Escrevi na edição de 04/01/2004 que as iniciativas, de certo modo didáticas, em termos de história universal dos professores Justiniano de Melo e Silva, Alfredo Cabral e Maria Thétis Nunes mereciam atenção, sobretudo, por se postarem na contra-mão do discurso provincianizador em voga nas historiografias sergipana e nacional. Raros foram os escritos de historiadores locais que se aventuraram a interpretar a experiência de povos não brasileiros.
Como Alfredo Cabral, Thétis Nunes também experimentou a proeza. A exemplo de 1910, a iniciativa de historiar outras partes do mundo esteve relacionada à emergência de um concurso para a cadeira de História no Atheneu, concurso revelador da disputa entre grupos político-partidários e da busca por capital cultural social. (Cf. Nascimento, 2003).
Mas, o que me interessa no momento é a tese apresentada à Congregação do Atheneu (2 ed. Aracaju: J. Andrade, 2002), trabalho que, segundo Norberto de Oliveira (1997, p. 37) – desculpando-se, talvez, pelas limitações de Thétis –, “não traduz as características essenciais da historiadora que viria a ser pós-ISEB.” Vejamos, então, algumas das “características essenciais” da jovem Thétis e o tipo de trabalho abonado com nota nove pela banca do Atheneu, em 1945.
A pergunta principal da tese é: qual a “influência” da “civilização árabe” na “civilização ocidental”? A resposta está distribuída pelos capítulos 3, 4, 5 e 6: a civilização árabe não só foi o elo entre o mundo antigo (passado conhecido) e a Idade Moderna (futuro), como propiciou a retomada, após as “invasões dos bárbaros”, do curso progressivo da civilização ocidental.
Esse papel mediador e também precursor pode ser observado nas “sobrevivências” de elementos da literatura, música, arquitetura, pintura, escultura, mobiliária e cerâmica; da filosofia, das ciências – matemáticas, física, química, botânica, agronomia, astronomia, farmacologia e medicina – e das universidades árabes na civilização européia.
Não se espantem com o ensaio antropológico (folclórico) em escala ampliada. As demais informações sobre os árabes já seriam de domínio público – leitor de história universal. Nos livros da época, os árabes eram um povo liderado e unificado pela obra religiosa de Mohamed (571/632). E o maior triunfo deste povo – motivo para a sua inserção nos compêndios – foi “evoluir”, rapidamente, de um grupo disperso de tribos da Arábia aos senhores mais poderosos do medievo, após terem conquistado a Síria (638), Pérsia (652), África (711) e Espanha (122).
O substrato interpretativo do trabalho, colhido na sociologia e na “moderna antropologia” – as leis sócio-históricas, a causalidade do meio, raça, estágio tecnológico, circunstâncias políticas e atributos culturais – conforma os dois capítulos iniciais. São eles que auxiliam ao leitor de hoje – assim como à banca examinadora à época – a não considerar a tese um inventário de sobrevivências culturais.
Por outro lado, são esses mesmos capítulos que revelam as dubiedades e imprecisões da jovem Thétis. A tentativa de equilibrar o valor dos grandes homens e o papel do conjunto formado pelo meio físico e as circunstâncias é um exemplo – liberdade ou necessidade? A candidata bem que se esforçou para descrever as condições que possibilitaram a ascensão dos árabes. Mas, no frigir dos ovos, foi Mohamed quem “ergueu o edifício de proporções colossais.” (Cf. p. 19).
Outro exemplo está na filosofia professada. Ela crê num contínuo e necessário aperfeiçoamento da humanidade, e não pediu arrimo a Werneck Sodré para afirmar que “todo grupo social tem que passar pelas mesmas etapas econômicas e sociais para alcançar a plenitude de uma manifestação cultural determinada.” (p. 17). Mas, ao mesmo tempo, não consegue desvencilhar-se da sedutora idéia dos ciclos vitais das civilizações: nascimento, apogeu e decadência.
Thétis também titubeia no uso do termo civilização. Lá está o sentido de conjunto de traços definidores de um povo - civilização árabe, romana, latina etc., dando ao texto um tom relativista. Mas, a idéia de humanidade – o coletivo dos homens – e de estágio máximo de aperfeiçoamento atingido por “impulsos” e “graus” também estão presentes. Este último significado anuncia o padrão a ser considerado: a civilização ocidental moderna – presença de Estado, economia aberta, mobilidade social, alto desenvolvimento das letras ciências e artes. Thétis estava com os pés fincados no universalismo ilustrado do século XVIII.
Aqui, não vem ao caso atribuir tais indecisões a sua juventude intelectual, à ausência de interlocutores ou à pressa em concluir a tese. Não vale rotulá-la de colonizada ou imperialista. Pode-se, por hora, dizer que, em termos de história da civilização, Thétis estava menos próxima do viés de Manoel Bonfim – a história geral como uma equivocada “afirmação” e “consagração” dos povos ingleses e, sobretudo, franceses – e mais para a corrente majoritária de João Ribeiro – a civilização européia como “um caudal” de contribuições para a perfeição humana.
Pode-se também conjeturar que A Civilização árabe: sua influência na civilização ocidental constitua-se um típico caso de tese-compêndio, produto elaborado de maneira semelhante aos livros didáticos de história universal, até o início dos anos 1940. Mas, para testar a hipótese será preciso examinar o texto do concorrente de Thétis, o professor Manuel Ribeiro – que também foi avaliado com nota nove – e dos demais professores de história que lhes seguiram no Atheneu Sergipense.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A civilização de Thetis Nunes. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 21 mar. 2004.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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