Rafael Saddi. Professor da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás. |
Gostaria de
iniciar aqui um debate público com o professor e amigo Itamar Freitas, reconhecido por sua grandiosa inteligência, por sua intensa e
qualificada produção, que tem grande acúmulo no tema em questão e que não se
esquiva jamais de um bom debate.[1]
No seu artigo,
o professor defende a existência da BASE COMUM NACIONAL CURRICULAR, “uma base
nacional comum de finalidades e conteúdos para todas as áreas e todos os níveis
de ensino”, que consta no PLANO NACIONAL DE ENSINO, recentemente aprovado.
São basicamente
três os argumentos utilizados pelo professor. Irei apresentar um a um e traçar
alguns questionamentos logo abaixo de cada um deles, para aprofundarmos este debate
tão importante:
1) Primeiro argumento: já existe uma BASE
COMUM NACIONAL CURRICULAR, pois “Na ausência da orientação na formação inicial
(e mesmo na existência dela), professores seguem a Matriz do Enem ou (e) os
materiais didáticos distribuídos pelo MEC, mas não construído por ele (o
MEC)”.
Não, não existe.
Acho importante não confundirmos a criação legal e obrigatória de um currículo
nacional com a pressão provocada pelas necessidades de ingresso nas
universidades e com a ausência de condições para o professor elaborar o seu
próprio material didático.
Vários
professores, especialmente em escolas públicas, não seguem a Matriz do Enem e
nem mesmo o currículo tal como desenhado no livro didático adotado por sua
escola.
Grande parte dos
professores sabe que se preocupar em dar todo o conteúdo do livro significa
deixar de se aprofundar questões e temas que consideram relevantes para a
formação de seus alunos.
Alguns deles, com
boa formação, reorganizam o conteúdo dos livros, e partem das carências de
orientação dos seus próprios alunos para definir os temas que serão trabalhados
e aprofundados.
A questão que
coloco é: o que ocorrerá com esse professor que já enfrenta as pressões das
avaliações? Antes, poderia estar fora das exigências da escola, agora estará
fora das exigências e obrigações exigidas pelo governo federal? Ou seja, esse
currículo obrigatório não vem retirar ainda mais autonomia do professor?
2) Segundo argumento: Uma BASE COMUM NACIONAL
CURRICULAR já existe, “de certa forma”, até mesmo nas universidades. Citando o
exemplo das faculdades de história, o professor Itamar afirma: “Alguém
classifica como sério um curso que não possua em sua grade as disciplinas de
teoria da história, metodologia da história, história da historiografia,
introdução à história, por exemplo? Essas matérias não constituem parte de uma
espécie de BNCC do ensino superior?)”.
Não, não. Não há
uma base comum curricular no ensino superior. Isso porque as faculdades têm
autonomia para definir sua própria grade (autonomia limitada somente por
algumas disciplinas obrigatórias, como as disciplinas de prática e estágio,
para citar o exemplo das licenciaturas).
Confunde-se a
obrigatoriedade da BASE COMUM com o acúmulo coletivo e processual do
conhecimento histórico construído de forma autônoma. Nós historiadores achamos
que Teoria da História é importante não porque ela esteja em alguma BASE COMUM
CURRICULAR, mas porque nós mesmos consideramos essa disciplina relevante para a
formação reflexiva do historiador. Eis a grande diferença.
Por isso, debater
coletivamente o que se deve se ensinar é importante, um currículo que seja
obrigatório e que se imponha sobre os professores sem ter sido ao longo de suas
trajetórias construído por eles, ao contrário, muito preocupante.
Uma BASE COMUM
CURRICULAR, longe de ser obrigatória não deveria ser construída e formulada
seguindo o modelo das universidades? Com autonomia para o professor e condições estruturais e intelectuais (que as universidades possibilitam, mas as escolas não) para a elaboração de uma concepção pelos próprios profissionais da área?
3) “Penso que cabe, sim, ao Ministério a
produção de um texto comunicando uma base nacional comum de finalidades e
conteúdos para todas as áreas e todos os níveis de ensino. A presidente, o
ministro da educação, o secretário da educação básica e o coordenador de
currículos da SEB têm legitimidade para isso. É uma legitimidade concedida
pelas urnas, ou seja, pelos movimentos sociais ou pela sociedade civil, como
queiram. Não foi essa a prática democrática que muitos de nós defenderam nos
últimos 30 anos, a apresentação de programas políticos em disputa e a eleição
direta de um gestor para implantar o projeto vencedor?”
Ora, podemos
dizer que o MEC tem poder legal para isso, mas não legitimidade. Quem tem
legitimidade para definir seus currículos são os professores que por formação e
experiência têm acúmulos para discutir e definir o que deve ser ensinado. Quem
tem legitimidade são os pesquisadores do ensino, que alcançaram grandes avanços
e têm o que dizer sobre o tema. Quando um governo é eleito, ele ganha aval para
fazer qualquer coisa? Nesse argumento, não se deslegitimaria toda e qualquer luta social contra determinadas atitudes de um governo, já que a única participação é a das urnas? Mais ainda, se entrarmos nas teorias do Estado,
acha mesmo que os políticos, unicamente por serem eleitos de 04 em 04 anos,
representam os interesses e anseios populares? Se representassem efetivamente
os professores e os pesquisadores de ensino, não teríamos uma realidade
bastante, mas bastante distinta na educação do país?
Por último: o
caráter dessa BASE COMUM vai ser definida efetivamente por quem? Que embate
vamos travar? E com que forças? Temos peso para garantirmos uma boa BASE COMUM?
Ou estaremos à mercê dos empresários da educação, que já conseguiram garantir o
direito de acesso aos 10% do Pib para a educação? Nesse sentido, não seria um
erro, de antemão, defendermos a existência de uma BASE DE ACORDO (que implica
em uma obrigatoriedade de currículo) sem ainda sabermos que currículo será
este?
Acompanhe as demais postagens dessa série
4. "Base nacional comum" na África do Sul (1997-2014) - Itamar Freitas, 01/12/2014.
3. Base nacional comum: a experiência francesa - Itamar Freitas, 29/11/2014.
Acompanhe as demais postagens dessa série
3. Base nacional comum: a experiência francesa - Itamar Freitas, 29/11/2014.
2. Sobre a obrigatoriedade de um currículo nacional para a educação básica - Rafael Saddi, 28/11/2014.
[1] Segue, na íntegra, a mensagem que recebi do professor Rafael Saddi, hoje pela manhã, (sexta-feira, 28/11/2014), via correio eletrônico:
"Fala Itamar,
"Fala Itamar,
Tenho algumas preocupações com as últimas reflexões do seu blog.
Minhas discordâncias com relação aos seus argumentos estão aqui,
em forma de questionamentos, pois obviamente você poderá me ajudar a refletir
melhor sobre a questão.
Pensei em publicar no facebook, mas fica muito grande para
aquele espaço. E também, antes, gostaria de saber se acha que é tranquilo o
debate ser feito publicamente. Por isso, pensei se você acha que daria para
publicar no seu blog, para depois você fazer uma tréplica, é claro.
Enfim, diz aí o que acha. Se quiser discutir só por aqui também
acho que está ótimo. Aí mais tarde, se chegarmos a algum consenso, podemos
lançar algumas posições conjuntas. Mas, enfim, seguem aí os meus questionamentos,
bastante iniciais, ao seu texto. Me diga qual é o problema da minha
análise.
Abraços,
Rafael".
Caros Itamar e Rafael, a crítica do Rafael pode ser relativizada se discutirmos o conceito de currículo. Currículo não se resume ao documento, mas às práticas - consonantes e dissonantes - que ele proporciona. Quer dizer, as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em História estão inseridas no conceito de currículo, assim como os currículos de cada curso em particular, e ainda as práticas convergentes e divergentes dos professores em relação aos currículos de seus cursos. Assim, se considerarmos que há, sim, uma cultura geral quanto à disciplina de história, no ensino médio e no ensino superior, com núcleos centrais de convergência e áreas intermediárias e periféricas nas quais vão crescendo as divergências, considerando ainda que a hierarquia entre esses núcleos é definida por relações de poder que envolvem currículo oficial, exames públicos e a força do lobby das escolas particulares, bom, então permanece válida a proposição de que já há um currículo nacional a ser modificado pela BNCC.
ResponderExcluirA diferença é que esse currículo que já existe hoje não é formalizado e tem poucas raízes num processo decisório coletivo, público, e portanto tem menor legitimidade, o que fortalece as atitudes de divergência e de "desobediência civil". A propósito, acho que o uso do conceito de desobediência civil é forçado quando quer descrever relações com um estado democrático, em vez de uma ditadura ou uma metrópole colonial.
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