domingo, 14 de dezembro de 2003

História de Sergipe para crianças

Com ensinar história para as crianças? Em Sergipe, é provável que tenha sido o professor Elias Montalvão o primeiro a sugerir uma metodologia em tal sentido. Para ele, a criança até poderia ser representada como um adulto em miniatura, mas o ensino da história deveria incorporar preocupações psicológicas adequadas à tenra idade.
No livro didático Meu Sergipe (1916), o professor deixa claro esse projeto, como já demonstrou Leila Andrade (2002): é “visível a tentativa de adaptação da linguagem e dos aspectos tipográficos” ao nível de inteligibilidade das crianças do ensino primário. A narrativa montada sobre pequenos contos, o texto dialogado, a mediação família-escola via personagens, temáticas e cenários familiares à criança, o emprego de toscas ilustrações, o tamanho dos tipos, e  a editoração do livro de história de Sergipe exemplificam essa intenção (cf. Andrade, 2002).
Mas, o próprio livro didático de Montalvão, não obstante apresentar-se como modelo, também deixa entrever um certo padrão de ensino em vigor. Ainda que o professor tenha carreado para a obra alguns princípios do ensino intuitivo ou da pedagogia pós-Herbart, lá, pelas frestas do Meu Sergipe, é possível observar a cena de uma aula de história para crianças, numa escola primária sergipana, a partir da década de 1910.
Que história se conta ao aluno Gratulino? (personagem de Meu Sergipe). Ora, uma certa psicologia supunha que as crianças preferiam vidas a fatos gerais. Sempre atraídas pelo fantástico, pelas ações dos espíritos superiores as crianças consumiriam com prazer as literaturas anedótica e biográfica. Mas, a história de Sergipe, como as histórias nacionais, também tinha função cívico-identitária. Educava-se para a família e muito mais para o estado. Daí a oportunidade de associar a experiência de grandes homens aos principais fatos da trajetória da pátria de Tobias Barreto: doação da capitania e Francisco Pereira Coutinho; a guerra da conquista e Cristóvão de Barros; as minas de prata e Belchior Moréia; o conde Bagnolo e a invasão holandesa; a ação do general Labatut e a emancipação política; Inácio Barbosa e a mudança da capital; e, por fim, Siqueira de Menezes, Oliveira Valadão e Felisbelo Freire e o trabalho de instauração da República.
E o professor, qual o seu papel? O “mestre”, sempre no masculino (ainda não se havia femininizado o magistério?), é o sujeito ativo da instrução. “Se o pai dá ao seu filho o pão material que alimenta o corpo, o mestre dá ao aluno o pão intelectual que fortifica o espírito”. Não há dúvidas, então, de que todo o “progresso” da “cultura intelectual” do aluno é “transmitido”, “altruisticamente”, pelo professor. (Montalvão, 1916, p. 89-90).
Não se omite, logicamente, o papel do aluno Gratulino. Ele é o responsável pela memorização de todas as lições. Pedacinho por pedacinho, repetidas quase que diariamente. Se a preleção, a leitura em voz alta e, possivelmente, o ditado são os instrumentos do mestre, a disciplina mental, respondendo ao interrogatório socrático, jesuítico, apenso à cada capítulo e à cada aula, é o principal recurso para a retenção da matéria, que fará dele um “bom sergipano”.
Mas, para que aprender história de Sergipe? Ora, simplesmente para que as crianças não cresçam como bestas no pasto da aldeia universal (diríamos hoje, global). Nos anos 1910, história era disciplina literalmente educativa por incutir a solidariedade, honestidade, responsabilidade, auto-controle, respeito às convenções sociais, e valorização dos produtos do espírito (literatura, ciências...). E se a transmissão desses princípios fosse acompanhada de exemplos referentes à comunidade de destino mais próxima à criança, a existência de uma disciplina escolar para o curso primário intitulada história de Sergipe estaria, portanto, mais que justificada.
E se o aprendiz se rebelar, se não introjetar as dezenas de máximas morais, terá o mestre como evitar a aplicação de castigos? Claro que não. O castigo educa. Prêmio e castigo combinados corrigem os eventuais desleixos da educação familiar. E, para identificar os puros e os ímpios, as temíveis sabatinas são oportunos instrumentos. Elas têm dupla função: servem de exercício (mental), como indicadores sobre o aproveitamento escolar para o aluno e para o professor; e atuam como ferramentas de controle disciplinar. As sabatinas são mesmo uma espécie de punição, sempre crescente e cumulativa, para o garoto, digamos, relapso. De quando em vez, não será difícil ver o despreparado colega de Gratulino fugir da escola no dia da sabatina; vê-lo castigado pelos pais, depois, pelo professor, e por último, estigmatizado pela classe como “fujão”.
Nesse lampejo de padrão pedagógico, o que pode chocar o professor do século XXI, entre outras coisas, é a obrigatoriedade de certos conteúdos de história local, é a tortura da disciplina mental e a presença dos castigos, frutos de uma compreensão “primária” do funcionamento do cérebro e da formação cultural da criança. Em contrapartida, o que amarra a ação desse crítico professor – que muitas vezes concorda com as finalidades da história prescritas por Montalvão – são as dificuldades de compatibilizar, por exemplo, respeito às diferenças individuais (cognitivas, sociais), esforço de universalização da educação escolar;  e controle disciplinar sobre cinco dúzias de ativíssimos alunos, “sociabilizados” entre as programações da TV, das emissoras de FM, e dos fins de semana nos shoppingcenters.
Diante do exposto há que se ter uma atitude mais compreensiva frente ao caráter coercitivo de antigos processos de ensino e da adoção alguns conteúdos disciplinares, como os de história de Sergipe. De Freud á Durkheim, educar (principalmente, em massa) nunca deixou de ser um ato de violência sobre um suposto indivíduo. Aprender história local poderia, em suma (e nem ainda pode) sustentar-se apenas numa demanda exterior á escola. Há de haver sempre um antipático a exigir o canto do hino de Sergipe numa manhã de sexta-feira, por exemplo. Quem quer ser o primeiro?

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. História de Sergipe para crianças. A Semana em Foco, Aracaju, p. 6B-6B, 14 dez. 2003.

Este artigo foi publicado no livro Historiografia sergipana.
Para ver sumário desta obra, acesse: < http://itamarfo.blogspot.com/2010/11/historiografia-sergipana.html >.

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