é qualificar o debate na área de história que, em boa parte das nossas iniciativas historiadoras, não está à altura da demanda e da urgência.
Assim, seguindo as indicações comunicadas ao Paulo Melo, não vou responder às discordâncias do Saddi, imediatamente (mas darei respostas objetivas em breve). Nos dias que se seguem, farei três ou quatro descrições de como o problema da “base” vem sendo enfrentado em outros países e também refinarei as categorias que uso (e nesse ponto, os argumentos de Saddi já começaram a surtir efeito na minha escrita).
Para começar, tento comunicar o sentido de “base comum” expresso pelos franceses, que passaram por processo semelhante há alguns anos e agora enfrentam os dilemas da sua aplicação (Develay, 2014). Em seguida, nas conclusões, estabeleço comparações entre Brasil e França e comento possíveis saídas postuladas por alguns dos nossos colegas (não necessariamente Saddi ou Melo, mas alguns profissionais com quem tenho conversado, por exemplo em Cachoeira-BA, Florianópolis-SC, Natal e Porto Alegre-RS).
Quero agradecer os apoios dos mestres citados e também do professor José Vieira, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), e comunicar que, pela primeira vez, abro espaço nesse blog para outros autores publicarem. Estejam à vontade para contribuir, trazendo experiências de diferentes espaços e tempos ou mesmo contestando as nossas teses (se preferirem, podem usar o espaço dos comentários, disponibilizado na ao final dessa página). Aqui, diferentemente dos debates que temos participado, o tempo de exposição não é limitado a 20 minutos, a discussão não se encerra às 22h, as falas não se perdem ao vento (e não aguardam seis meses para o depósito em Anais), as dúvidas e questionamentos dos interessados podem ser feitas mediante várias intervenções (na hora da postagem ou em dias depois), e o registro das descrições, teses e dúvidas permanecem Ad Eternum, ou seja, construímos um arquivo corrente-permanente (ao menos, até a até a extinção das “nuvens”).
Aprender a aprender deveria ser a principal competência da base comum francesa, reclama o historiador Claude Leliévre.
Em junho último, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei do Plano Nacional da Educação (Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014), que prescreve, entre várias metas, a de n. 7.1, que afirma:

estabelecer e implantar, mediante pactuação interfederativa, diretrizes pedagógicas para a educação básica e a base nacional comum dos currículos, com direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dos (as) alunos (as) para cada ano do ensino fundamental e médio, respeitada a diversidade regional, estadual e local (Brasil, 2014. Grifos nossos).

Como Lei, subtende-se que o Estado incorpora essa prescrição e o(s) Governo(s) encarrega(m)-se de viabilizá-las. Contudo, a definição de “base nacional comum dos currículos” (BNCC) não é apresentada. Da mesma forma, o responsável por sua elaboração é dúbio. A frase “caberá [...] a adoção de medidas [...] necessárias ao alcance das metas” não responsabiliza o MEC e/ou as secretarias estaduais e municipais de Educação pela produção do documento que estabelece a BNCC.
Essa situação, para o mal ou para o bem, incita-nos ao confronto político e, consequentemente, nos deixa livres para buscar os referentes que julgamos (operacional e hipoteticamente) adequados ao preenchimento da lacuna. E a busca pode ser feita, entre tantos lugares, em nossos sonhos militantes, em nossos saberes experienciais, na literatura especializada e na vivência de outros países. Contudo, mais que conhecer as variações sintáticas e semânticas, importa distinguir referenciais teóricos, justificativas e natureza dessas bases comuns. Em outras palavras, importa descobrir: base de quem? Base para quem?
Na França, tal instrumento chama-se “Base comum de conhecimentos e de competências” [Socle commun des connaissances et des compétences]. O documento refere-se a base como alicerce e estrutura, no sentido brasileiro de alvenaria. Foi renovado em 11 de julho de 2006 e é uma das medidas desencadeadas pela Loi d’orientation et de programme pour l’avenir de l’École (artigo 9, da lei de 23 de abril de 2005). Em 2016, nova base está prevista para vigorar.
A base comum francesa de 2006 é justificada por três razões: a diversificação dos conhecimentos ocorrida nas últimas décadas, o cumprimento das finalidades estatais para a educação escolar do aluno (efetivar sua escolaridade, construir seu futuro pessoal e profissional e ser bem sucedido na vida em sociedade) e o compartilhamento dos “valores da República”. Uma razão, entretanto, é revelada ao final da introdução da brochura que melhor traduz a lei para os franceses: “a definição de base comum apoia-se, igualmente sobre a recomendação do Parlamento Europeu e do Conselho da União europeia em matéria de competências-chave para a educação e a aprendizagem ao longo da vida” (France, 2006b, p. 3. Grifos do autor). Aqui, os legisladores demonstram preocupação com os resultados da França obtidos nos exames transnacionais, notadamente o PISA. Aqui também estão algumas das razões para certa repulsa à base comum, envolvendo denúncias que vão, desde a perda da autonomia nacional ao perigo da extinção das disciplinas escolares (acompanhe o vídeo).




A filiação teórica de “conhecimentos” e de “competências” não é explicitada na brochura ou no Decreto. Aliás, no Decreto, há menções à “base comum”, mas também aos “objetivos” de cada ciclo e às “referências anuais prioritárias” (França, 2006a). Contudo, pelas prescrições – que “não substituem os programas da escola primária e do colégio” e nem os sintetizam (France, 2006b, p. 3) – podemos definir claramente os “conhecimentos” [connaissances] como conteúdos conceitual (conceitos, princípios, acontecimentos etc.), traduzidos por substantivos, e as “capacidades” [capacités] como habilidades, traduzidas, evidentemente, por verbos. Observem que o Decreto e o título da brochura fazem referências a competências [compétences], mas o interior da brochura menciona “capacidades”, nos levando a concluir que os termos “capacidades” e “competências” portam o mesmo sentido. 
Outro desvio significativo para nós brasileiros, acostumados a criticar as contradições e dubiedades da nossa legislação educacional é a inclusão, na brochura, das “predisposições” [atitudes] como terceiro elemento da “base”. As predisposições, excluídas do título da brochura e também no Decreto, são traduzidas por substantivos adjetivados (valores).
Por fim, segue a natureza dessa base. São sete os elementos: 1. dominar a língua francesa [La maîtrise de la langue française]; 2. praticar uma língua vida estrangeira [La pratique d’une langue vivante étrangère]; 3. dominar os principais elementos das matemáticas e das culturas científica e tecnológica [Les principaux éléments de mathématiques et la aculture scientifique et technologique]; 4. dominar as técnicas usuais de informação e da comunicação [La maîtrise des techiques usuelles de l’information et de la communication]; 5. adquirir cultura humanística [La culture humaniste]; 6. adquirir competências sociais e cívicas – viver em sociedade e preparar-se viver como cidadão [Les compétences sociales et civiques]; 7. adquirir autonomia e espírito de iniciativa [L’autonomie et l’initiative].

Detalhe da capa de Le socle commun des connaissances et des compétences (2006)
A base nacional comum francesa, a história disciplina escolar e o livro didático
Como vimos acima, a elaboração de um documento intitulado base nacional comum enfrenta os mesmos dilemas e apresenta idênticas fragilidades previamente apontadas pelos brasileiros reticentes ou céticos à existência de um instrumento semelhante no Brasil.
Em primeiro lugar, a legislação é omissa, dúbia e/ou contraditória em termos teóricos. Ela não define a natureza dos elementos constituintes da base. No caso da palavra socle, pode ser compreensível. É provável que transmita o mesmo sentido para 99% da população alfabetizada francesa. O mesmo não serve para competências e para capacidades.
A base não substitui os programas de ensino, ou seja, os documentos que comunicam substantivos, habilidades e substantivos adjetivados em última instância (os objetivos educacionais a serem ensinados pelos professores e atingidos pelos alunos). Podemos entender que o seu detalhamento está presente na maioria dos programas e em diferenciadas doses, mas não representa um programa para nenhuma região do país. Trocando em miúdos, a aplicação da base francesa não resulta em homogeneização de programas; são, no sentido que a maioria dos especialistas entende no Brasil, diretrizes ou parâmetros.
Como desdobramento, a base nacional francesa não gera direitos de aprendizagens nacionais. Ela poderia até gerar direitos mas, como não substitui os programas, não se pode dizer que haja um conjunto de prescrições a serem exigidas por pais e alunos de todo o país em todas as escolas francesas. Se há liberdade para transformar esta ou aquela “referência” em objetivo educacional (ou expectativa de aprendizagem), o “direito” a determinados conhecimentos e competências, para usar o glossário francês, caso exista, é difuso.
Outro dado importante é que a base não é estruturada sobre disciplinas. Essa condição significou o fim das disciplinas escolares? Não.
Para começar, três das competências referem-se diretamente à “língua francesa”, “língua estrangeira” e às “matemáticas”. A história e a geografia, ainda que venham desacompanhadas da expressão “disciplina” (são “referências históricas” e “referências geográficas”), devem fornecer as capacidades e atitudes que permitam a aquisição da quinta “competência”: a cultura humanística. Entre os “conhecimentos”, a base prescreve “dominar/possuir referências históricas” [avoir des repères historiques] (períodos, tratados, datas, atores, acontecimentos, obras literárias, conceitos do mundo político e econômico etc.). Entre as capacidades, a base orienta, por exemplo: situar eventos e obras artístico-literárias no tempo e mobilizar conhecimentos para dar sentido à atualidade. Por fim, entre as atitudes, a base afirma ser fundamental ler, frequentar museus e adquirir a consciência de universalidade da experiência humana (France, 2006b, p. 18-19).
Desenho de A. Legrand. Cafe pédagogique.
Para encerrar esse segundo comentário, tratemos dos livros didáticos. Se a base nacional não substitui os programas e se os programas franceses permanecem constituídos por disciplinas, o livro didático de história reina soberano, antes e depois da reforma de 2006. Aliás, permanece com os mesmos formatos, virtudes e vícios da década passada. E mais: os critérios que apontam a boa ou má qualidade do artefato continuam centrados na eficiência do suporte/design, nas qualidades linguísticas, na inclusão de ajudas pedagógicas, veiculação de valores, republicanos, nos instrumentos de acessibilidade e inclusão, na legitimidade no campo acadêmico-profissional dos seus autores e, sobretudo, o critério mais assentido, na capacidade de seguir os conhecimentos históricos registrados nos programas de história, expedidos pelo Estado francês (o programa de história é nacional). Neste último critério, principalmente, estão em acordo editores, inspetores e conselheiros. Eles requerem dos livros de história a apresentação de conhecimentos com exatidão, o mínimo possível de omissões e, ainda, a incorporação de documentos pertinentes à matéria e ao capítulo (Freitas, 2014).

Conclusões
Fazendo um exercício de aproximações e distanciamento entre duas assimétricas unidades de comparação (Brasil e França) e, consequentemente, não tomando a França como como exemplo de excelência (nosso objetivo é melhor entender a nossa situação a partir do exame do “outro”), podemos afirmar que já temos a certidão de nascimento da nossa “base nacional”. Trata-se das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica (DCNGEB), instituída pela Resolução CNE/CEB n. 4, de 13 de julho de 2010. Seu objetivo é claro: traduzir os princípios educacionais comunicados pela Constituição de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN), entre outros dispositivos, em “orientações que contribuam para assegurar a formação básica comum nacional” (Brasil, 2010, Art. 2º, I. Grifos meus). Observem que esse artigo das DCNGEB não menciona os termos “currículo” ou “curricular”. Mas é o que quer dizer e fazer quando estabelece “língua portuguesa”, “matemática”, “o conhecimento do mundo físico, natural, da realidade social e política, especialmente do Brasil, incluindo-se o estudo da História e das Culturas Afro-Brasileira e indígena”, a “arte”, a “educação física” e o “ensino religioso” como “componentes curriculares” da “base nacional comum nacional” (sic). (Brasil, 2014, Art. 14, § 1º).
Em síntese, o que nos falta, por esse raciocínio, não é uma BNCC. O que necessitamos é de “orientações que contribuam para assegurar a formação básica comum nacional”. E o que seriam essas orientações, se as DCNGEB já prescrevem (na verdade, replicam) os “princípios” e os “componentes curriculares”? Só vejo, por ora, uma resposta: as sentenças, constituídas por substantivos, habilidades e valores, produzidas a partir de cada “componente curricular” que constituiriam os conteúdos a serem ensinados pelos professores e aprendidos pelos anos. Se o PNE não prescreve uma “nova” base curricular nacional comum, então, logicamente, o que se há de elaborar são mesmos esses conteúdos, ou seja (como afirma o próprio documento), as sentenças que comunicam os “direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dos (as) alunos (as) para cada ano do ensino fundamental e médio” (Brasil, 2014. Art. 7.1. Grifos nossos).
Aos que veem incompatibilidade da opção francesa com a realidade brasileira, ou seja, para os que entendem que as nossas diretrizes são insuficientes e genéricas (interpretáveis sob os mais diferentes interesses) ou irrealizáveis (por incapacidade formativa dos nossos professores, incapacidade operacional dos sistemas educacionais estaduais e municipais e, ainda, pelas contradições apresentadas pelas próprias DCNGEB), fica difícil não concluir que o nosso Plano Nacional de Educação já nasce morto, posto que apenas reúne, em um mesmo parágrafo, o “curricular” e o “base nacional comum”. Seguindo essa lógica, uma das saídas para o natimorto PNE seria, então, partir diretamente para o “abominável” programa nacional (documento que detalha conhecimentos, capacidades e predisposições, que os alunos têm direito de aprender e os professores a responsabilidade de ensinar, ano a ano, em todo o Brasil), ainda que seja considerada uma margem para a criação de diretos de aprendizagem fundadas em conhecimentos sobre o local.
Para esses colegas, já adianto a partir da empiria: é assim que ocorre na França e tal saída também não implica em problema menor. Por lá, os programas de história são nacionais – produzidos pelo Estado (inspetores, professores universitários), sob consulta pública (professores, pais de alunos, sindicalistas, entre outros). Contudo, esses mesmos programas são de livre interpretação pelos autores/editores de livros didáticos e, o maior complicador, de livre interpretação e aplicação por parte dos professores, já que contam com uma centenária prerrogativa intitulada pela expressão “liberdade pedagógica”.

Acompanhe as demais postagens dessa série

4. "Base nacional comum" na África do Sul (1997-2014) - Itamar Freitas, 01/12/2014.
3. Base nacional comum: a experiência Francesa - Itamar Freitas, 01/12/2014.
1. Base nacional comum do currículo em debate - Itamar Freitas, 25/11/2014.


Referências
BRASIL, Ministério da Educação. Resolução n. 4, de 13 de julho de 2010, que define Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica. Brasília, Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Básica. Disponível em: file:///C:/Users/Itamar/Downloads/rceb004_10.pdf Consultado em 29 nov. 2014.
DEVELAY, Michel. Compreendre la vie – Quels contenus d’enseignement dispenser dans une école du socle? À nouvelle conception de l’école, nouvelles approches des savoirs? Les Cahiers Pédagogiques, [Paris], n. 415, p. 22-3, sept. / oct. 2014.
FRANCE, Ministère de l'educaton nationale, de l'enseignement supérieur et de la recherche. Décret du 11 juillet 2006 relatif au socle commun de connaissances et de compétences et modifiant le code de l’éducation. [Paris]: MEN, 2006a. Disponível em: http://www.education.gouv.fr/bo/2006/29/MENE0601554D.htm Consultado em 29 nov. 2014.
FRANCE, Ministère de l'educaton nationale, de l'enseignement supérieur et de la recherche. Le socle commun des connaissances et des compétences: tout ce qu’il est indispensable de maîtriser à la fin de la scolarité obligatoire. [Paris]: MEN, 2006b. Disponível em: http://media.education.gouv.fr/file/46/7/5467.pdf Consultado em 29 nov. 2014.
FREITAS, Itamar. O bom livro didático na França. In: Relatório de Pós-Doutorado, apresentado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília. Brasília: 27 nov. 2014. p. 118-131.

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