Bastante acertada a decisão da Funcaju de republicar Minha Gente: costumes de Sergipe, livro de Clodomir Silva. Não somente pela importância da obra desse intelectual da primeira República – pouco se tem a acrescentar às apresentações de Terezinha Oliva e de Luiz Antônio Barreto – mas também e, principalmente, pelo significado do livro na historiografia sobre Aracaju. Clodomir Silva foi um dos maiores – com licença da feiúra dessa expressão – aracajuanófilos de todos os tempos, e o texto lançado no 17 de março último dá mostras dessa intimidade com a barbosópolis.
Certo que a capital onde nascera já fora por ele cantada, por exemplo, num artigo fundador – “Aracaju” (Correio de Aracaju¸ 1922) –, onde aportaram José Calazans, Fernando Porto e Sebrão Sobrinho. No Minha gente, todavia – livre para enredar – Clodomir associa cenários, costumes e pessoas. Ele dá um jeito de interromper uma narrativa biográfica para descrever, em rápidas pinceladas, a feição da rua do Arame, a movimentação na saída das fábricas, o clima festeiro do Aracajuzinho, o trabalho feminino nas salinas e a paisagem aracajuana vista da cidade de Santo Amaro.
Entretanto, não somente de Aracaju trata-se a obra. O texto de Minha gente é uma coleção de formas de pensar, agir e sentir que o autor, provavelmente, enxergaria como espontâneas e representativas de todo o Sergipe. Isso porque a capital era, para Clodomir, uma “cidade polvo” cujos tentáculos se expandiam, atraindo “tabaréus” de todas as partes do Estado. Daí a importância destes como arquivo da sergipanidade. Hoje, se vivo, Clodomir expandiria suas vistas e visitas aos bairros Santa Maria, São Carlos e Lamarão, que abrigam grande contingente de migrantes de outros Estados.
Além de síntese topográfica, o livro traz um painel da diversidade folclórica local: religiosidade, lúdica, artes e técnicas, música, folguedos, literatura e linguagem popular estão presentes na obra. É uma possibilidade de exposição, apenas. Ele “planejara um volume dedicado ao folclore de Sergipe”, livro cujos manuscritos, em 1976, estavam nas mãos do bibliófilo Antonio Simões dos Reis. (Cf. Calazans, 1992, p. 64).
Minha gente: costumes de Sergipe é simples. É uma obra de reescrita, uma coletânea. Boa leitura faz quem acompanha cada peça de forma independente (mesmo o capítulo que dá nome à obra – “Minha gente” – é, talvez, o de menor expressividade). Em alguns trechos, lembra a viagem dos românticos do século XIX à caça do povo em vias de extinção. Lembra também o Antônio Cândido cercando os modos paulistano-caipiras, forjados no tempo da colônia e embalsamados na cidade de Bofete.
Não obstante tais lembranças, não obstante a sua busca às fontes “autênticas” aos arquivos do povo, é desprovido de grandes vôos interpretativos. Clodomir Silva “era um colecionador de tradições e costumes. Um coletor de peças, voltado para as suas fontes, que deviam brotar do meio do povo, sem manifestar preocupações com o que os outros haviam colhido. Não era de seu hábito fazer citações, enunciar comparações, enumerar versos.” (Calazans, 1992, p. 62).
Essa característica chama a atenção quando olhamos ao lado, no tempo de Clodomir, os intelectuais que trabalhavam com objetivo semelhante – buscar a alma do povo sergipano. Prado Sampaio, seu contemporâneo, fez exatamente o contrário: interpretou em profusão, às vezes, bem distante da pesquisa básica. Mas, curiosa é a convergência das conclusões (do pouco que se pode extrair de Clodomir). Tanto em Prado Sampaio – com seus poetas letrados – quanto em Clodomir Silva – com seus cantores vulgares – a poesia expressa as aptidões de um povo, e o sergipano é marcadamente trabalhador, civilizador e migrante.
Mas, isso é tema para os exegetas da sergipanidade. Aqui, basta registrar que, como obra sobre folclore, Minha gente se transformou num repositório do povismo dos tempos de Clodomir. Isso também o conduz à base referencial de comparação – ele que nada comparava – de certos modos de viver de uma parcela da sociedade local. Num sobrevôo de lembranças particulares, pude notar como determinadas atividades lúdicas atravessam o tempo, conservando idênticas funções. O jogo com castanhas, o pinta-lainha, o cabra-cega, eu os alcancei na rua México, no bairro Novo Paraíso até o início dos anos 1970. Seria interessante cruzar os trabalhos do Departamento de Psicologia desenvolvidos em torno das brincadeiras de criança na periferia de Aracaju nos anos 1990.
A narrativa é um primor. Não foi pouco engenho despendido para construir o texto de forma que o provérbio, a quadrinha, a máxima fossem transmitidos em sua forma mais próxima ao evento original. Observe-se alguns títulos – “No frigi dos ovo”, “Quem non dá p’a fubá”. Não são ilustrativos. Transmitem uma riqueza de sentidos que só mesmo a cultura oral é capaz de condensar. Observam-se o vocabulário simples, mas elegante, a frase curta e o ritmo ligeiro da narrativa.
Como registro sobre as gentes de Sergipe, enfim, Minha gente já vale pelo conhecimento que sugere sobre a vida de Zé Robalo, velho pescador de Santo Amaro, nascido “no tempo da guerra do Lopes”, cheio de histórias curiosas e que nunca havia conhecido o mar; a vida de Maria de Zé Piau, fugitiva da cheia 1909 que findou seus dias como operária da Fábrica Confiança, numa tragédia semelhante à vida de Os Corumbas; as lembranças do garoto Eleotério, para quem a escola pública era “uma sala escura, [de] bancos duros, ar confinado”, a “autoridade tirânica da professora, propensa sempre a castigar.” (Cf. p. 78).
Para citar este texto
FREITAS, Itamar . O povismo de Clodomir Silva. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B - 6B, 28 mar. 2004.
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