quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Historiador-alfabetizador?

Historical literacy
Acabo de ler um dossiê dos Cahiers Pedagogiques (Paris, n. 516, nov. 2014) dedicado aos problemas e soluções relativos às competências leitoras (Devenir lecteur). Os especialistas estão alarmados com a quantidade de alunos de 15 anos que sabem ler e não conseguem entender o que lêem: 20% (PISA, 2012). Parece cômico, quando pensamos no caso brasileiro. Mas, vamos ao que interessa.
Buscando informações para um curso que ministrarei com a Profa. Margarida Dias sobre “Categorias e práticas para a alfabetização histórica”, deparei-me com o dossiê, que forneceria o estado da arte sobre o aprender a ler e a escrever na escolarização básica. Como já afirmei várias vezes, o estudo comparado sobretudo entre os que se envolvem com políticas públicas, é sempre a melhor estratégia. Por isso, o meu interesse, entre outros países, pela França, terra dos grandes Henri Wallon (1879-1962) e Celestin Freinet (1896-1966) que estimularam a criação de profícuos grupos de pesquisa sobre a leitura e a escrita.
Analfabetismo no Mundo Unesco (2013)
Pois bem, o que encontrei nesse dossiê provocou no meu espírito um misto de indignação, desapontamento e incerteza. Como ensino aos meus alunos, esses estados de consciência são o que de melhor pode ocorrer depois de uma aula ou seção de leitura. Portanto, não vejam os próximos parágrafos como choramingas. Peço que os percebam como indício de um avanço na compreensão sobre a função social da história nos currículos dos anos iniciais no Brasil.
A indignação, um tanto irônica, já apontei no início. Se os nossos analfabetos funcionais (como eram chamados, no Brasil, os alunos que sabiam ler e não usavam a leitura para resolver problemas sofisticados da vida prática) [1] estivessem no patamar de 20%, estaríamos em céus de brigadeiro. Contudo, infelizmente, a verdade é bem outra. O número dos que sabem ler e não entendem o que lêem em muitos cursos de Pedagogia e de História pelo Brasil a fora (vejam que estou tratando de nível superior), impressionisticamente falando, é claro, pode ultrapassar os 50%. É trágico! E os franceses reclamando dos 20%! Bom, mas “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” (ou como diria meu pai, “cada um sabe onde o seu sapato aperta”).
Além da indignação, o dossiê provocou um sentimento mais proveitoso: o desapontamento. Repito: desapontamento na pesquisa é virtude. É indício de que você não está tão defasado em termos de informações. E os motivos do desapontamento foram, em primeiro lugar, a natureza do inventário de problemas e soluções relacionadas aos obstáculos à decodificação e a compreensão (essas são as duas habilidades mais requeridas no referido dossiê para definir o ato de ler).
Celestin Freinet
Henri Wallon
Os problemas são inscritos nas variáveis “leitor”, “suporte” e “mediador”, em outras palavras, as questões que mobilizam os pesquisadores franceses são de ordem metodológica (usar o analítico ou o sintético?), de domínio científico (isolar ou combinar abordagens da psicologia cognitivista, neurociência, teoria literária, didática?), são relativas aos suportes de leitura (compostos por vários gêneros ou adaptados aos leitores pobres? Primazia ao material digital, que cria novos usos e habilidades, ou prevalência das clássicas técnicas de alfabetização no uso de tablets, por exemplo?), por fim, estão ligadas à natureza e à função dos mediadores (quem tem maior papel de intervenção, os pais letrados ou professores engajados?).
O outro motivo para o meu desapontamento relaciona-se (finalmente!) com o ensino de história. Eu o experimentei, durante a leitura, ao listar algumas das principais estratégias apresentadas pelos pesquisadores para reduzir o número de leitores que não compreendem o código decifrado: ensinar a ler e a escrever conjuntamente, a partir do uso de suportes que incluam vários gêneros textuais; empregar estratégias de elaboração de hipóteses (parar abruptamente a leitura e questionar os alunos sobre o final da história, por exemplo); lançar mão de estratégias de inferência (fazê-los descobrir – buscar e achar – o desfecho produzido pelo autor, comparando o final da história às suas hipóteses iniciais); partir do texto escrito e estimular a capacidade de imaginar, transformando o leitor em um “personagem-testemunha”. Ora, essas não seriam atividades típicas do trabalho daquele professor de história predisposto a alfabetizar historicamente? Não seriam, em outras palavras, exercícios que ampliariam as habilidades historiadoras, promovendo, inclusive, a sofisticada habilidade da empatia histórica, tão defendida na Europa, do historicismo de Gustav Droysen à educação histórica de Peter Lee?
Há alguns anos fiquei impressionado com a clareza da exposição de filósofos do século XVI que sobrelevavam as atividades relacionadas à alfabetização lingüística e numérica na formação dos imaturos. Trocando em miúdos: o fundamental, nos primeiros anos da escolarização, aí por volta dos 6 aos 10 anos (claro que há grande dose de universalismo, mas como evitá-lo?), é a alfabetização em termos de comunicação e quantidade – saber ler e escrever na língua pátria e quantificar as coisas no plano e no espaço. Decodificar grafemas ou ícones e medir a experiência físico-espacial, abstrato-temporal seriam o rio por onde correm todos os conhecimentos produzidos e acumulados pelo homem, que constroem as várias identidades individuais e coletivas (permitidas ou interditadas, utópicas ou realisticamente interessadas).
Juntando as informações, do modelo curricular produzido pelos filósofos do início da modernidade e do estado da arte sobre a formação do leitor francês, cheguei à incerteza, terceiro e último sentimento provocado pela leitura do dossiê. Quer dizer então que, do modo como vem sendo compreendida pelos historiadores, a história seria disciplina dispensável, ao menos nos três anos iniciais do ensino fundamental? Pensando como imprescindível a alfabetização numérica e linguística, a ação da história nas consciências infantis seria inócua (essa conclusão é antiga)? Quer dizer então que não há diferenças substantivas entre o ensino de língua portuguesa e o ensino de história (posto que a compreensão dominante sobre a natureza e a função social da história na formação de pessoas incorpora princípios do método histórico – o que significa dizer que ensinar história é fazer desenvolver habilidades como a decodificação de grafemas e ícones, a compreensão desses grafemas e ícones no ato de expressão e de tomada de posição, a elaboração de hipóteses e as iniciativas de inferência para criar o hábito de nunca acreditar à primeira vista nas afirmações que lhes chegam aos olhos e aos ouvidos)? Enfim, dominar a língua portuguesa e pensar historicamente exigiriam as habilidades de identificar “o que disse” e o que “quis dizer” esse mesmo narrador, ou seja, decodificar e hermenêutica?
Bom, espero que esse monte de questões nos auxilie a compreender que a manutenção da história nos currículos dos anos iniciais da educação básica passa, entre outras coisas, pelo refinamento dos estudos sobre o que seja, efetivamente, ensinar história, pela busca das suas singularidades.  Quem sabe, até, nos estimulem a refletir sobre a possibilidade de retirar das costas dos pedagogos a responsabilidade exclusiva pela alfabetização histórica e nós mesmos avançarmos nos estudos acerca dos modos de auxiliar aos alunos dos anos iniciais a partilharem conosco do maravilhoso mundo da comunicação escrita e numérica, ou seja, deixarmos de exigir do pedagogo uma posição de alfabetizador-historiador e assumirmos a condição de historiador-alfabetizador.


Referências
BAUD-STEF, Sylvie. J'aimais, tu aimes, vous aimerez. Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 30-31. nov. 2014.
CRINON, Jacques. Réussir l'apprentissage de la lecture. Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 10. nov. 2014. 
DARGAGNON, Hélène. Des collégiens en maternelle. Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 29-30. nov. 2014.
DE LA HAYE, Fanny; TUAL, Marina. Maintenant je compreeds.  Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 26-27. nov. 2014.
DELARUE-BRETON, Catherine; BAUTIER, Elisabeth. Supports de travail et inégalités scolaires. Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 15-17. nov. 2014.
ETIENNE, Bénédicte. On va lire tou ça? Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 31-33. nov. 2014.
GENTAZ, Édouard. Bien décoder pour bien comprendre. Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 21-23. nov. 2014.
GOIGOUX, Roland; CÈBE, Sylvie. Avec Lectorino et LectorinetteCahiers Pedagogiques. n. 516, p. 34-36. nov. 2014.
MARSEPOIL, Fatine. Qu'est-ce que lire? Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 15-16. nov. 2014.
MORIN, Marie-France. Passer par le chemin de l'écriture. Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 12-14. nov. 2014.
RICHARD-PRINCIPALLI, Patricia. Panorama de la recherche. Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 10. nov. 2014.
ROBERT, Thomas. Le choeur du text. Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 19-20. nov. 2014.
SOUZOULIAS, André. Ce qui éclaire le paysage. Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 23-25. nov. 2014.

VIRIOT-GOELDEL, Caroline. Et après? Que pourrait-il bien se passer?  Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 17-19. nov. 2014.

Nota
[1] Para detalhes sobre a variação da nomenclatura nos últimos 20 anos, principalmente a sua apropriação pelos livros didáticos do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), ver: STAMATTO, Inês. Alfabetização histórica em materiais didáticos: significados e usos. Anais... ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. ANPUH. Fortaleza, 2009. 

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