domingo, 30 de maio de 2004

Historiografia de almanaque



O que é o tempo? O tempo é para o homem “uma planície, sem forma, sem caminho, sem fim, sem luz, onde ele transita guiado pelo almanaque, que segura pela mão, o vai puxando e a cada passo murmurando: aqui estás em setembro!.. Além, finda a semana!... Em breve alcanças o 28... Hoje é sábado!! Se o almanaque de repente, por facécia ou perfídia lhe soltasse a mão, o abandonasse, o homem vaguearia, irremissivelmente confuso e perdido, dentro da vacuidade e do não ser do tempo. Sumida a noção do ano, do mês, do dia ele não poderia cumprir, com ordem proveitosa, os atos da sua vida urbana, rural, religiosa, política e social (Queiroz, apud. Freire, 1990).
Com esse feliz comentário, Eça de Queiroz antecipa definições de dois importantes objetos de pesquisa do final do século XX: o tempo e o impresso almanaque. O primeiro é categoria fundamental para o historiador. Traduzido, configurado e controlado inicialmente por expressões com século, ano, dia, como progresso e revolução e, contemporaneamente, como continuidade e mudança, o tempo vem sendo tema de reflexão entre os historiadores que buscam identificar os traços diacríticos do saber histórico em sua versão científica. Dentro dessa perspectiva, o tempo seria então um traço relevante; uma abstração, uma construção virtual (embora indispensável para a existência humana), como a noção de identidade elaborada por Levis-Straus (1977). Já o almanaque, definido por Eça, teria origem no calendário. Ele é o instrumento responsável pela materialização da virtualidade tempo assim como da noção de espaço (Park, p. 35, 1999).
O almanaque dos últimos dois séculos tem sido um tipo de impresso intermediário entre a folhinha e a enciclopédia. A folhinha – de santo, de foto de criança de mulheres nuas etc. – registra as fases da lua, os dias fastos e nefastos e é indispensável nos lares mais humildes, até mesmo nas secretarias de suntuosas empresas. A enciclopédia sobre tudo informa e ensina: a massa de uma palha de coqueiro, a altura do Everest, e a biografia de Adolf Hiler. Portanto, o almanaque, em sua versão genérica, comercial, agrícola ou de remédio pode mesmo ser considerado uma espécie de enciclopédia popular. Ele serve para controlar o tempo social e como meio de instrução, principalmente quando divulga lições de português, literatura e história. Isso é o que se pode encontrar, por exemplo, no Almanaque Sergipano, publicado na virada do século XIX para o século XX em Aracaju.
O almanaque em questão circulou entre 1892 e 1914. Dele ainda existem vários exemplares na Seção Sergipana da Biblioteca Pública Epifânio Dória (relativos aos anos 1892, 1897, 1898, 1899, 1901, 1902, 1904 e 1914) e no Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (anos 1899, 1900 e 1902).
O Almanaque sergipano compunha-se por duas sessões que tratavam, respectivamente, de assuntos comuns à maioria dos impressos congêneres nesse período. Na parte relativa ao “calendário”, concentravam-se as indicações sobre os santos do dia, os feriados “nacionais” e religiosos, os dias propícios aos tratos em determinadas culturas, os dias nefastos para matrimônios, negócios e viagens.
Ainda na primeira parte apresentavam-se as “informações úteis”: listagens de autoridades do executivo, legislativo e judiciário; listagem de cidades, vilas, povoados e arraiais de Sergipe; nomes e endereços de instituições civis, de estabelecimentos comerciais e prestadores de serviço, além de uma exposição didática da divisão administrativa e judiciária do Brasil.
A parte “recreativa” ou “literária” publicava acrósticos, charadas, enigmas, logogrifos, receitas culinárias, máximas, lendas, crônicas, contos, poemas, generalidades sobre o conhecimento científico – as propriedades medicinais da manga, os malefícios do uso da bicicleta, a invenção do aerostato etc. – impressões de viagem, descrições de costumes, a exemplo da “serração da velha”, do “casamento no campo”, e textos de crítica literária.
Com essa configuração, o primeiro veículo que utilizou o título Almanaque Sergipano foi dirigido pelo historiador Francisco Antônio Carvalho de Lima Júnior, em 1892, homem de larga experiência nas lides jornalísticas. No tempo de Lima Júnior, o Almanaque intitulava-se “literário”. Talvez por isso não tenha obtido o êxito esperado pelo empreendedor. Parou de circular no primeiro número. Sobre o insucesso dessa espécie de arauto e, ao mesmo tempo, crítico do republicanismo, Laudelino Freire chegou a concluir, exageradamente, que a sociedade sergipana, por ser anêmica, apática e desanimada, não poderia compreender a importância da iniciativa do seu organizador (Freire, p. 299, 1900).
Em 1897, porém, o Almanaque Sergipano volta a circular. O seu gerente dá nova feição ao periódico. Passa a intitular-se “Comercial e literário”. Pode ter sido o apelo que faltava. Sob a direção de um outro historiador, Manuel dos Passos de Oliveira Teles, e dos “artistas” Jonas de Araújo Pinto e João Pinto de Mendonça, o periódico sofreria mais um golpe em 1902 com a morte do seu proprietário, o filantropo capelense, da Loja Maçônica Continguiba, da Confraria de São Benedito, o animador do Club Cordovínico, Guilherme Vieira Filho (1861/1901).
Esse bem sucedido comerciante também foi o inovador no ramo gráfico. Fundou o primeiro estabelecimento “moderno” em Sergipe, a Tipografia e Papelaria Comercial (Dória, p. 160, 1961). Com a sua morte, tanto o Almanaque e a empresa gráfica passaram às mãos do historiador Elias Montalvão, que ali imprimiria um dos primeiros livros didáticos de História local, o Meu Sergipe (1914).
O Almanaque Sergipano era obra coletiva, independentemente de quem o tenha redigido. Elaborado a partir da contribuição de dezenas de colaboradores de Sergipe e de outros estados, os responsáveis pela edição chegavam a promover concurso de melhor charada, divulgando os mais votados e publicando as cartas dos próprios leitores. A continuidade da relação editor-leitor era garantida com a publicação das respostas aos enigmas e charadas no final do exemplar seguinte. As cartas e as resenhas sobre o periódico também ganhavam espaços no corpo textual.
Dentre as inúmeras contribuições enviadas ao Almanaque, muitas tratavam de História. A freqüência maior foi de colaboradores sergipanos, já bem conhecidos no meio local. O historiador Laudelino Freire, por exemplo, remeteu três trabalhos. No primeiro, denunciou o “erro histórico” que era comemorar o 24 de outubro como a data da emancipação e independência de Sergipe, em detrimento do 8 de julho de 1820, data em que D. João V elevou Sergipe à capitania independente. Na segunda contribuição, Laudelino dissertou sobre as origens do povo sergipano. Não acrescentou muito ao capítulo I do livro didático lançado em 1898 – História de Sergipe – quando afirmava que os sergipanos, como os demais brasileiros, resultaram da mestiçagem entre as “raças” branca, vermelha e preta, representadas pelos povos: português, índio e africano, aos quais correspondem os “tipos” branco, caboclo e negro. A principal contribuição de Laudelino, porém, não se encarrega efetivamente da história de Sergipe. Trata-se de um esboço sobre a história do periódico almanaque desde a experiência dos caldeus, assírios, passando pelas influências cristãs e cientificistas. Mesmo assim, Laudelino não deixa de tecer considerações sobre a vida cultural do estado na passagem do século XIX para o século XX.
Manoel Curvelo de Mendonça (1870/1914) publicou “No tempo da revolta: cena impressionista do momento” (1901), narrando o sofrimento de uma mulher e seus três filhos durante o bombardeio da esquadra revoltada na bahia do Rio de Janeiro. Sobre Sergipe, publicou “Uma fase histórica de Laranjeiras” (1899). Nesse artigo, ressaltou a “riqueza material e social” de Laranjeiras onde “ecoou”, em 1887, a última fase da campanha republicana em Sergipe. Tanto a revolta da Armada quanto o republicanismo em Laranjeiras são excertos de duas obras deste autor: Contos e divagações e Sergipe republicano, este último, publicado em 1896. Curvelo de Mendonça (1892) também esboçou aquilo que seria, talvez, um futuro livro sobre a contribuição dos intelectuais sergipanos para a “transmutação literária, jurídica, científica e filosófica” por qual passou o Brasil no último quartel do século XIX. É claro que tratava-se de enfatizar a importância de Tobias Barreto, Silvio Romero e toda uma geração influenciada por estes pensadores.
Um certo “Pastor Sergipano” assina uma breve notícia sobre a cidade banhada pelo rio Piauitinga. “Estância”, ocupa apenas duas páginas, mas o suficiente para informar sobre logradouros, hospital, fábrica de tecidos, condições do porto, produção fabril e principais edificações, imprensa e o movimento republicano no município em 1816. A mesma Estância também foi descrita nas impressões de viagem de Pedro Franco Lima, em 1904.
O município de Lagarto, contudo, ganhou monografia mais circunstanciada. É o mais extenso texto publicado sobre municípios. Nele, Severiano Cardoso retrata as origens da localidade, debruçando-se sobre os primeiros povoadores, templos, párocos, criminosos e, principalmente os costumes do povo do lugar. De Boquim, é estudada a “origem dessa denominação”, por Terêncio de Carvalho.
Os historiadores locais também esboçaram traços biográficos de filhos ilustres. Manoel dos Passos de Oliveira Teles, provavelmente, foi o autor dos textos sobre o deputado e magistrado lagartense, José Martins Fontes (1829/1895) e do professor e escritor baiano, Luiz Carlos da Silva Lisboa (1850/1903). Aníbal Freire biografou Tobias Barreto e o mesmo Oliveira Teles. Nesse último trabalho, há uma informação preciosa para os estudos sobre o pensamento geográfico em Sergipe: a Corografia de Sergipe, de Oliveira Teles, anunciada por Armindo Guaraná como obra inédita aparece como publicada no [jornal de Sergipe em 1896]. O artigo sobre Tobias é também um excerto de um livro a ser publicado, o Sergipe Intelectual.
Armindo Guaraná tratou da vida do bispo Domingos Quirino de Souza (1813/1863) e do poeta sancristovense, José da Costa e Silva, e Flaviano de Andrade e Hevécio de Andrade depuseram sobre a vida do acadêmico de medicina sergipano, nascido em Divina Pastora, Alfredo Acioli (1875/1903). Como sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Acioli produziu “uma longa e minuciosa monografia” sobre o seu município natal.
Já o historiador Francisco Antônio Carvalho de Lima Júnior ocupou-se do poeta sergipano Constantino Gomes de Souza (1824/1877) e, provavelmente, foi o autor da sinopse sobre o bacharel positivista e, depois, republicano carioca, Silva Jardim (1861/1891). Dos textos sobre o jurista Gumersindo Bessa (1859/1913), o empresário Guilherme José Vieira, e o político José do Faro Rollemberg não conhecemos os autores. Deve-se registrar que alem dos filhos sergipanos, baiano e carioca, o periódico divulgou traços biográficos de três pernambucanos: Manoel Xavier Paes Barreto, Pedro da Silva Marques (1887/1902) e Francisco Pedro Boulitreau.
O Almanaque Sergipano também publicou documentos à época considerados históricos, mas não foram muitos. Além de correspondência oficial que trata da participação de Sergipe na reedificação de Lisboa, apenas o número relativo ao ano de 1892 editou massivamente algumas fontes deliberadamente oferecidas aos futuros historiadores da experiência sergipana. A iniciativa coube a Francisco Antônio Carvalho de Lima Júnior. Como redator da primeira versão do Almanaque Sergipano, o historiador entremeou toda a publicação com breves notas sobre a instrução pública, a Revolução de Santo Amaro, o poder legislativo provincial, o soldo de militares, estatística populacional de Aracaju, e despesas da província para o exercício 1834/1835. Eram, certamente, notas de pesquisa acumuladas ao longo de sua vivência em Aracaju, quando da organização dos “papéis antigos” do acervo da Biblioteca provincial. Notas que seriam publicadas em meados da década de 1910 no periódico do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe.
Como pudemos constatar, a despeito de ser redigido e editado por historiadores como Carvalho Lima Júnior, Oliveira Teles, Silva Lisboa, e Elias Montalvão, não há diferenças na relação entre a escrita da História produzida para o Almanaque e a historiografia veiculada em outros periódicos da época. Apesar de o historiador constituir-se num organizador do tempo alheio e do almanaque constituir-se no demarcador do tempo social, sobretudo, no lapso de doze meses, não constatamos singularidades na articulação presente, passado e futuro na escrita produzida para esse veículo em particular. A historiografia funcionou como um produto entre os vários que os intelectuais chamados a contribuir com a empresa dispunham no momento da composição do periódico.
Ressalvas devem ser feitas ao número organizado por Lima Júnior (1892), onde as informações sobre o passado serviam como memória referencial e base para a autocrítica do regime político em vigor. Isso fora, a historiografia de almanaque configurou-se nas sinopses biográficas, nas memórias sobre municípios e nos excertos de obras recentemente publicadas pelos historiadores sergipanos. É curioso que neste caso, a publicidade da historiografia tenha sido efetivada a partir de fragmentos dos originais. A resenha, mesmo de caráter apresentativo e comercial foi matéria rara no Almanaque Sergipano. Essa tipologia, história de vidas ilustres e história dos municípios, encontrará o seu apogeu na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, criada por esses mesmos autores/colaboradores de almanaques em 1913.
No âmbito da pesquisa historiográfica, todavia, no que diz respeito à recepção dos textos, o impresso Almanaque ganha relevância como difusor dessa espécie de saber, na medida em que apresenta vantagem sobre o periódico jornal (diário, hebdomadário ou mensal) no número de exemplares produzidos (chegou à casa do milhar), no formado (livro, portátil, armazenado em estantes) e na abrangência da circulação (cobria outros estados do Brasil).
Para citar este texto:
FREITAS, Itamar. Historiografia de Almanaque (I)..A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 30 maio 2004.
Este artigo foi publicado no livroHistoriografia sergipana.

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