domingo, 16 de maio de 2004

Do outro lado da Germânia

Já tratei noutra Semana sobre a germanofilia de João Ribeiro. Comentei acerca dos seus pendores historicistas, a declarada opção pela história dos costumes, dos valores artísticos e religiosos de um povo e transcrevi os argumentos de Joaquim Ribeiro (1957) e de Patrícia Hansen (2000) que demonstraram a filiação do laranjeirense à História da Cultura. (cf. A Semana, 25-31 jan. 2004).
Ocorre que a Alemanha não era só o historicismo. Não contemplava apenas o estudo da alma ou do gênio nacional ao modo de Gustav Freytag (1816/1895), nem a defesa de um estatuto de cientificidade para a História – ciência do espírito – distante do modelo das ciências naturais, como empreendeu Wilhelm Dilthey (1833/1911). Do outro lado da Germânia, havia um professor de Zoologia, advogando por uma teoria do conhecimento que contemplava, tanto as coisas da natureza, quanto as produções espirituais.
Ernest Haeckel (1834/1919), o mentor desse “monismo”, acreditava que “todo” universo é acessível aos nossos meios de investigação: todos os fenômenos físicos ou morais eram regidos por leis fixas e imutáveis. (cf. Cardoso, 1894). E foi também das teses desse alemão que o nosso João Ribeiro extraiu alguns argumentos para demonstrar a sua versão da História como ciência.
Por que esse interesse em defender um lugar de destaque para a História no quadro dos conhecimentos humanos? É provável que João Ribeiro estivesse esboçando uma resposta ao positivismo filosófico (de August Comte) que afirmava ser a História uma simples serva da Sociologia. Esta sim, a verdadeira ciência das causas, das generalizações.
Vigorando ou não a hipótese, vejam como o lente do Pedro II inseriu um ensaio de teoria da História num livro didático de História Antiga, afirmando que os subsídios fornecidos aos historiadores pela economia política, estatística e biologia possibilitavam a interpretação científica dos fatos históricos. Podia-se, então, falar numa ciência da História (autônoma) em 1894. Vejamos apenas uma contribuição – a biologia haeckeliana – para evidenciar essa “a possibilidade”.
Ernest Haeckel partilhava da corrente dos princípios divulgados por Charles Darwin (1809/1882) e creditava à evolução e à seleção natural o desenvolvimento de todos os órgãos existentes – uma célula, um grão de milho, uma sociedade. A continuidade  desse progresso era explicada por uma lei chamada biogenética, cujo enunciado pode assim ser resumido: a vida de cada indivíduo é uma recapitulação progressiva, indefinida e abreviada da sua própria espécie, ou seja, “cada geração que surge traz já em si a elaboração de todas as gerações passadas: a longa história da espécie acha-se já condensada no indivíduo atual.” (Ribeiro, 1894).
Estava elaborada, portanto, uma explicação que favoreceria a interpretação dos fatos históricos, bastando apenas que as nações, as civilizações e os povos fossem vistos pelos intérpretes – os historiadores – como “organismos” sociais. E era assim que pensava boa parte dos intelectuais atingidos pelas “novas idéias” professadas por Tobias Barreto e Silvio Romero a partir dos anos 1870. Assim João Ribeiro demonstrou a aplicabilidade da lei biogenética: é “fácil ver-se que nos organismos sociais se verificam fenômenos idênticos; as civilizações coloniais oferecem o mais frisante exemplo. As camadas humanas que pela emigração se estabelecem em qualquer habitat, constituem organismos novos que reproduzem, em rápido período, todo o progresso longa e secularmente realizado pelas respectivas metrópoles. Dá-se aí a recapitulação sumária da vida ontogênica.”
Dessa forma se explica, continua João Ribeiro, “a civilização da América feita em três séculos, representando uma equivalência ao trabalho cem vezes secular que pesou sobre as civilizações européias, antes que elas atingissem o grau de desenvolvimento atual. Se a América ainda não nos apresenta uma equivalência exata da vida social européia, deve-se isto atribuir à interferência de outras causas menos poderosas, porém assaz eficientes: a diversidade do meio que exige longo trabalho de adaptação para a raça colonizadora, a presença de elementos étnicos inferiores que perturbam o progresso no sentido da retroação, a falta de tempo e de população para elaborar-se a produção e a distribuição das riquezas, facilitando assim a ação reguladora completa que todo o organismo elevado exige no seu desenvolvimento.”
Depreende-se desse exemplo que a teoria esboçada por João Ribeiro é plena de Filosofia da História, ainda que não centrada nos estágios teológico, metafísico e positivo. Ela fundamenta cientificamente os porquês do atraso da América frente à cultura da Europa. Ela justifica sem ressentimento as reduzidas possibilidades de o povo latino-americano vir a contribuir com o “caudal” da história humana – e, conseqüentemente, de entrar para a historiografia em termos de arte, ciência e política. Isso tudo, graças a Darwin.
O curioso é que o veleiro “H. M. S. Beagle” passou ao largo da região cotinguibeira, enquanto esteve no Brasil (1832). O naturalista inglês também não teria muito a dizer ainda sobre a evolução de plantas, pedras e bichos – sobre a historicidade da natureza. Entretanto, por um desses imprevisíveis cruzamentos da história, Sergipe transformou-se num dos maiores celeiros de darwinistas, spencerianos e haeckelianos. E o mais instigante: eram darwinistas que buscavam um estatuto científico para a história. Pena que esses autores, ainda pouco conhecidos, sejam muitas vezes confundidos como historiadores positivistas – no sentido comtiano.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A Semana em Foco, Aracaju, 16 mai. 2004.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumario desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

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