Há quase cinqüenta anos, “A cidade do Aracaju” era tomada por Fernando Porto como um artefato mediado pelo relevo do lugar, pelo projeto de Sebastião Basílio Pirro e pelas obras iniciais de urbanização. O interesse geo-histórico do engenheiro-escritor ligava-se ao reconhecimento de que a cidade necessitava de um “plano regulador” do seu crescimento, serviço para o qual o saber de Clio teria muito a contribuir. Hoje, às vésperas do 150o aniversário, Aracaju possui um Plano Diretor, o engenheiro da Prefeitura já está aposentado e a historiografia sobre a cidade vai se reproduzindo em escala progressiva, o que me força a questionar: que interesses teriam movido Fernando Porto nesse novo livro, lançado em 2003?
O título diz muito: “Alguns nomes antigos do Aracaju” (Funcaju, 2003). A preocupação anunciada é com a memória, ou melhor, com o apagamento da memória. Por que o aracajuano esquece tão rapidamente os nomes dos lugares e logradouros de sua cidade? Fernando Porto responde: por causa da ação desrespeitosa do Estado (trocando nomes de apelo popular por homenagens circunstanciais a personalidades de valor discutível) e por conta da mobilidade populacional (as pessoas mudam-se dos bairros e os nomes deixam de ser pronunciados).
Efetivamente, é isso que ele faz. As duzentas e cinco páginas do livro condensam informações valiosas sobre o sentido etimológico, a origem e as modificações dos nomes de ruas, becos, travessas, avenidas, praças, bairros e recantos de Aracaju. Há também descrições de edifícios e histórias que envolvem os moradores desses lugares, num período que abrange desde o 1855 até a década de 1990.
Mas, eu arriscaria dizer que essa obra oferece muito mais que um inventário de nomes e seus significados. Fernando Porto não quis fazer dicionário, pois resultaria em livro “árido, monótono, de restrita curiosidade” (p. 11). – Também não quis escrever suas memórias nem contar, monograficamente, a história da arquitetura em Aracaju, nem a crítica dos costumes contemporâneos, nem a história de tipos populares ou da subserviência da política local. Preferiu “compilar” o “grande número de anotações” autógrafas sobre os locais averbetados “a fim de tornar o relato mais atraente” (p. 11). – Preferiu enredar os retalhos de uma vida de estudante em Aracaju, de engenheiro da PMA, de professor de geografia, de leitor de história da arte, etc.. O resultado foi um texto, melhor dizendo, um hiper-texto onde os títulos dos verbetes são desprezíveis diante da variedade de temas e conexões oferecidas para a leitura.
No livro só faltam os sons. Fotografias, são mais de quarenta, flagrando, por exemplo, o ambiente da travessa Deusdédite Fontes nos anos 1920 (p. 15), o prédio da Câmara de Vereadores, no final do século XIX (p. 28), o Alto de Areia e o morro do Bomfim, em 1923 e a “feira da colônia”, situada em frente à Casa Fonseca, há quase cem anos.
É pensando dessa forma que se pode compreender o desequilíbrio de tamanhos, ritmos e tempos entre os verbetes. Onde abundaram as fontes e as notas, rendeu a escritura. “Rua do Angelim” (p. 19-56) dá mostras desse formato hiper-textual. Inicia-se com dados sobre a abertura da via, o significado do nome e o primeiro empreendedor – Adolfo Rollemberg. Seguem-se a chegada do engenheiro/arquiteto Altenesch em Aracaju e as mudanças introduzidas na paisagem arquitetônica da cidade pelos artistas italianos e alemães. O leitor até esquece de que se está a tratar da “rua do Angelim”.
Nos demais verbetes, “as anotações” empregadas para tornar o relato “mais atraente” vão abrindo frentes de leitura sobre a história da cidade: é o trabalho dos empreendedores – barão de Maruim, Juca Barreto, Mariano Salmeron –, o velho hábito de tomar caldo-de-cana, a introdução de novas práticas de consumo – a macarronada, lâminas de barbear Gillette, o futebol –, o ethos do sergipano – inatamente desorganizado –, o traço dominante da burocracia local – impotente par “cortar os erros em seu nascedouro”.
É assim o hiper-texto de Fernando Porto. Entra-se por uma porta e dá-se de frente com várias outras. A experiência da cidade vai se derramando por entre vários lugares referenciados, saltando as décadas e personagens. A história de Aracaju é sorvida em goles de anúncios de jornal, de requerimentos para a construção de casas, de reminiscências, de diálogos com outros historiadores.
Há, porém, um inconveniente nesse modo de produção. Como os verbetes resultam de síntese, a proveniência das fontes é omitida e o noviço não tem muitos instrumentos para diferenciar o que é tributário à memória de Fernando Porto ou às suas notas bibliográficas e arquivísticas. Sem crítica textual futura, é possível que “alguns nomes antigos do Aracaju” sejam sacralizados por conta da palavra autorizada desse grande aracajuanófilo que é Fernando Porto. E o mais curioso: é bem provável que o seu depoimento, paradoxalmente, acabe soterrando outros “nomes antigos do Aracaju”.
Para encerrar, uma informação que considero muito importante sobre a identidade da capital. No livro de 1945, Fernando Porto apenas supunha a localização do rio Aracaju. Em 2003, ele foi afirmativo: “O rio Aracaju, que deu nome à região, desembocava no rio Sergipe, ao lado da fábrica Sergipe Industrial, daí dirigia o seu curso, inicialmente, para o poente e a certa altura infletia para o noroeste, em direção ao vale do Engenho Velho, nas proximidades do Manoel Preto.” (p. 61). Ainda insisto que o referido rio merece uma placa indicativa nesses próximos meses em que a cidade completará o seu 150o aniversário.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O hiper texto de Fernando Porto. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 11 abr. 2004.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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