Na edição nº 68, (18-24 abr. 2004), demonstrei algumas estratégias de transposição da erudita História de Sergipe de Felisbelo Freire (1891) para o livro didático do mesmo nome, elaborado pelo professor Laudelino Freire (1898). É bom que sejam relevados os truncamentos da transposição e os poucos avanços detectados em termos pedagógicos. Na cidade bandeirante, a introdução da história local nas escolas primárias também não contou com texto exemplar, adequado às possibilidades cognitivas ou, como se dizia no final do século XIX, ajustado ao “interesse da infância”.
As narrativas didáticas destinadas ao “ensino da mocidade”, mocidade que poderia variar desde os 7 aos 16 anos, produzidas por José Joaquim Machado de Oliveira (Quadros históricos da província de São Paulo) e pelo republicano histórico Américo Brasiliense (Noções de história pátria) possuíam estrutura de frase e vocabulário eruditos. O texto deste último não passava da transcrição integral de conferências proferidas para um público nada infantil em Campinas, logo veiculadas na Gazeta local e, na seqüência, distribuídas nas escolas públicas em formato livro.
Desconheço as tentativas de emendar a obra dos paulistas. Mas, no caso de Laudelino Freire – futuro organizador da Revista Didática (1902/1906) – houve outra oportunidade de escrever um resumo da história de Sergipe para o curso primário, dessa vez, incerta num livro escolar de Corografia.
Corografia era a nomenclatura de uma disciplina cujos conteúdos versavam sobre o conhecimento do espaço de uma determinada região ou localidade. Quadro Corográfico de Sergipe (1898) foi o nome do livro de Laudelino, publicado um ano depois da Corografia do Estado de Sergipe do infortunado Silva Lisboa (Cf. A Semana, 7-13 set. 2003).
No Quadro, o “resumo” da História de Sergipe (1898) foi transformado em “resenha histórica”. Um novo texto foi produzido sob indiciário título de “Notícia histórica” contemplando todas as adaptações que o formato editorial requereria. Ficou 75% mais curto e aqui é interessante registrar o procedimento de Laudelino para compor essa nova síntese.
A periodização foi mantida – tempos colonial, imperial e republicano – e a natureza dos fatos também – conquista, invasões, guerras, posse dos governantes. O que fez com que a narrativa fosse reduzida tão drasticamente foram as omissões de grandes blocos. Ele excluiu os detalhes sobre a catequese, sobre as guerras – os efetivos, as estratégias de combate, o sofrimento dos fugitivos –, os fatos destacados na maioria das administrações, os fatos exorbitantes da história política – a presença da cólera no Estado –, excluiu seus comentários sobre a direção tomada pela história local – o fracasso da ação jesuítica – e o julgamento sobre algumas ações administrativas – a mudança da capital, o desapego dos sergipanos à causa emancipacionista defendida por Carlos Burlamaque.
O texto da História teve suprimido os títulos e subtítulos, capítulos foram fundidos e as listas de governantes e parlamentares migraram das notas de pé de página para um bloco no final da “resenha”. Algumas palavras estrategicamente postadas no curso do texto anterior – nem sempre importando em melhor solução. Laudelino condensou e mudou a ordem de parágrafos. Corrigiu, fez justiça com o historiador Barleus, não citado na História de Sergipe e também deve ter deslizado em alguma informação – no Quadro corográfico o número de cativos em 1590 é de apenas 1.000, enquanto que na História vem grafado 4.000 (erro tipográfico?).
Estava agora a história de Sergipe posicionada na Corografia de Sergipe, ou seja, na segunda parte do livro, intitulada “Descrição política de Sergipe”, após a “Descrição física de Sergipe” – limites, nosografia, orografia, hidrografia, limenegrafia, portos, barras, faróis e divisão civil, judicial e eclesiástica do Estado – e à frente das sinopses de todas as suas comarcas e municípios. Sob o ponto de vista da história a ser ensinada,, a disposição do Quadro é bem mais rica do que a gravada na História de Sergipe. No Quadro, em que pesem os objetivos da Corografia – os fatos geográficos – estão contempladas a história geral e a história local.
A transposição da História de Sergipe para o Quadro corográfico fez recrudescer o caráter narrativo da primeira obra. Com os cortes efetuados, a história transformou-se ainda mais numa seqüência linear de eventos postos em relação de causa e efeito – o antecedente determina o conseqüente –, eventos que, por sua vez, guardavam estreitas filiações com a história do nascente Estado republicano.
Contada dessa forma – conquista e colonização portuguesas, expulsão dos holandeses, redução à comarca da Bahia, emancipação política, transferência da capital, administração republicana – , pelo menos três elementos constituintes do mito fundador de Sergipe seriam renovados entre professores e escolares: a idéia de que estamos fadados à civilização dos costumes, por obra e graça do povo português; a presença da violência como traço marcante da história local, caráter traduzível até mesmo nas lutas partidárias do final do século XIX; e a eleição do nosso “outro”, do nosso diferente, do nosso algoz centrada na Bahia.
Também contada dessa forma, nos textos de Laudelino Freire, a história de Sergipe faria coincidir dois modos operadores do final do século XIX, o do ofício do historiador e o do ofício do professor de história. Para o primeiro, majoritariamente, escrever história era narrar, encadear ações destacadas na experiência política, de preferência, num texto dito a um só fôlego. Para o professor, segundo a pedagogia hegemônica, ensinar história seria uma tarefa mais produtiva se os fatos fossem dispostos em ordem cronológica – o antecedente explicando o conseqüente – de forma a que a memória fosse adequadamente alimentada e treinada, podendo assim conservar as principais informações que o aluno precisaria para situar-se no Estado e na vida.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Um resumo da história de Sergipe. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 02 maio 2004.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumario desta obra
< http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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