A história – saber ou escrita –, nunca é demasiado lembrar, não se limita à Universidade. Fernando Novais (1990), quem melhor esboçou uma tipologia para a escrita produzida no Brasil, apontou, pelo menos, quatro motivos e lugares de produção: a historiografia ligada às demandas do mercado; os trabalhos produzidos individualmente, sem vinculações institucionais; os escritos institucionais não universitários; e a historiografia universitária propriamente dita. Dos três últimos, não nos faltam exemplos: temos, respectivamente, A República velha em Itabaiana, de Vladimir Carvalho, A Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, e O Nordeste açucareiro, de Maria da Glória Santana Almeida. Do primeiro, porém, é muito difícil citar um título. Nem mesmo a historiografia didática sobre Sergipe e seus milhares de petenciais consumidores foi suficientemente atrativa aos olhos do Deus-mercado. Às vistas do jornalista Antônio Bomfim, todavia, a história tornou-se um ótimo produto. Melhor ainda quando narrada a partir das pequenas unidades, reavivando vocações, sentimentos e poderes locais. Foi sob a sua direção que ganhou corpo um projeto ensaiado no Jornal Cinform e lançada no mês de junho último, em formato de revista com o título História dos municípios: um jeito fascinante de conhecer Sergipe.
Como produto para o mercado, a publicação já nasceu best seller. Foram trinta e cinco mil exemplares impressos, disponíveis em centenas de pontos comerciais do Estado ao módico preço de R$ 10,00. Haveria de ser um sucesso no varejo, mas também na captação de anunciantes. Para tanto, cuidou-se de refinar o projeto gráfico e massificar a divulgação através do próprio jornal. O resultado da empresa, cujo convite atenderam a Petrobrás, G. Barbosa, Habitacional, Norcon, Sebrae, Governo do Estado e as próprias prefeituras municipais – somente para citar os mais notáveis – foi um produto que faz orgulhoso o mais desenraizado sergipano. São 278 páginas em policromia sobre papel couché. O texto, a três colunas, é intercalado por boxes, mapas, listagens e mais de quatrocentas reproduções fotográficas que arrolam personagens e ambientes representativos de cada município. O espaço da revista é dividido eqüitativamente: 3 páginas para cada localidade. A exposição segue o critério alfabético, embora a “Reunião de coisas de Sergipe”, texto de abertura assinado pela professora Vera França, contemple o edifício “Maria Feliciana”, os mercados públicos recém-restaurados e o rio Sergipe como imagens sintéticas do Estado. É Aracaju reafirmando sorrateiramente a sua liderança à frente do passado e do presente de Sergipe.
A hegemonia da capital, entretanto, por aí se encerra. O corpo da revista é preenchido por uma história-memória que dá vazão às identidades municipais. É uma memória duplamente tipificada. Primeiro, porque foi construída, em grande parte, sobre os textos da Enciclopédia dos municípios brasileiros (IBGE), para ser mais preciso, sobre os textos de João Oliva Alves, principalmente. Esse trabalho, por sua vez, já havia alimentado a memória dos poucos leitores que, nas páginas da revista, foram transformados em historiadores. Depois, a própria estrutura da coleta (as pessoas mais antigas do lugar, os mais influentes, os herdeiros dos fundadores), o trato dos depoimentos (muitos deles com aplicação imediata, sem os devidos cruzamentos) e as formas de exposição (boxes, complementos da história recente) anunciam a maior de suas características: a forma fragmentária, a visão particular, a dimensão do individual sobre a experiência comunitária. Essa estratégia da revista abre a possibilidade, por exemplo, de o prefeito de Salgado transformar-se no responsável pela decadência do balneário da cidade, quando se sabe que esse aprazível recanto de outrora começou a perder o seu público a partir da “descoberta” da praia de Atalaia Velha pelos grandes consumidores (no dizer da época, as elites) de Aracaju. Há também o caso do soldado Evaristo, mártir santamarense da “Revolução de 1836” que, à luz de uma evocação particular, pôde ter seu feito de bravura substituído por uma prosaica venda de peixes na cidade de Rosário. Esses são dois exemplos de versões individuais sobre acontecimentos registrados pela historiografia e que, certamente, não serão os únicos problemáticos na citada publicação.
Outro ponto a destacar é o aspecto bastante plural da narrativa. Os novos historiadores revelados na revista (para alguns munícipes, já velhos conhecidos) registraram reminiscências de criança, lamentaram a destruição de velhos símbolos, paisagens e costumes e aproveitaram o espaço para denunciar a falta de projetos desenvolvimentistas em nível local. São professores, estudantes universitários, profissionais liberais e jornalistas, em sua maioria. Nativos fiéis ou ilhós distantes que, a depender da intimidade com o vernáculo, produzem saborosas crônicas ou disparam inocentes e desgastados panegíricos. Mas, não nos enganemos: a História dos municípios é majoritariamente uma produção de jornalista, facilmente identificável pela forma de legendar as fotografias, de segmentar e intitular os textos. A marca dessa escrita (não extensível à totalidade dos jornalistas) está nas condições de produção da matéria – texto de sete dias que não se obriga a referenciar obras clássicas e de fácil acesso, sobre o município de Itabaiana, por exemplo. A marca jornalística (não exclusiva ao Cinform) também se expressa no apelo ao exótico, ao anedótico ou ao escandaloso: é o lobisomem, assombração, bode carola, comunidade indígena, tesouro, remanescente quilombo e a mais notável de todas as excentricidades: as experiências da passagem de Lampião por grande parte das cidades de Sergipe. Ficaria satisfeito em saber como esse fascínio pelo “Rei do Cangaço” foi recuperado durante as entrevistas; chega a ser mais relevante que as disputas eleitorais do lugar.
Mas, Sergipe não é só Lampião, diriam os autores-organizadores, e teriam razão na reprimenda. As muitas vocações sugeridas fornecem pistas para inúmeras hipóteses e visões sobre o conjunto dos municípios. São novas fontes orais e, sobretudo, textuais. Quantos livros em preparo não foram revelados por essas reportagens? Quantos historiadores não se viram estimulados a publicar o resultado de anos de trabalho em coleções de pequenas notas em cadernos pautados? Talvez, um dos maiores trunfos da empresa venha a ser justamente essa movimentação promovida em torno da história sobre Sergipe. O alvo seria um público que se reconcilia com a matéria escrita após décadas de afastamento da escola primária. Foi um longo tempo de história em capítulos semanais, aguardados com certa ansiedade para saber o que seria narrado acerca do seu lugar de origem, fragmentos, que agora aparecem no formato revista. Para bem aproveitar a iniciativa do Cinform, vale, então esse comentário que tem endereço certo: os professores. Aos mestres que incluirão a revista em sua caixa de ferramentas didáticas sobre “cultura sergipana”, é preciso lembrar que os depoimentos foram imortalizados no papel couché, mas não precisam ser sacralizados em sala de aula. Outras memórias podem ser coletadas, outras histórias podem ser construídas, fornecendo mais alternativas para uma nova síntese sobre cada município sergipano.
Para citar este texto
FREITAS, Itamar. Os municípios em revista. Jornal da Cidade, Aracaju, p. B 4-B 4, 23 dez. 2003.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.
Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
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