quarta-feira, 11 de março de 2015

Finalidades da disciplina escolar história no Brasil republicano (1900-2015)

Conclusões das aulas 1 e 2 do curso "Fundamentos do Ensino de História" (HIS-UnB)

Nos últimos 115 anos, à história escolar foram atribuídas as mais diversas finalidades. Os historiadores brasileiros pensaram-na como formadora do homem “culto”, sobretudo em suas dimensões sensíveis e cognitivas, explorando seus potenciais “literário” e “científico”, o homem exemplo moral da “raça”, o homem “livre”, o “patriota” brasileiro, o “latino-americano”, o “cidadão”, o “cidadão do mundo” e, por fim, o “protagonista”.
A fim de realizar esses ideais, o ensino de história foi chamado a capacitar os alunos para o conhecimento da história, das diferenças entre épocas e das mudanças institucionais, para a compreensão da ideia de continuidade histórica da humanidade e posterior abertura à mudança, para a compreensão do presente, do processo de formação do Brasil atual, do mundo, da historicidade dos homens e das instituições, das estruturas que explicam os acontecimentos.
O ensino de história também foi responsabilizado por capacitar os alunos a pensar historicamente e de modo disciplinado, a efetuar a crítica histórica, à reflexão e à leitura do mundo, ao uso crítico da informação, à construção de identidades, à participação política, à formação da consciência e do pensamento históricos, à tomada de decisões futuras, ao julgamento ético-político, à ação crítica relativa aos problemas nacionais e internacionais e por relacionar passado/presente, perceber contradições e soluções. Por fim, a história escolar também foi convidada a contribuir com o desenvolvimento de atitudes de tolerância e a enfrentar os dilemas humanos do final do milênio.
A diversidade desse inventário esconde (ou revela) a marca de filósofos e cientistas de vários matizes, ainda que os historiadores do século XX tenham se esforçado bastante para expulsá-los de grande parte dos seus programas. Gente famosa, como “ilustrados” Kant e Condorcet, os evolucionistas/positivistas/historicistas/pragmatistas, como Marx, Darwin, Spencer, Durkheim, Dewey e também gente desconhecida em nosso país, como Hannequin, Haeckel, Villoro.
A pluralidade também revela as apropriações em termos de epistemologia histórica, nos últimos 100 anos no Brasil: os historiadores da Escola Metódica francesa e norte-americana (Langlois e Seignobos, Johnson), os críticos dos Annales (Ferro, Charbonell), os marxistas (Schaft e Novais), pensadores da educação (Freire), os líderes de tendências na própria escola dos Annales (Febvre, Braudel, Duby) e da nova história social alemã (Rüsen).
A pluralidade de posições, contudo, revela um problema de complexa solução: qual dessas categorias responde melhor às nossas necessidades? O que temos considerado como “nossas” entre as diferentes necessidades sugeridas por esses autores?
Esperamos que a leitura desta primeira aula possa estimulá-lo a pensar que a opção por uma ou outra finalidade para a história ultrapassa a determinação da última teoria da história em vigor nos cursos de formação e excede à pobreza cognitiva expressa nas dicotomias tradicional/moderno, conservador/revolucionário, positivista/analista, pedagogo/historiador etc. Ela foi e será, supomos, sempre relativa aos nossos interesses e posições na sociedade.
Imagine-se como pai de aluno: que funções deveriam cumprir a disciplina, viabilizar a construção da identidade nacional e fornecer competência literária e científica o suficiente para a aprovação do seu filho no ENEM?
Imagine-se professor de história dos anos finais da escolarização básica: será que a identidade nacional e o sucesso no ENEM lhe bastariam? Claro que não. Certamente, você optaria pela apresentação de alguns eventos e personagens-chave relativos aos últimos 20 séculos da humanidade e a expansão das capacidades críticas do seu aluno, pensando-o, no futuro, como cidadão do mundo.
Imagine-se agora como professor de um curso de licenciatura em história. Você concordaria com os fins desejados pelo mestre do ensino fundamental? Outra vez, não! Possivelmente, diminuiria a ênfase concedida aos acontecimentos e detalharia as funções críticas – capacitar os alunos a compreenderem o passado, mediante noções sofisticadas, como imaginação, evidência e historicidade e representação, quem sabe até, sintetizaria essa e outras finalidades no conhecido “pensar historicamente” ou na provocativa frase "enfrentar o passado", como explicitado por Odimar Cardoso no vídeo que se segue.



Contudo, sendo você um gestor de escola, ficaria satisfeito com a ênfase nas capacidades meta-históricas ou no enfrentamento de passados bem presentes ao nosso redor, defendidas pelo professor universitário? Não pensaria também nas dificuldades de gerir um sistema tão plural em termos de finalidades e interesses? Não pensaria em conciliar vontades dos pais, dos alunos, dos professores e do Estado, de unificar programas e livros didáticos na finalidade genérica de formar para a cidadania?
Se fosse um deputado federal de esquerda, apoiado por instituições que lutam pela ampliação e defesa dos direitos das mulheres, lésbicas, transexuais, travestis, dos gays e dos bissexuais não proporia a transformação de um direito humano em valor, como a ideia de igualdade dos gêneros perante a lei?
Se atuasse como ministro de Estado da Educação, não pensaria em pôr em prática um ensino de história voltado ao cumprimento das demandas sociais e de organismos internacionais, referendadas pelo parlamento brasileiro, focando, por exemplo, a ideia de tolerância em relação aos diferentes grupos (como os imigrantes) e na informação sobre a contribuição da experiência indígena e negra para a vida nacional?
E se fosse Presidente de República? Não pensaria em acentuar conhecimentos, habilidades e valores homogêneos que possibilitassem a formação de pessoas capacitadas para gerir um projeto de nação, entre as dez mais economicamente poderosas –, em um mundo cada vez mais rápido e globalizado e, paradoxalmente, “localizado”?
Enfim, com esse inventário de posições e de interrogações, quisemos tão somente afirmar que o campo das finalidades foi e continuará a ser um ambiente de disputas e quanto mais democrática for a sociedade – e é por isso que lutamos há décadas –, mais distante estaremos de um suposto consenso. Os usos da história, na formação de pessoas, variam e devem variar, porque pessoas que formam pessoas têm vontades e são diferentes, e essas vontades e diferenças modificam-se ao longo do tempo – o mesmo valendo para as pessoas submetidas à formação. Nesse contexto, o desejável torna-se, então, o “certo”, o “academicamente correto” ou o “politicamente correto”, apenas, na arena política. Vence o melhor argumento, ou a mais forte pressão.
Contudo, independentemente dos nossos interesses e das posições que ocupamos em sociedade, será sempre importante retomar velhas questões a respeito das ideias de homem, sociedade, Estado, funções sociais da ciência da história e acompanhar os seus desdobramentos na pesquisa sobre a teoria da história, aprendizagem e o ensino de história. É o que faremos a seguir, enfatizando algumas das principais polêmicas experimentadas no tempo presente, no Brasil, sobre a ideia de aprendizagem histórica.
Antes de explorar o campo da aprendizagem, convido-os a conhecer e a tomar posição a respeito das finalidades prescritas para o ensino de história nos dispositivos nacionais em vigor.






Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. Finalidades da disciplina escolar história no Brasil republicano (1900-2015). Brasília, 11 mar. 2015. Disponível em: http://itamarfo.blogspot.com.br/2015/03/finalidades-da-disciplina-escolar.html.

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Referências

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