domingo, 7 de dezembro de 2003

"Delenda" ferrovia!

Estação Ferroviária de Aracaju-SE em 1923.
Querem expulsar a Ferrovia do Aribé. Corre um abaixo-assinado para acabar com os incômodos provocados pelos trens: riscos de morte, rachaduras nas residências, o barulho que tira o sono dos moradores das avenidas São Paulo e Maranhão. (Jornal da Cidade, 31/10/2003, p. B3). Mas, logo a Ferrovia que fez surgir o próprio bairro Siqueira Campos? Logo aquele bairro que antes dos trilhos era apenas uma região alagadiça, praticamente isolada do centro de Aracaju? Uma ingratidão? Não. São os cruzamentos da história.
Esse não é o primeiro golpe que recebe a Estrada de Ferro. Certa intolerância com o empreendimento vem do século XIX. Foi assim, desde a elaboração dos projetos até o primeiro movimento dos vagões em Sergipe.
A primeira iniciativa de implantação da ferrovia cobriria o itinerário Japaratuba-N. S. das Dores (1872). Depois vieram os projetos para interligar Aracaju, Laranjeiras e Simão Dias (1873); Pirambu e Estância; Aracaju, Maroim, Laranjeiras e Capela (1898); e, novamente, Aracaju, Simão Dias, Laranjeiras e Capela (1889). Nenhuma empresa foi adiante. Um só trilho não foi instalado entre as décadas de 1850 e 1900. Quando as primeiras locomotivas chegaram a Aracaju (1913/1915), os tempos áureos da produção do açúcar e do algodão já havia passado. E Sergipe perdia, mais uma vez, o bonde da história. (cf. Silva, 1924, p. 64; Mello, 1999, p. 195; Passos Subrinho, 1987, p. 45-46; Menezes, 2000, p. 11-14).
Por que Sergipe perdeu o trem da história e o que teria acontecido se ele tivesse embarcado nessa estação do progresso são questões que a maioria dos historiadores odeiam responder. Mas, em certos momentos, a imaginação e a curiosidade do leitor contam mais que as normas do ofício. Este é um desses momentos. Arrisquemos nas respostas.
Os trens não vieram a Sergipe porque a Bahia – sempre a Bahia! – era poder no parlamento e no ministério de D. Pedro II, além de forte entreposto comercial, como o Rio de Janeiro e Pernambuco. Sua política de desenvolvimento, comum aos demais entrepostos, fundava-se na submissão das províncias satélites – Minas Gerais, no caso do Rio de Janeiro, Alagoas, para Pernambuco, e Sergipe, para a Bahia. Essa dominação era exercida por meio da abertura de vias entre as regiões produtoras subalternas e o porto de Salvador. A estratégia também incluía a sabotagem de todas as iniciativas de melhoramento nos portos ou de incremento dos transportes fluvial e ferroviário que não a beneficiassem. (cf. Mello, 1999, p. 191-234).
Assim, no conflito entre a grande sede da economia agro-exportadora – a Bahia – e a província-satélite Sergipe – que desejava “provincianizar o seu comércio” e ligar suas áreas de produção aos centros consumidores da Europa, sem intermediários –, Golias venceu repetidas vezes. O projeto sergipano de interligar o interior ao litoral, construindo uma via entre o sertão de Simão Dias e a capital Aracaju, esbarrou, principalmente, no projeto da Estrada de Ferro Salvador-Joazeiro, “uma espécie de estrada messiânica, capaz de redimir economicamente a Bahia ao dar-lhe o controle do comércio sobre uma vasta região do interior brasileiro, dos sertões do Piauí ao norte mineiro e aos chapadões de Goiás...” (Mello, 1999, p. 210). Para Sergipe, a Bahia reservava uma extensão, um ramal ligando Timbó (Esplanada) a Aracaju.
Mas, e se a Estrada de Ferro sergipana  tivesse abandonado os relatórios técnicos do engenheiro Pimenta Bueno (1881) e fosse instalar-se nos sertões de Simão Dias, como queria a Assembléia provincial? Provavelmente a Bahia seria outra, bem mais curta, mais pobre e menos arrogante. Os trens sairiam de Aracaju, passando pelo bairro Santo Antônio. Atravessariam o rio do Sal em direção à cidade de N. S. do Socorro, cumprindo parte das funções da ponte do Porto Dantas e da Rodovia da Indústria, atualmente em construção. De Socorro, chegariam até Laranjeiras e Itabaiana. Transpondo os rios Vasa-barris e Caiçá, encerrariam as viagens na bela e próspera Simão Dias, de frente para Coité (Paripiranga), o portal do futuro.
Com esse traçado, estariam beneficiadas as regiões norte e oeste de Sergipe. Um ramal (Laranjeiras-Capela) melhoraria as comunicações do baixo São Francisco com o vale do Cotinguiba. Para o norte seguiriam açúcar, aguardente, melaço e sal. De lá viriam arroz, carne de sal, peixe seco e gado. O tronco Aracaju-Simão Dias recolheria o açúcar de Laranjeiras e de Socorro, o algodão de Itabaiana e de Simão Dias e, em breve, a cana, o café, algodão e cereais de Patrocínio do Coité e de municípios circunvizinhos.
Construída a Estrada de Ferro, no sentido leste-oeste, estabelecer-se-ia o domínio sobre as regiões de Coité, Bom Conselho (Cícero Dantas) e Paulo Afonso, e, ao mesmo tempo, estaria dificultado o fluxo da produção local em direção a Salvador. Dessa forma, os sergipanos legitimariam juridicamente a posse desse território e fariam do local a porta de entrada da província. Uma terceira via que renegava as alternativas litorâneas da Bahia e de Pernambuco.
Acontece que Sergipe perdeu essa peleja, e o ramal financiado no início dos 1910 foi a extensão Timbó-Aracaju, paralela ao litoral, do jeitinho que a geopolítica baiana havia projetado. Assim, os vínculos dos moradores da região usurpada pela Bahia continuaram sendo apenas de sangue e de memória, nada mais (cf. Santana, 1979, p. 58-59).
Hoje, a velha estrada não transporta açúcar, aguardente, carne do sol e nem passageiros. Gasolina e fertilizantes acomodam-se nos tanques e vagões barulhentos, tirando a paz dos seus vizinhos, que não possuem carros  ou plantações. Nem de limite entre os pobres e ricos de Aracaju a ferrovia serve mais.
É provável que, depois de renhida luta política, o espaço deixado pelos dormentes seja transformado em um calçadão e a velha estação do Aribé num shoping-center.
Não cabem lágrimas. São as encruzilhadas da história, agindo mais uma vez contra os velhos caminhos de ferro em Sergipe.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Delenda ferrovia. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 07 dez. 2003.

Fonte da imagem
A Estação de Aracaju, em foto publicada na Revista Illustração Brasileira de 2/6/1923. Fonte: <http://www.estacoesferroviarias.com.br/ba_propria/aracaju.htm>. Acesso em: 01 dez. 2010.

Nenhum comentário:

Postar um comentário