Quem concebe a figura do intelectual como um criador ou um mediador, engajado na produção literária e científica, certamente não deixa de louvar a iniciativa de Armindo Guaraná (1848/1924), o autor do nosso mais famoso dicionário biobibliográfico. (Cf. Sirinelli, 1996).
Há equívocos no seu Dicionário (1925), erros de datação, filiação, interpolações e, quem sabe até, toda a série de imperfeições que somente a micrologia do historiador antiquário é capaz de descobrir. Mas, não se tem como desprezar esse conjunto de 586 verbetes sobre a experiência de sergipanos, nascidos entre 1648 e 1908, que muito contribuíram com a sua “ação destacada” na sociedade sergipana e na “cultura intelectual do país”. (Cf. Guaraná, 1924, p. XVII). Tanto a obra impressiona que alguns intelectuais do nosso tempo já manifestaram o desejo de dar continuidade ao projeto, uma proposta, ao meu ver, bastante problemática.
Na apresentação do Dicionário, há o comentário de que o mesmo não serviria aos “espíritos superiores, versados nos achados das ciências particulares, em busca de uma concepção geral” – opinião que denuncia o espírito cientificista reinante do início do século XX. Para nós, entretanto, a narração dos “fatos, mais ou menos interessantes” dos “pro homens” de Sergipe é simplesmente o grande achado, um manancial de informações sobre climas, crenças e opiniões constitutivas da rede de sociabilidade dos intelectuais em Sergipe. Mas, o que era o ser intelectual no tempo em que o Dicionário veio a público?
Não chega a ser uma regra, mas os próprios articulistas do período se auto- reconheceram pelas funções desempenhadas no jornalismo, na literatura stricto sensu, no magistério e na magistratura. O segundo critério – ser detentor de “cultura literária”, de “dotes da inteligência” – relacionava o intelectual aos titulados em cursos de engenharia, de escolas militares, direito e medicina, como também aos que tivessem manifestado sua opinião oralmente ou publicassem algum trabalho ligado às suas respectivas áreas de atuação profissional.
O próprio Guaraná – bacharel em direito, advogado, chefe de polícia, juiz e desembargador e, depois de aposentado, membro de associações de caráter beneficente, religioso e literário – pode ser considerado um dos “tipos intelectuais” dominantes no período, descritos em sua obra magna.
O Dicionário, é claro, não foi a sua única tentativa de historiar vidas. Na Revista do IHGS, Guaraná chegou a contrariar um dos maiores vícios da biografia: o de substituir a história política do Estado pelo estudo exclusivo do individual. No Dicionário, porém, o formato exigia síntese e sistema. Os dados colhidos na oralidade, em periódicos ou em possíveis questionários enviados aos “pro homens” teriam de obedecer a uma certa grade diplomática. É, justamente, essa “camisa de força”, imposta às vidas dos sergipanos, e a possibilidade de estabelecer comparações entre as trajetórias que fazem a delícia dos sociólogos e dos historiadores das idéias, da educação e da cultura sergipanas.
Ao transformar os intelectuais de Guaraná em vidas paralelas – não as de Plutarco e sim as dos registros em bancos de dados relacionais – o que se constata é uma elite formada por gerações de nascidos entre 1840 e 1900. Nada menos de 73% dos biografados têm origem nesse período e mantiveram-se ativos na política e na atividade literária até o final dos anos 1920.
São esmagadoramente do sexo masculino e podem ser distribuídos em dois grandes grupos: os nascidos nas décadas de 1850/1860 e de 1880/1890. O primeiro grupo, minoritário, tem a existência marcada por eventos fundadores como a Guerra do Paraguai e a experiência institucional do segundo império, as campanhas abolicionistas e republicanas, e a tragédia de Canudos. As últimas gerações trazem a vivência das crises de identidade, provocadas pelas seguidas intervenções dos governos do centro na política local, o assassinato das mais importantes lideranças políticas da virada do século XIX para o século XX, e a primeira Guerra Mundial.
Os intelectuais de Guaraná são migrantes, no sentido literal da palavra. Essa característica foi incorporada positivamente pelos homens de letras. Transitaram do interior para a capital do Estado, de Sergipe para Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, e desses para outros estados e países, sempre em busca de fortuna financeira, política ou de reconhecimento como literatos. A migração é justificada pela deficiência do aparelho educacional da terra, em se tratando de ensinos secundário e superior.
Aqueles que terminavam o secundário e, por motivos diversos, não prosseguiam nos estudos formais, enquadravam-se nas ocupações disponíveis à época, de acordo com as relações familiares que possuíam ou com a habilidade para adequar-se às conjunturas políticas do Estado. Trabalharam na imprensa como redatores e tipógrafos, montaram um negócio na área de ensino, vendas ou, ainda, iniciaram carreira militar como praça. Foram também funcionários públicos.
Essas constatações e muitas outras podem ser extraídas de um exame prosopográfico dos verbetes insertos no Dicionário biobibliográfico de Armindo Guaraná. Contudo, apesar da riqueza de detalhes e da abrangência do seu levantamento, os personagens relacionados nunca deixarão de ser “os intelectuais de Guaraná”.
Podemos partir deles ou chegar até eles por intermédio de outras pesquisas ou fontes. Mas, os critérios de seleção e o trabalho heurístico – é preciso reconhecer – estão marcados pelas relações de sociabilidade vivenciadas pelo biógrafo e pela idéia de intelectual em vigor no período. Esses traços fazem a “miséria” e a virtude da obra. É por isso que ele suscita nos ledores, num primeiro momento, a euforia com o panorama intelectual ofertado – o desejo de repetir a façanha – e, tempos depois, a decepção diante dos problemas teórico-metodológicos que cercam a iniciativa de dar continuidade ao opulento Dicionário.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Os intelectuais de Guaraná. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 21 dez. 2003.
Nenhum comentário:
Postar um comentário