segunda-feira, 1 de janeiro de 2007

A propedêutica da História de Hennry Steele Commager (1967)

Hennry Stelle Commager em 1987.
Foto: www.commager.org.
Quem se interessar pelo estudo dos mecanismos de estruturação do ensino superior de História e da historiografia universitária brasileira, por certo deverá por os olhos no lápso de tempo correspondente a meados da décadas de 1950 e ao final dos anos 1960 como uma outra possibilidade, além dos marcos fundadores da Universidade de São Paulo e da Universidade do Distrito Federal. Justifica-se a propositura pela série de acontecimentos que marcaram significativamente o perfil do profissional de História nessa época, dentre os quais são de fácil lembrança: a separação dos cursos de História e Geografia (1956),[1] a ampliação do número de cursos de licenciatura em História,[2] a realização do Simpósio de Professores de História do Ensino Superior (1961) – com os seus conhecidos desdobramentos (a discussão sobre o conteúdo e a obrigatoriedade da disciplina Introdução aos Estudos Históricos nas Faculdades de Filosofia e fundação da Associação dos Professores Universitários de História) –, e a realização do I Encontro sobre Introdução aos Estudos Históricos (1968).[3]
Mas, essa época também guarda um outro diferencial importante, que são os modelos propedêuticos postos em jogo. É o tempo da apropriação de um certo padrão francês, configurado nas obras introdutórias de Jean Glénisson e José Van Dan Besselaar (196-) ou do modelo galo-francês, inserto na iniciação histórica de Joaquim Barradas de Carvalho. Glénisson publicou Iniciação aos estudos históricos (1961), resultante dos cursos da disciplina homônima, ministrados na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, no período 1958/1959 (Cf.Torres, 1959; Glénisson, 1966). O livro contou com a colaboração de Pedro Moacyr Campos, que escreveu um capítulo sobre a história da Historiografia brasileira, e de Emília Viotti da Costa, professora dedicada, entre outros temas, à didática de História para o ensino secundário. Da História-crônica à História-ciência, de Joaquim Barradas de Carvalho, é também uma síntese didática. Surgiu da “introdução metodológica” de cursos ministrados na segunda metade da década de 1960, na mesma FFCL/USP (Cf. MARSON,1981; CARVALHO, 1972).
O período em foco também guarda possibilidades de apropriação de experiências norte-americanas, precisamente em matéria metodológica, já que em termos de proposta interpretativa Sérgio Buarque de Holanda já se havia apropriado da idéia de “fronteira” do historiador Frederick Jackson Turner, nos anos 1930. É certo que da década de 1950 a 1970, o Brasil foi muito mais objeto de pesquisa para os brasilianistas que propriamente um espaço de trocas teóricas. Impermeáveis continuaram os historiadores brasileiros às abordagens das centenas de doutorandos que por aqui aportaram no período (Cf. OLIVEIRA, 2000, p.19-45). Mas, não se pode esquecer também que outras entradas podem ter sido possíveis para a importação de alguns pressupostos metodológicos em voga nos EUA, ainda que tais experiências tenham sido originalmente sintetizadas das matrizes alemãs, pelos historiadores norte-americanos desde meados do século XIX ao pré II Guerra Mundial (cf. NOVICK, 1998, p. 21-46). Neste mesmo local, a Alemanha, também foi beber a historiografia universitária francesa, no final do século XIX (BURDÉ e MARTIN, s/d. p. 113-114; CARBONELL, 1983, p. 98). Dessas possibilidades de apropriação, conhecemos a construção de uma obra introdutória às regras do ofício – Teoria da História do Brasil, elaborada por José Honório Rodrigues (1949/57/69) e a tradução do The nature and study of history, de Hennry Steele Commager (1965), construída a partir de exemplos colhidos da prática historiográfica norte-americana. Essa comunicação trata, portanto, desse último manual, e tem o intuito, apenas de tornar menos desconhecida a experiência da propedêutica da História disposta no mercado brasileiro para os cursos superiores de História nas faculdades de Filosofia, da década de 1950 ao final dos anos 1960.
***
Teoria da História do Brasil (1949) foi o nosso primeiro grande manual de "Introdução à História". Ele é fruto dos contatos de José Honório Rodrigues com a metodologia dominante na historiografia norte-americana no período em que foi contemplado com uma bolsa de pesquisa oferecida pela Fundação Rockefeller (1943/1944). Na Universidade Colúmbia, José Honório participou do curso "Nature, Methods and types fo History" dirigido por Charles Cole tendo como colaboradores os professores Henry Steele Commager, Jacques Barzum e Allan Nevins. O livro, que discute questões como o significado da palavra história, a cientificidade da disciplina, periodização, fontes, gêneros, ciências auxiliares e metodologia, resulta do entusiasmo despertado pelo curso e do seu desejo em "tentar reformar o ensino superior de história" no Brasil (RODRIGUES, 1985, p. 16). Há registros da recepção dessa obra no curso de graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Teoria aparece como leitura básica nos programas do início da década de 1970 em disciplinas do curso de História, notadamente em Introdução aos Estudos Históricos I e II, conjulgada, por exemplo, com a Introdução aos estudos históricos de José Van Den Besselar (CIAMPE, 2000, p. 219 e 222).
Quanto ao manual norte-americano, cujo título no vernáculo é Iniciação ao estudo da História, pouco coletei sobre sua acolhida no Brasil, além da resenha produzida por Odilon Nogueira Matos (1970) na Revista de História. A introdução circulou em primeira edição no ano de 1965. É um dos seis títulos da coleção "Social Science Seminar Series", organizada por Raiymond H. Muessing e Vincent R. Rogers. Além de História, os livros dessa série ocupavam-se de Sociologia, Economia, Ciência Política, Atropologia e Geografia. Todos os autores, exceto Commager, estavam ligados à Universidade de Minesota e os consultores – um para cada obra, excetuando-se os trabalho de História e Geografia – faziam parte das Universidades de Michingan, Indiana e Stanford.
O professor Henry Steele Commager, à época do lançamento do manual, lecionava História e Estudos Americanos na Escola Amherst. Formou-se em Chicago (1928), ensinou nas universidades de New York (1926/1938) e Columbia (1938/1956). Commager viveu de 1902 a 1998 e foi professor por 65 anos. Destacou-se também pela numerosa produção de títulos sobre a Guerra Civil norte-americana, Segunda Gerra Mundial, a República, o pensamento e ação de homens como A. Lincoln, T. Jefferson, a Constituição, a democracia americana, e o caráter nacional. Além disso, atuou na edição de mauscritos ligados à história política e na produção de livros didáticos – as fomosas História dos Estados unidos em formato de bolso. Hoje, o significado da produção de Commager para a comunidade norte-americana pode ser aferido pelo número de publicações em catálogo: são mais de cinquenta títulos em circulação.
Muitos desses trabalhos foram produzidos em co-autoria com escritores consagrados pelo grande público como Samuel Eliot Morison: curiosamente, o mesmo Morison que, no início dos anos 1950, fazia pouco caso da importância dos cursos de metodologia histórica (cf. Morison, 1951, apud. Torres, 1959, p. 148). Mas, há outra grande referência menos heterodoxa acerca do universo de gravitação intelectual de Commager. Trata-se do historiador Allan Nevins, a quem o autor dedica "com graditão, admiração e afeição" a sua Iniciação ao estudo da história. Esta cumplicidade parece vir de longa data. Registre-se que esse mesmo Nevins atuava com Steele Commager no curso "Nature, Methods and types to History", dirigido por Charles Cole, do qual participou José Honório Rodrigues (Universidade de Colúmbia, 1943/1944). Sobre Nevins, há testemunhos do seu alinhamento teórico-metodológico ao "sonho nobre" do historiador norte-americano, da passagem do século XIX para o século XX. Sua obra, The Gateway to History (1938), apresenta forte oposição às propostas do polêmico Charles Beard acusado por Nevins de promover “uma epistemologia perniciosa” (Novick, 1996, p. 258). De fato, Nevins estava bem próximo das teses de historiadores como Teodore Clark Smith (1934) e C. H. Mcmillwain (1936), que da American Historical Association repudiavam as proposições relativistas, acusando os principais heréticos – Beard e Becker – de demolidores da precípua função do historiador, que era a busca da verdade objetiva.
Saindo desse emaranhado de concepções de ensino e ofício – propedêutica histórica versus “cammon sense”, objetividade versus relativismo – importa agora situar a o manual em seu “lugar de produção”. Segundo Novick, na década de 1950 "as exitações da esquerda eram menos problemáticas para o estabelecimento da política interna do que a beligerância da direita", representada principalmente por MacArtur, do Partido Republicano, e o senador Joseph R. McCarthy" (NOVICK, 1996, p. 306). No momento de sua morte, Commagger foi citado pela CNN como um dos primeiros opositores das campanhas empreendidas por este senador. As pregações antimacarthistas são explícitas na sua História dos Estados Unidos. Aí o autor lamenta a perseguição sofrida por muitos "patriotas liberais", protesta contra o autoritarismo do senador "ultra-nacionalista” e contra a moda do "americanismo cem por cento", em voga desde os finais de 1940. Em Iniciação ao Estudo da História, há indícios de antimacartismo nas alusões em que rebate o nacionalismo "chauvinista": (...) tôda idéia de personalidade nacional é romântica e provavelmente perniciosa.” De todos os padrões que impusemos à história, “o nacional é o mais poderoso, o mais difundido, talvez o mais nocivo" (COMMAGER, 1967, p. 38 e 67).
Talvez também se possa aproximar Commager do chamando movimento revisionista, intitulado por Gerson Moura de “Estudos americanos”: uma tendência que punha em causa inclusive os mestres da história progressista ou "nova história"- Frederick Jackson Turner, Charles Austin Beard e Vernon Parrington. Em História de uma história Gerson Moura caracteriza esse movimento como "menos empenhado na reforma social e muito mais ligado à identidade nacional, menos afeito à mudança e muito mais preso à continuidade, menos apegado ao conflito de interesses, e muito mais interessado o consenso de valores.” (...) De modo crescente, continua Gerson Moura, “matizou-se a causação econômica, e deu-se maior relevo ao papel das idéias e valores" (MOURA, 1995, p. 38). E essa característica é expressa nas temáticas dos mais mais importantes livros de Commager.
Ora, mas que tipo de introdução à História esse senhor nos legou? Ou melhor, que espécie de propedêutica, vertida em português, foi chacelada por Commager para circular no Brasil do final dos anos 1960?

A propedêutica de Hennry Steele Commager
A Iniciação ao Estudo da História está estruturada em cinco breves capítulos: I) A natureza da História; II) As variedades de História; III) O estudo da História; IV) Alguns problemas da História; V) A História como Direito e como Filosofia. Nos próximos parágrafos resumo as idéias expressas no manual mantendo a ordem original de cada segmento. Em seguida, comento alguns pontos que considero fundamentais para o estudo dessa forma de literatura frequentemente utilizada nos cursos de Introdução à História.
O primeiro capítulo é aberto com o clássico problema da polissemia da palavra história. Ela pode significar o passado [a experiência humana] e também a lembrança desse mesmo passado. A história, conhecimento produzido, é a lembrança organizada desse passado. E neste sentido, a sua prática requer o cumprimento de três etapas: coligir os fatos; organizá-los; e interpretá-los. As duas primeiras exigem do historiador "bom senso" e "julgamento"; a última, "inteligência de alto nível". A história, ainda conhecimento produzido, configura-se sob várias formas: a narrativa – o historiador como um contador de "estória" (Ulisses, Heródoto, Motley e Parkmam); o registro do que no passado "aconteceu realmente. Os registros conservam muitas limitações: não existem na mesma proporção para épocas e povos diferentes, além de serem sempre confusos e tendenciosos. A história também toma a forma de literatura, explorando o estilo e tentando "recriar o passado" em si mesmo; e de filosofia, que ensina através de exemplos, transmitindo lições de moral. A última forma da história é a técnica: "o historiador científico... quer excitar é a razão e não a imaginação. Assim, em relação ao passado, não quer recriá-lo, mas explicá-lo." (COMMAGER, 1967, p. 11-28).
Com o título “As variedades da História”, o autor disserta sobre as diferentes modalidades de narrativa. O cinema e a televisão sugerem algumas experiências, embora as mais indicadas sejam aquelas conhecidas há séculos: o padrão cronológico – que deve precaver-se contra a rigidez dos marcos, o anacronismo, e a arbitrariedade dos períodos e eras; geográfico – livrando-se do eurocentrismo e do determinismo; político – fugindo de patriotismos chauvinistas; cultural – absorvendo as contribuições da Antropologia cultural (os novos estudos sobre as características nacionais, e a democratização da história); e o biográfico – evitando-se o personalismo, a simplificação de problemas complexos e a interpretação da experiência humana como circunscrita em compartimentos isolados (política, religião, economia, etc.) (idem, p. 29-43).
O manual de Commager reserva um grande espaço para sugestões de leitura aos aprendizes do ofício. Diz ele que a leitura da história obedece algumas regras: deve-se estudar os temas e épocas que atraíram a atenção de grandes literatos, eruditos e historiadores; ler aquilo que dá prazer ou estímulo intelectual; ler sistematicamente e de forma orientada partindo-se sempre do particular para o geral. O leitor pode ainda conhecer bastante sobre a história social de um período ou lugar lendo romances históricos. (idem, p. 44-56).
Quanto á escrita da história, as prescrições referem-se à integridade do historiador (honestidade) com os seu próprios conceitos, luta contra preconceitos, visão plural sobre o objeto, a precaução de esgotar os recursos da pesquisa antes de concluir, e humildade no julgamento. A diligência – paciência, persistência durante a pesquisa, imaginação – que é um dom, e bom senso completam o conjunto de atributos. Mas, antes de por-se à obra da escrita é necessário escolher um tema, tarefa que também deve observar alguns critérios básicos. O primeiro deles diz respeito às condições de de exequibilidade: informar-se da existência, acesso, e quantidade de fontes, e bom senso nas opções. A regra aponta que não se deve escolher temas esotéricos e nem demasiadamente conhecidos. Acima de tudo, é importante escolher um assunto que conte com a simpatia do pesquisador. Depois da escolha, deve-se ler em profundidade e somente o que estiver relacionado ao tema. Deve-se reunir e organizar as fontes consideradas essenciais. É também aconselhavel estar em contato direto com os documentos, pois o ato de copiar facilita a memorização, além de estimular o surgimento de hipóteses originais. Ademais, é preciso ter em mente que a escrita do historiador deve refletir o seu estilo mas este pode variar de acordo com a matéria que está sendo produzida. (idem, p. 56-63).
O capítulo quarto da Iniciação tem caráter epistemológico. Trata das limitações do ofício. Commager entende que o historiador é um escravo das suas fontes. Depende do acaso para conservá-las e delas fazer uso. Como se não bastasse o acaso, as fontes sempre são parciais e fragmentadas. E o historiador ainda enfrenta problemas sugeneris como: o fetichismo dos registros escritos, a sedução pelo dramático e espetacular, e a tendência em explorar o que lhe é familiar. Por esses motivos, não raramente, comete anacronismos. O seu grande empecilho, todavia, é mesmo a impossibilidade de observar os eventos passados. Esse  risco de imobilizar-se diante do trabalho não decorre tando do desejo de transportar-se ao passado, mas por tentar entender a experiência humana como regulada por Deus, pelo progresso ou por intermédio da evolução (idem, p. 64-70).
Outro problema: os fatos são fragmentários. São abundantes sobre a Europa, por exemplo, e escassos sobre a África. Os fatos são enganosos, inexatos; e são subjetivos, polissêmicos. Isso é bastante para o que o autor afirme enfaticamente: os documentos não falam por si e "não contam o que realmente aconteceu, mas o que queremos ouvir." No entanto, nada impede que os historiadores partam dos fatos para narrar o passado – assim como parte-se da gramática e da semântica para se estabelecer a língua. (idem, p. 70-76).
A intepretação e a parcialidade também são limitações tematizadas por Commager. Ele afirma que alguns historiadores chegaram a fazer da parcialidade uma virtude (Treitschke[v], Beard), outros, como Acton, a condenaram. Mas, não há como fugir do partidarismo, da subjetividade, da propaganda e da idiosincrasia, posto que todos os historiadores "são criaturas do seu tempo, raça, fé, classe e país." Há, porém, uma parcialidade abominável, devido ao seu caráter generalizador e egocêntrico: o nacionalismo (idem, p. 77-86). Da interpretação, segue-se o problema do julgamento na História. Ranke e seus sucessores eram contrários ao julgamento enquanto Michelet, Treitcshke e Motley não distinguiam a função de líder ético ou estudioso da história. Toynbee chegou a pregar a existência de leis morais universais e intemporais (e o respeito que o historiador deveria lhes prestar). Beard optou pelo julgamento por razões psicológicas, assumindo a inevitável subjetividade do trabalho do historiador. De fato, também existem sérios argumentos contra o julgamento moral, dentre os principais estão: 1) a idéia de que os padrões morais são socialmente construídos. Daí, sermos levados a pensar que a tarefa do historiador não é julgar e sim compreender; 2) o historiador não é Deus, é um ser socialmente condicionando, não podendo libertar-se dessa característica; 3) o leitor não depende do historiador para elaborar a sua consciência moral. Esses argumentos não impedem, porém, que o historiador possa valer-se de um tipo de julgamento para fazer as suas afirmações: o julgamento profissional. (Idem, p. 86-100).
O quinto e último capítulo do manual trata dos fins da História, de problemas como a causalidade, a existência de leis, e a da relação da escrita da história com a Filosofia da História. Sobre os fins, o autor afirma que a história "não serve a coisa alguma que possa ser pesada, medida ou contada", mas sem ela "a vida seria mais pobre e de menor significação". Ela nos oferece o prazer de alargar a nossa experiência de vida; nos possibilita a companhia de personagens destacados "em nossa viagem pela vida"; ela acrescenta nova dimensão a lugares e fatos que nos parecem corriqueiros à primeira vista. Entretanto, para usufruir desses prazeres é preciso ter imaginação e saber cultivá-la. Isso se procede por intermédio da leitura do drama, da poesia, do estudo da arte e da arquitetura. (idem, p. 101-110).
A causalidade na história é buscada há dois mil anos por filósofos e historiadores. Mas, foi somente a partir do século XVIII que ela transformou-se num problema efetivo. Neste período, surgiram as teorias cíclicas, a idéia de que o universo é regido por leis mecanicistas, a determinação do meio ambiente, a determinação da geografia e da força (econômica, religiosa, energética). Recentemente, surgiram as propostas de que o progresso, a evolução, e as leis da história que explicariam o passado e prediriam o futuro. (idem, p. 110-116). Quanto às leis na História, já houve tentativas de extraí-las, no século XX, nos EUA (Henry Adams, Edward P. Chynney). Os resultados, entretanto, não responderam a problemas simples colocados pelo historiador. Diante dos insucessos, a explicação inverteu-se e ganhou força o papel exercido pelo acaso na história. Essa situação deve em muito ser matizada. Está bastante claro que a vida é um fluxo caótico. Mas, historiador, se quizer narrá-la, terá que imprimir uma certa ordem. Para escapar aos extremos (caos/regularidade) o historiador deve usar o bom senso evitando o reducionismo, aceitando a causalidade múltipla ou resignando-se ao fato de que ainda não se pode tudo explicar. (idem, p.116-122).
 A última parte do manual tematiza a Filosofia da História, enfrentando o problema da ambiguidade da expressão: tanto pode significar filosofia imposta à interpretação da experiência quanto a filosofia estraída do estudo dessa experiência. O primeiro sentido – dedutivista, é problemático, já que nenhum homem tem o direito e o poder de elaborar um plano, exigindo que o mesmo seja obedecido pelo processo histórico. O segundo sentido – indutivista, é empregado ao resultado de um exame prolongado sobre um determinado tema ou período em busca de exemplos de condulta. Assim, a "história é a filosofia ensinando pelos exemplos” e ela realmete ensina pelo exemplo, mas "ensina o que os historiadores – ou mais frequentemente os que estão no poder – querem ensinar." O importante mesmo é que a história ensina a tolerância, a necessidade da liberdade, e ainda, que o homem não é produto de leis e nem vítima do acaso: o indivíduo também importa, assim como "o caráter de um povo" – fundado não somente nas conquistas de poder mas nas coisas do espírito e da mente (idem, p. 122-130).

Objetivistas versus relativistas
Iniciação ao Estudo da História é um manual e como tal tem a tarefa de tornar simples, inteligíveis os grandes problemas enfrentados por aqueles que querem produzir conhecimento histórico. Grosso modo, pode-se resumir todo o enunciado da Iniciação em três grandes questões: o que é, como se faz e para que serve a história.
A resposta dada pelo autor à primeira questão – a história como uma lembrança organizada do passado – vai além da definição pura e simples e aponta uma proposta epistemológica. Assim mesmo, uma grande problema se impõe: a confusão entre os três significados expressos para a palavra "história" (a lembrança organizada; todo o passado; e um ramo da literatura). Embora tenha descartado de início o segundo sentido, continua a utilizá-lo sem qualquer diferenciação (um travessão, parênteses, "h" minúsculo etc.) o que dificulta sobremaneira o entendimento do iniciante sobre a natureza do conhecimento histórico, os traços característicos do olhar do historiador diante dos demais profissionais que lidam com a expressão, com a narrativa da experiência humana.
Quanto ao “como se faz”, há uma nítida confusão entre gêneros e possibilidades de exposição. Ao relacionar o "padrão" cronológico, geográfico político, cultural e biográfico deixa subentendido como gênero e/ou plano de exposição uma questão muito mais séria que envolve teoria-método e acaba por não explicar o que seriam cada um desses elementos – embora informe das implicações de cada escolha.
Em "como se estuda" há também uma outra questão: a leitura orientada pelo gosto e interesse dos grandes literatos, eruditos e historiadores sem ao menos discutir porque e quem são essas "mentes e talentos de primeira qualidade" indica uma certa idéia de historiografia descolada do presente ou pelo menos, das questões de interesse do próprio iniciante à disciplina, como prega o próprio autor.
Outro ponto destacar diz respeito a estatus do historiador. Apesar de estar em pleno exercício acadêmico, Commager não faz dessa prática um pré requisito para identificar determinado autor como historiador. A sua definição e demasiadamente ampla. Para Commager "devemos reservar o têrmo àqueles que se empenham em reconstituir e apresentar alguma especialização, como algo mais que um passatempo." (COMMAGER, 1967, p. 28).
Um último problema a ser colocado é o tema do "sonho nobre", o sonho da objetividade histórica. Depois de sugerir uma posição crítica de Commager em relação aos historiadores progressistas – e mesmo sabendo que alguns manuais não aprofundam deteminadas questões epistemológicas, findando por transmitirem uma visão didático-pluralista acerca dos maiores problemas da historiografia – seria interessante verificar como o autor se posiciona a respeito da questão. Já foi referido o oferecimento do manual ao historiador Alan Nevis. Foi esse mesmo Neves em The Gatway to history (1938) um dos que dispararam contra os relativistas, gerando de Charles Beard a famosa resenha "The noble dream" (NOVICK, 1996, p. 259). É oportuno, então, comparar as conclusões desse manual, que aparentemente circula na mesma episteme de Alan Nevins, às respostas do quase manifesto de Beard.
A primeira atitude de Commager em relação a Beard é de ironia, basta ver os seus comentários às teses sobre a parcialidade pregados pelos relativistas:
Coitado do pobre historiador. Êle é a vítima e o prisioneiro das circunstâncias, da Natureza e da natureza humana. Nem Santo Antônio foi exposto a tantas tentações. Se êle é um homem moderno, então como poderá entender o homem medieval? Se é europeu, como poderá realmente entender e fazer justiça ao mundo asiático ou africano – ou mesmo americano? Se é branco, como poderá realmente entender as pessoas de côr que constituem três quartos da raça humana? (idem, p. 78)
Apesar das farpas, o resultado da comparação entre as teses de Beard e Commager é simplesmente curioso. Vejamos como se comportam os dois autores em relação a algumas questões cruciais da produção do conhecimento histórico.
Sobre as diferenças epistemológicas entre a história e as ciências naturais Charles Beard é enfático: o historiador não é um observador do passado que permanece fora de seu próprio tempo. Não pode vê-lo objetivamente, como o químico vê seus tubos de ensaio. O historiador deve "ver" a realidade da história por intermédio da documentação, o seu único recurso. Os acontecimentos e personalidades da história, por sua própria natureza, envolvem considerações éticas e estéticas. Não são meros acontecimentos da física ou da química, que propiciam a neutralidade por parte do "observador". Para Commager, a a História não é uma ciência como a Química e a Biologia. Não pode submeter seus dados a experiências científicas, não pode repetir suas próprias experiências, e não pode controlar seu material (idem p. 26 , 93).
Sobre a impossibilidade de se conhecer todo o passado ambos são céticos: Beard entende que “a história, como realmente aconteceu” (sem levar em contra, é claro, os seus aspectos particulares), não é conhecida ou cognoscível, não importa quão escrupulosamente seja perseguido "o ideal do esforço pela verdade objetiva". Commager argumenta sobre a impossibilidade de colocarmo-nos na mente ou na pele de Ciro, Brutus, Joana d’Arc ou do chefe indígena Pontiac (idem, p. 68). Esse mesmo historiador tem como certa que a história é um enredo produzido pelo escritor: “a paixão pela ordem é a doença profissional do historiador". ...A organização sempre comete alguma violência ao fluxo do pensamento ou caos do comportamento que é a vida... A história é uma selva de acidentes, ciladas, surprêsas e absurdos, e assim é o nosso conhecimento dela, mas se devemos relatá-la devemos impor-lhe uma ordem” (idem, p. 119). Ao que concorda Beard, afirmando que a idéia de uma completa e real estuturação dos acontecimentosno passado, a ser descoberta por meio de um exame parcial de uma documentação parcial, é pura hipótese.
Da falência dos modelos dedutivistas de explicação da experiência humana, o primeiro advoga que qualquer hipótese ou concepção de maior alcance, empregada para dar coerência e estrutura aos acontecimentos passados na história escrita, é, de alguma forma, algo transcendente. E, “como diz Croce, transcendência é transcendência, seja ela considerada como de Deus ou da razão, da natureza ou da matéria.” Essa posição está próxima à de Commager, que ironicamente comenta: alguns vêem a mão de Deus, do Progresso ou da Evolução em tudo o que triunfou e em tudo o que falhou. Nada, certamente, é mais fatal à integridade da investigação histórica do que a doutrina da inevitabilidade implícita nessa atitude” (idem, p.69).
Para finalizar essa seqüência, vejamos o que dizem ambos acerca da parcialidade do historiador e da relatividade das conclusões deste profissional. Para Beard, o historiador, procurando conhecer o passado ou algo sobre ele, não leva à documentação parcial com que trabalha uma mente neutra, perfeita e polida, na qual o passado (por intermédio da documentação) é espelhado como realmente ocorreu. Quaisquer que sejam os atos de purificação aperfeiçoados pelo historiador, ainda assim ele permancece humano, uma criatura de seu tempo, lugar, circustância, intereses, predileções, cultura. Commager acredita que não há ponto de vista "correto". O que está claro para ele é que, “por mais que tentem, os historiadores vêem o passado através dos olhos do presente (...). O historiador, ...é uma criatura de sua raça, nacionalidade, religião, classe, de sua herança e sua educação, e não pode jamais libertar-se dessas influências de formação e conquistar a imparcialidade olímpica” (idem, p. 86, 97).

Considerações finais
Vê-se, então, que os fragmentos das obras de Beard e Commager apresentam curiosa semelhança em pontos estratégicos para as duas tendêncas historiográficas. Ambos concordam acerca das especificidades, problemas, limites, do conhecimento histórico; ambos sublinham o papel do historiador no processo de enredamento e tecem severas críticas à idéia de uma “verdade histórica”. Mas deve-se ressaltar que, apesar de idênticos, tais discursos não dizem a mesma coisa. O fundamento da semelhança está no fato de os dois autores lutarem pela continuidade e reprodução do saber histórico e pela preservação do ofício. Constatada a comunhão de importantes regras metodológicas, seria sensato conjecturar: os manuais destinados à disciplina Introdução aos Estudos Históricos carregam significativas doses de lugares comuns, independentemente dos “lugares” em que são constituídos? Os livros que didatizam os rudimentos da ciência histórica seriam elaborados por processos semelhantes aos dos livros didáticos da História disciplina escolar? Essa questão nos estimula a examinar de perto os livros introdutórios produzidos por matrizes da França, Portugal e Inglaterra e difundidos no Brasil entre as décadas de 1950 e 1970.
Além de estimular a elaboração de uma hipótese, a comparação entre o texto-documento de Charles Beard e o manual introdutório de Commager oferece entradas para se pensar os “lugares” de produção e as formas de apropriação das obras propedêuticas de José Honório Rodrigues e do póprio Hennry Steele Commager no Brasil e geram novas questões. O fundamento da diferença entre Beard e Commager, expressa-se, sabemos hoje, nos “lugares” de fala, marcados pelas transformações institucionais e políticas pelas quais passou a sociedade americana no pré e pós II Guerra Mundial: o primeiro tempo, caracterizado pela pluralidade ideológica, pela incerteza, e pelo relativismo – teria José Honório Rodrigues aproximado-se dessa ambiência? No segundo período – pós-guerra – dominariam os vetores da afirmação, da unidade nacional, da luta pela formação do consenso e pela recuperação da objetividade, cabendo então uma segunda interrogação: os historiadores universitários brasileiros deveriam alguma coisa à historiografia norte-americana em tal sentido? É esse conjunto de questões, que tentarei investigar nos próximos exames dos manuais que circularam entre os marcos da autonomização dos cursos de História e de Geografia e a montagem dos programas de pós-graduação na área de História.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A propedêutica da História de Ennry Steele Commager no Brasil (1967) In: III Seminário Internacional em Educação - A pesquisa em Educação: Abordagens e a Questão da Inclusão, 2007, São Cristóvão. III Seminário Internacional em Educação - A Pesquisa em Educação: Abordagens e a Questão da Inclusão Social. São Cristóvão: Núcleo de Pós-Graduação em Educação/Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação, 2007.

Fontes da imagem
Henry Still Commanger em 1987. <http://www.commager.org/>. Acesso em: 8 dez. 2010.

Referências bibliográficas
BEARD, Charles A. That noble dream. The American Historical Review, New York, n. 41, p.74-87, out. 1935.
BOURDÉ, Guy e MATIN, Hervé. As escolas históricas. [Mira-Sintra]: Europa-América, [19--].
CARBONELL, Charles-Olivier. Histoire et historiens, une mutation idéoloqique des historiens français – 1865/1885. Toulouse: Privat, 1976.
_________. Les proffesseurs d’histoire de l’enseignement supérieur em France au début du XXe. siècle. In: CARBONELL, Charles-Olivier e LIVET, Georges. Au beuceau des Annales: le milieu strasbourgeois – l’histoire em France au début du XXe. siècle. Toulouse: Presses de l’IEP, 1983. p. 89-104.
CARVALHO, Joaquim Barradas de. Da História-crônica à História-ciência. Lisboa: Livro Horizonte, 1972.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense-universitária, Lisboa: DIFEL, 1990.
CIAMPE, Helenice. A História pensada e ensinada: da geração das certezas à geração das incertezas. São Paulo: EDUC, 2000.
COMMAGER, Henry Steele. Iniciação ao Estudo da História. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
De PAULA, Eurípedes Simões. Noticiário. Revista de História, São Paulo, v. 12, n. 25, p. 285-286, jan./mar. 1956.
GLÉNISSON, Jean. Introdução. In: Iniciação aos Estudos Históricos. 6 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991.
LAPA, José Roberto do Amaral. A institucionalização do saber. In.: História e Historiografia: Brasil pós-64. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p. 35-36.
MARSON, Adalberto. A presença de um mestre: Joaquim Barradas de Carvalho. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 285-288, set. 1981.
MATOS, Odilon Nogueira de. Resenha de: COMMAGER, Henry Steele et. al. Social Science Seminar Series. Columbus: Charles E. Merril Boocks, 1965. Revista de História, São Paulo, v. 21, n. 83, p. 241-243, jul./out. 1970.
MOURA, História de uma história: rumos da historiografia Norte-americana no século XX. São Paulo: Edusp, 1995.
NOVICK, P. That Noble Dream: The “objectivity question” and the historical profession. Cambridge: Cambridge University Presss, 1996.
RODRIGUES, José Honório. História, corpo do tempo. São Paulo: Perspectiva, 1985.
SILVA, Maria Manuela R. de Souza. Os historiadores e a escrita da história nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 1998. (mimeo).
TORRES, Emília Lemos. Metodologia da História. Boletim de História, Rio de Janeiro, n. 4-5, p. 147-153, jul./dez. 1959.


Notas
[1] O desdobramento do “Curso de Geografia e História” em “Curso de História” e “Curso de Geografia” foi regulado pela lei federal n. 2.594, de 8 de setembro de 1955. No Estado de São Paulo, o decreto n. 25.701, de 4 de abril de 1956 regulamentou a referida lei em relação à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (De Paula, 1956, p. 285).
[2] O caso de São Paulo é ilustrativo. A partir da a interiorização sistemática do ensino superior, por intermédio das faculdades de Filosofia, o curso de graduação em História ganhou dois novos pólos: Marília, em 1959, e Assis, em 1963. Com esses cursos, foram instituídas as revistas Estutos Históricos (Marília – 1963/1967) e Anais de História (Assis – 1968/1976) (Lapa, 1985. p. 35-36).
[3] O Encontro sobre Introdução aos Estudos Históricos foi realizado em julho de 1968, em Nova Friburgo, por iniciativa da Universidade Federal Fluminense. Os Anais do evento constituem rico painel do estado da disciplina Introdução aos Estudos Históricos no primeiro decênio de sua instituição.