domingo, 18 de abril de 2004

A memória do futuro

O vocábulo “memória”, em língua portuguesa, atravessou o século XIX portando quatro básicos significados: faculdade da alma – potência de conservar informações; monumento – que conserva e evoca a lembrança; a própria lembrança – o lembrado, de que se recorda; e um “modo literário” – a narrativa. No mesmo “século da História”, esse modo literário configurou-se num “gênero” literário stricto sensu, numa dissertação científica ou num relato administrativo. A memória sobre a capitania de Sergipe, sua fundação, população, produção e melhoramentos de que é capaz (1808) – o título é assim mesmo, bem rabelaisiano – encaixa-se perfeitamente nesta última classificação.
O texto do padre Marcos Antônio de Souza (1771/1842) é uma narrativa de cunho administrativo endereçada ao ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, D. Rodrigo de Souza Coutinho, poderoso auxiliar de D. João VI na direção geral da política portuguesa até 1812. Nesse período, flagrante das contradições entre o liberalismo político e o liberalismo econômico, Coutinho concentrava em seus “arquivos” uma farta descrição de terras, gentes e possibilidades de negócios que pudessem beneficiar o Estado e a Coroa desde os anos 1790. Eram trabalhos descritivos, com dados políticos, eclesiásticos, econômicos, etnográficos, geográficos que cobriam grandes áreas desta América Portuguesa.
A Memória sobre a Capitania carrega as marcas desse tempo e desse modo de escrita. Estrutura-se sobre um certo questionário, informando a situação dos templos e conventos, o número de habitantes, os grupos étnicos, os tipos de solo, o estado das vias de comunicação, as produções agrícola e industrial, a força de trabalho, a relação senhor-escravo e, de forma menos freqüente, o estado de letramento dos moradores desta terra. A primeira atitude é, portanto, diagnosticar o estado da população e da produção local, como indica o próprio título.
O resultado deste trabalho é o que chama imediatamente a atenção dos leitores. Na Memória estão os registros, por exemplo, dos modos de se fabricar a farinha, de produzir o açúcar, de plantar a cana e de extrair o sal. Ela conserva em papel e tinta alguns traços do convívio social nas vilas de Sergipe na virada do século XVIII para o século XIX e elege atributos para os moradores locais, já reconhecidos por essa autoridade realenga como “sergipenses”.
Certamente, essa identidade é ainda bastante mitigada. A capitania de Sergipe era uma invenção político-administrativa preenchida por sete vilas, quatro missões de índios, onze freguesias e uma cidade – São Cristóvão ou Cidade de Serzipe. Os atributos anunciados, por sua vez, variaram – muitos coincidiram – de vila para vila, ao sabor da composição étnica, da prodigalidade da natureza ou da maior e menor presença da burocracia na povoação. Os sergipenses eram ativos, afáveis, espirituosos, inclinados à vida conjugal, ao trabalho e, também, violentos, indolentes e incivilizados.
Mas a Memória não pára no diagnóstico. Indicar “os melhoramentos de que é capaz” é a sua grande finalidade. Chama a atenção a freqüência das construções no pretérito imperfeito e no futuro do pretérito. O rosário de sugestões não é pequeno: os sergipenses “podiam” fabricar queijos e manteigas, cultivar trigo, canela, pimenta da Índia, café e cacau. Os Conselhos Municipais “podiam” financiar a educação dos habitantes e até a formação de médicos para agirem na localidade. O Estado deveria modificar a perversa forma de arrecadação, transformar capelas em paróquias, transferir sedes da administração da justiça e da igreja, banir os facínoras, estimular o uso racional do solo, das florestas, promover plantios irrigados, “pastos artificiais”, abrir canais e melhorar barras.
Esse conjunto de medidas tinha um fito e uma âncora. O objetivo era progresso da pátria (Sergipe?), da nação [portuguesa], da sociedade, do Estado e da Coroa portuguesa. Planejava-se ampliar a riqueza, que melhoraria, inclusive, a vida dos pobres desta Capitania. A base orientadora dessa política econômica foi buscada em A. Smith e J. B. Say, fartamente citados como arrimo das sugestões. A experiência das nações civilizadas, notadamente a Inglaterra, transformou-se no grande exemplo a ser seguido.
Nas entrelinhas da Memória está o diálogo com os “corifeus do liberalismo” e com os burocratas que supostamente se afinam com a doutrina. Verifica-se um sistemático exercício de observação da economia local sob “os óculos” desses autores. Em certo momento – quando anuncia o bom tratamento concedido aos escravos pelos senhores de Sergipe –, cheguei a questionar se o Marco Antônio de Souza não enxergou mais do que poderia ter visto, ou seja, não transpôs para o papel como descrição do real o que assimilara entusiasticamente das leituras de Smith. Essa é uma questão a ser resolvida futuramente.
Importa concluir que o movimento do diagnóstico para as sugestões de melhoramento da produção operado na escrita da Memória não basta para considerá-la como elemento fundador da escrita da história sobre Sergipe, em Sergipe. A volta ao passado é um instrumento escasso nesse texto. A projeção do futuro da Capitania de Sergipe – via Estado português – é construída sem substantiva elaboração/reelaboração do passado local. Penso que o Marco Antônio de Souza faz mais política que história – história já cultivada entre os seus pares na Bahia, o que não anula o seu grande valor do texto como fonte para a história de Sergipe.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A memória do futuro. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 18 abr. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

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