Historical literacy |
Acabo de ler um dossiê dos Cahiers Pedagogiques (Paris, n. 516, nov.
2014) dedicado aos problemas e soluções relativos às competências leitoras (Devenir lecteur). Os especialistas estão
alarmados com a quantidade de alunos de 15 anos que sabem ler e não conseguem
entender o que lêem: 20% (PISA, 2012). Parece cômico, quando pensamos no caso
brasileiro. Mas, vamos ao que interessa.
Buscando informações para um curso que
ministrarei com a Profa. Margarida Dias sobre “Categorias e práticas para a
alfabetização histórica”, deparei-me com o dossiê, que forneceria o estado da
arte sobre o aprender a ler e a escrever na escolarização básica. Como já afirmei várias vezes, o estudo comparado
sobretudo entre os que se envolvem com políticas públicas, é sempre a melhor
estratégia. Por isso, o meu interesse, entre outros países, pela França, terra
dos grandes Henri Wallon (1879-1962) e Celestin Freinet (1896-1966) que estimularam
a criação de profícuos grupos de pesquisa sobre a leitura e a escrita.
Analfabetismo no Mundo Unesco (2013) |
Pois bem, o que encontrei nesse dossiê
provocou no meu espírito um misto de indignação, desapontamento e incerteza.
Como ensino aos meus alunos, esses estados de consciência são o que de melhor
pode ocorrer depois de uma aula ou seção de leitura. Portanto, não vejam os
próximos parágrafos como choramingas. Peço que os percebam como indício de um
avanço na compreensão sobre a função social da história nos currículos dos anos
iniciais no Brasil.
A indignação, um tanto irônica, já
apontei no início. Se os nossos analfabetos funcionais (como eram chamados, no
Brasil, os alunos que sabiam ler e não usavam a leitura para resolver problemas
sofisticados da vida prática) [1] estivessem no patamar de 20%, estaríamos em céus
de brigadeiro. Contudo, infelizmente, a verdade é bem outra. O número dos que
sabem ler e não entendem o que lêem em muitos cursos de Pedagogia e de História
pelo Brasil a fora (vejam que estou tratando de nível superior),
impressionisticamente falando, é claro, pode ultrapassar os 50%. É trágico! E
os franceses reclamando dos 20%! Bom, mas “cada um sabe a dor e a delícia de
ser o que é” (ou como diria meu pai, “cada um sabe onde o seu sapato aperta”).
Além da indignação, o dossiê provocou um
sentimento mais proveitoso: o desapontamento. Repito: desapontamento na
pesquisa é virtude. É indício de que você não está tão defasado em termos de
informações. E os motivos do desapontamento foram, em primeiro lugar, a
natureza do inventário de problemas e soluções relacionadas aos obstáculos à
decodificação e a compreensão (essas são as duas habilidades mais requeridas no
referido dossiê para definir o ato de ler).
Celestin Freinet |
Henri Wallon |
O outro motivo para o meu desapontamento relaciona-se (finalmente!) com o ensino de história. Eu o experimentei, durante a leitura, ao listar algumas das principais estratégias apresentadas pelos pesquisadores para reduzir o número de leitores que não compreendem o código decifrado: ensinar a ler e a escrever conjuntamente, a partir do uso de suportes que incluam vários gêneros textuais; empregar estratégias de elaboração de hipóteses (parar abruptamente a leitura e questionar os alunos sobre o final da história, por exemplo); lançar mão de estratégias de inferência (fazê-los descobrir – buscar e achar – o desfecho produzido pelo autor, comparando o final da história às suas hipóteses iniciais); partir do texto escrito e estimular a capacidade de imaginar, transformando o leitor em um “personagem-testemunha”. Ora, essas não seriam atividades típicas do trabalho daquele professor de história predisposto a alfabetizar historicamente? Não seriam, em outras palavras, exercícios que ampliariam as habilidades historiadoras, promovendo, inclusive, a sofisticada habilidade da empatia histórica, tão defendida na Europa, do historicismo de Gustav Droysen à educação histórica de Peter Lee?
Há alguns anos fiquei impressionado com
a clareza da exposição de filósofos do século XVI que sobrelevavam as
atividades relacionadas à alfabetização lingüística e numérica na formação dos
imaturos. Trocando em miúdos: o fundamental, nos primeiros anos da escolarização,
aí por volta dos 6 aos 10 anos (claro que há grande dose de universalismo, mas
como evitá-lo?), é a alfabetização em termos de comunicação e quantidade –
saber ler e escrever na língua pátria e quantificar as coisas no plano e no
espaço. Decodificar grafemas ou ícones e medir a experiência físico-espacial,
abstrato-temporal seriam o rio por onde correm todos os conhecimentos
produzidos e acumulados pelo homem, que constroem as várias identidades
individuais e coletivas (permitidas ou interditadas, utópicas ou realisticamente
interessadas).
Bom, espero que esse monte de questões
nos auxilie a compreender que a manutenção da história nos currículos dos
anos iniciais da educação básica passa, entre outras coisas, pelo refinamento
dos estudos sobre o que seja, efetivamente, ensinar história, pela busca das
suas singularidades. Quem sabe, até, nos estimulem a refletir sobre a possibilidade de retirar
das costas dos pedagogos a responsabilidade exclusiva pela alfabetização
histórica e nós mesmos avançarmos nos estudos acerca dos modos de auxiliar aos
alunos dos anos iniciais a partilharem conosco do maravilhoso mundo da
comunicação escrita e numérica, ou seja, deixarmos de exigir do pedagogo uma
posição de alfabetizador-historiador e assumirmos a condição de
historiador-alfabetizador.
Referências
BAUD-STEF,
Sylvie. J'aimais, tu aimes, vous
aimerez. Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 30-31. nov. 2014.
CRINON, Jacques. Réussir
l'apprentissage de la lecture. Cahiers
Pedagogiques. n. 516, p. 10. nov. 2014.
DARGAGNON,
Hélène. Des collégiens en maternelle. Cahiers Pedagogiques. n. 516,
p. 29-30. nov. 2014.
DE LA HAYE, Fanny; TUAL, Marina. Maintenant je
compreeds. Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 26-27. nov. 2014.
DELARUE-BRETON,
Catherine; BAUTIER, Elisabeth. Supports de travail et inégalités
scolaires. Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 15-17. nov. 2014.
ETIENNE,
Bénédicte. On va lire tou ça? Cahiers
Pedagogiques. n. 516, p. 31-33. nov. 2014.
GENTAZ, Édouard. Bien décoder pour
bien comprendre. Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 21-23. nov. 2014.
GOIGOUX,
Roland; CÈBE, Sylvie. Avec Lectorino et Lectorinette. Cahiers Pedagogiques.
n. 516, p. 34-36. nov. 2014.
MARSEPOIL, Fatine. Qu'est-ce que
lire? Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 15-16. nov. 2014.
MORIN, Marie-France. Passer par le
chemin de l'écriture. Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 12-14. nov.
2014.
RICHARD-PRINCIPALLI, Patricia.
Panorama de la recherche. Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 10. nov.
2014.
ROBERT, Thomas. Le choeur du text. Cahiers Pedagogiques.
n. 516, p. 19-20. nov. 2014.
SOUZOULIAS, André. Ce qui éclaire
le paysage. Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 23-25. nov. 2014.
VIRIOT-GOELDEL,
Caroline. Et après? Que pourrait-il bien se
passer? Cahiers Pedagogiques. n. 516, p. 17-19. nov. 2014.
Nota
[1] Para detalhes sobre a variação da nomenclatura nos últimos 20 anos, principalmente a sua apropriação pelos livros didáticos do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), ver: STAMATTO, Inês. Alfabetização histórica em materiais didáticos: significados e usos. Anais... ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. ANPUH. Fortaleza, 2009.
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