segunda-feira, 1 de janeiro de 2007

Sete notas sobre quadrilhas juninas em Aracaju (4) - O traje

Quando comecei a acompanhar as quadrilhas, eram comuns os trajes improvisados, com remendos coloridos sobre o cutim e, até, sobre o brim para a roupa dos cavalheiros. Chapéus de palhinha bem formatados ou desfiados. Chapéus em estilo vaqueiro texano. Até sombreiros mexicanos faziam sucesso. Lembro mesmo de barbas e bigodes feitos a carvão. Nas damas, maquiagens carregadas de rouge, pó, batom. Pequenas pintas negras, nas bochechas ou próximas ao nariz.
Entretanto, como dizem os quadrilheiros de gerações passadas, isso foi em outro tempo. A prática de cobrir-se com remendos e de carregar na maquiagem sobrevive apenas em atitudes satíricas relacionadas à quadrilhas e em casamento de tabaréus. Em quadrilhas travestidas, tanto de homens quanto de mulheres, como a Quadrilha Guerra dos Sexos, do Conjunto Habitacional D. Pedro I, em 1985 ou, ainda, em alguns bailes da terceira idade.
A máxima de Joãzinho Trinta - a respeito da necessidade do brilho nas escolas de Samba do Rio de Janeiro - de que “intelectual é quem gosta de miséria”, já foi bastante repetida por alguns marcadores das chamadas grandes quadrilhas em defesa dos trajes trabalhados. Mas, ouvi também de gente que não conhecia Joãozinho Trinta que a Quadrilha “é dança de casamento na roça” e que “ninguém vai para um casamento remendado”. Portanto, justificativas não faltam para a mudança ocorrida nos últimos anos nos modos de vestir dos grupos.
Até mesmo entre as quadrilhas mirins, sejam elas de escolas ou associações, o traje vem sendo mais elaborado, embora não alcance, no caso das damas, o padrão uniforme dos grupos de adulto. Prova disso, é o drama enfrentado pelos pais com as despesas no mês de junho. Um gasto semelhante ao das festas do sete de setembro e do natal.
Houve, portanto, uma mudança significativa nos anos 1980 em relação ao traje. Pode-se até falar em esgotamento do protesto satírico apresentado em forma de remendos e caricaturas. Mas, essa mudança está relacionada ao acirramento das disputas entre os grupos, com o peso do item traje, nos regulamentos dos concursos.


***


A exemplo da coreografia e das músicas de entrada, o motivo do tecido e o modelo das roupas são uma espécie de segredo de Estado. São guardados, a sete chaves, tanto os croquis, como os seus criadores e as costureiras. O rito é iniciado com a compra do tecido. Tenta-se encontrar uma loja que garanta a exclusividade da peça e inicia-se uma intensa conspiração buscando-se descobrir o figurino da Quadrilha adversária. Não são raros os casos de aparecerem quadrilhas com modelos e fazendas idênticas numa mesma temporada.
Esta disputa não se restringe ao momento atual, onde a tônica dos figurinos é constituírem-se verdadeiros fardamentos de damas e cavalheiros. A competição foi deslocada do campo individual, entre as caipiras do mesmo grupo, para o campo coletivo, entre as quadrilhas. Havia, até os anos 1980, aproximadamente, um verdadeiro concurso entre damas na disputa pelo elogio do melhor vestido. Se por um lado o grupo ganhava em variedade de motivos – colorido resultante da criatividade de cada dama ou costureira, o grupo perdia em conjunto. Com as diferenciações de gosto ou de possibilidades financeiras, era esperado que vestidos curtos ou longos, decotados ou mais recatados, de cores vivas ou sóbrias fossem agrupando-se lado a lado, nem sempre incorrendo em combinações agradáveis aos olhos de assistentes e jurados.
A vestimenta dos homens obedecia padrão não muito diferente do atual: calças compridas, geralmente de cutim, com cores sóbrias; rolós, jaquetas, chapéus, jabiracas, e camisas de mangas compridas. Estas últimas, variavam na cor e nos motivos, como acontece nos grupos de hoje.
Para o lamento de muitos, a uniformização das quadrilhas, que vinha evitar as citadas aberrações estéticas, tornou-se um elemento empobrecedor, já que fez desaparecer do elenco, as figuras da Rainha-do-milho, noivo e noiva, e suas vestimentas costumeiras. A primeira, de verde e amarelo, com cetro e coroa, e os últimos, vestidos a caráter, num branco impecável.
Um fato curioso a registrar nessa virada é o contato com figurinistas profissionais na elaboração dessa indumentária. Isto se deu por volta de 1982, quando quadrilhas como a Unidos em São João, influenciadas, entre tantos motivos, pela produção que se fazia no carnaval, aceitaram a colocação destes profissionais que viriam acrescentar um pouco de brilho, uma melhor combinação de cores e cortes modernos.
Esse fato foi amplamente criticado por grande parte do movimento quadrilheiro. Era “uma vaidade desnecessária, uma intromissão absurda, uma covardia” em relação às quadrilhas de menor porte. Vem desse evento também, o reforço à uniformização dos grupos.
Tempos depois, quando se pensava que, diante das críticas, essa tendência iria desaparecer, ocorreu exatamente o contrário: a “alta costura” invadiu as quadrilhas pela porta dos fundos. Figurinistas, havia poucos na cidade. Além de cobrarem pelo serviço – o que, praticamente, inviabilizava o convite para as quadrilhas menores –, os profissionais trabalhavam por afinidade aos quadrilheiros, tornando-se exclusivo do grupo A ou do grupo B. Conclusão: os quadrilheiros não beneficiados iniciaram um processo de imitação de modelos – de vestidos, principalmente – que “degenerava” a criação dos profissionais em sub-modelos, nem sempre harmônicos.
Houve, numa primeira etapa, um processo de recriação à procura do novo e do moderno, de maneira um tanto urgente. Num segundo momento, a cidade viu nascer, de um ano para outro, dezenas de figurinistas recrutados entre os membros dos grupos ou da comunidade, que tanto poderiam ser costureiras, marcadores, damas ou qualquer pessoa que gostasse de Quadrilha e tivesse jeito com a arte do desenho.
Tradicionalmente, a vestimenta carrega características fixadas através décadas. Nos homens, as poucas variações – sobre o que já foi descrito – ficam entre o que deve cobrir a cabeça: se chapéu de vaqueiro nordestino – sem abas e de couro cru –, de vaqueiro sulista ou texano – com abas de feltro, couro ou palhinha. Há também a alternativa de se dançar sem chapéu.
Nas damas, os vestidos conservam babados – com fazenda – e laços nas costas. Por baixo do vestido são comuns os calçolões, liberando o movimento das damas com as saias. Como calçados, são utilizadas as famosas periquitinhas.
Hoje, os motivos das fazendas já não importam muito. Podem ser florais, geométricos, figurativos, etc. O que importa mesmo é a sua cor, a textura – que facilite o movimento – e a combinação que se faz entre os tecidos. Gasta-se muito para fazer um vestido. Contando-se os bicos, rendas, murins para os calçolões, uma peça dessas não sai por menos de dois terços de um salário mínimo, incluindo-se o trabalho da costureira. Para os homens, a despesa fica em torno de um terço do mínimo. O homem tem a vantagem de utilizar o roló e o chapéu por mais de cinco anos.
Há outro fato interessante. Por mais vitorioso que tenha sido o traje, ele nunca é empregado no ano seguinte. O seu uso vai de junho a maio do outro ano, quando se dão os últimos preparativos de um novo lançamento. O que pode parecer aos outros uma insensatez econômica significa a sorte de vários elementos dependentes dessa farra do novo. São os comerciantes de tecidos e calçados, de rendas e aviamentos para costura, e as costureiras quem mais agradecem.
Se até aqui pode-se notar a quantidade de dinheiro movimentado nos festejos com as quadrilhas, imaginem o esforço que é para consegui-lo. Imaginem também o poder de recriação de figurinos, coreografias, músicas e outros elementos, que tem essas pessoas para que os grupos representem melhor a sua comunidade, dêem vazão às vaidades pessoais e superem o trabalho do ano anterior. Pode ser difícil imaginar, mas eles conseguem.





Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O traje. In: Sete notas sobre quadrilhas juninas. Aracaju: Nossa Gráfica, 2007. pp. 29-34.

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