segunda-feira, 1 de janeiro de 2007

Sete notas sobre quadrilhas juninas em Aracaju (7) - Os concursos de Quadrilha


Um leigo, visitante de outro Estado, chegando a Aracaju no mês de junho, certamente observará vários grupos uniformizados, alguns até desgarrados, perambulando pelas ruas durante a madrugada, no centro e nos bairros e ficará intrigado. Para onde vão todas essas pessoas? O que as faz vestir a mesma roupa – muitas vezes não enxutas a tempo – saírem todas as noites e chegarem ao fim da madrugada? Claro que para a segunda pergunta interpelar os andarilhos seria o procedimento adequado. Posso garantir que os motivos alegados seriam infinitamente díspares. Mas, quanto à primeira indagação, podemos fornecer uma luz: os quadrilheiros andarilhos vão à festa, ou melhor, estão fazendo a festa.
Quem se enfeita tem o objetivo de mostrar-se tanto mais, para apresentar-se na festa da Associação de moradores, no clube da empresa, nos hotéis, nos asilos, orfanatos, na Penitenciária Estadual, nas casas dos próprios quadrilheiros e nos espaços oficiais reservados aos festejos. Cada evento desses possui os principais ingredientes de toda a festa que se preza: comida, bebida – nem sempre em abundância – e muita música. Raramente a Quadrilha é remunerada. Em geral, o quadrilheiro pulveriza o salário dos meses de maio e junho nesses eventos. Os minguados reais vão-se em forma de churrasquinhos, doces, hot-dog, balas, às vezes, pamonhas e canjicas e, freqüentemente, milho verde e amendoim. A propósito, são conhecidos os resultados da tríade formada pelo quentão, frio e amendoim. Não importa o caráter do evento para o qual foi convidada a Quadrilha. Mesmo nas mais comportadas festas, como a da Associação do Servidores do Ministério Público, os quadrilheiros fazem o seu ambiente. Afinal, um grupo composto por quarenta pessoas, após a apresentação e alguns goles, não precisa de muito estímulo e permissão para “fazer a festa”.
Mas, o evento onde o quadrilheiro realiza-se é mesmo o concurso de quadrilhas. Ele pode ser organizado por comitês de rua, como presenciei na rua Vitória, no Conjunto Lourival Baptista, nas ruas Carlos Correia e Pernambuco, e no alto do Miolo. Podem ser concursos promovidos pelas prefeituras do interior do Estado como as de Cristinápolis, Estância, Rosário do Catete, Nossa Senhora do Socorro. Os concursos podem ter fama de tradicionais, como os da rua de São João, outros nem tanto, com o do Shoping Center Riomar. Em qualquer canto, onde haja um trofeuzinho em disputa, lá estará o marcador e seu grupo, brigando – literalmente falando – e fazendo a festa.
À propósito, luta corporal é um elemento constante nesses eventos. Tiros, facadas e sopapos não são raros no final de cada noite de concurso. As brigas ocorrem entre membros do mesmo grupo, entre grupos, principalmente, envolvendo quadrilheiros e jurados. As confusões provocadas pelas disputas foi um dos motivos que levaram os organizadores de concurso a não divulgarem os resultados na mesma noite da competição. Preservar a integridade física de quadrilheiros, jurados e organizadores dos concursos ficou muito mais fácil após essa medida. Essa modificação, introduzida a partir de 1992, não foi o suficiente para evitar uma verdadeira batalha ocorrida entre dezenas de crianças – entre seis e quatorze anos – na final do Concurso de Quadrilhas Mirins da Rua de São João (1994), onde entraram em confronto as quadrilhs Arrasta-pé, do Conjunto Lourival Baptista, e Século XX, do bairro Brasília. Por incrível que possa parecer, desconheço qualquer caso de morte ou incapacidade física, resultante de brigas em concurso, por motivos ligados aos resultados desses certames.
A razão das brigas são óbvias: acusações de parcialidade dos jurados, de roubo de notas e formação de pactos entre os mais fortes concorrentes para a divisão dos prêmios. Enfim, as lutas tem origem na maneira como são geridos esses concursos: da pluralidade de critérios de julgamento, da subjetividade dos quesitos a serem observados, questões sobre as quais debatem-se em outro nível de discussão os folcloristas e antropólogos.
Esse aparente caos em torno dos resultados dos concursos é responsável por um fenômeno que há anos venho chamando de gangorra da fama, ou seja, o fato de que nenhuma Quadrilha consegue sustentar-se em primeiro lugar por vários anos, mesmo na época em que o ranking – iniciado em 1990 por força da Liga dos marcadores – não existia. A gangorra da fama, pela qual já passaram as quadrilhas Rasta-Pé, Chapéu de Couro, Forró da Maranhão e Arrasta-Pé, é alimentada, digo, movimentada por esse cultivo das rivalidades entre as quadrilhas. Ela é sustentada pela cumplicidade dos marcadores com algumas fraudes escandalosas, pela relativa passividade dos quadrilheiros na aceitação dos resultados, alimentando a esperança de que “no próximo ano ganharemos... será a nossa vez”.
Voltando ao nosso visitante de início, diria ele, após algum tempo de familiaridade com os concursos, “eu não entendo como essas pessoas brigam tanto, desvendam a corrupção das disputas e, no ano seguinte, estão nos mesmos locais, enfrentando os mesmos adversários e, às vezes, sob os olhares dos mesmos julgadores”. Confesso que a explicação em duas laudas pode não ser tão esclarecedora quanto o disparate que colhi de um quadrilheiro, no momento em que lastimava a segunda derrota consecutiva no concurso da rua de São João: “O melhor do dominó é a resenha. Se não for assim [se não houver a briga após o resultado], não tem gosto”. Os quadrilheiros parecem criar os obstáculos que vão movimentar o seu cotidiano.
Tratando de rua de São João, pode-se dizer que esse é o principal concurso do Estado. Importante pela antiguidade e pela atmosfera produzida durante os festejos. Ela já foi considerada a maior praça de espetáculos juninos de Aracaju. Foi também a que premiava com os maiores troféus e o local de desfile obrigatório das autoridades políticas. Foi também importante pelo nome do padroeiro e pelo número de quadrilhas numa mesma disputa – até sessenta quadrilhas.
O concurso da rua de São João é um símbolo para o quadrilheiro. Vencê-lo é a maior glória que se pode alcançar na festa. Uma mostra da importância do evento pode ser medida pela constituição de uma comissão de quadrilheiros para mantê-lo em 1994. Organizado há dezenas de anos, o concurso perigava desaparecer por problemas que envolviam a política partidária e acusações de mau uso de verbas. Os quadrilheiros, junto a outros moradores, guardaram os rancores, sacrificaram algumas datas, disputaram e “aceitaram” o resultado do concurso de.
A rua de São João é ambiente glamouroso para o quadrilheiro. Depois da dispersão do público pelos espaços festeiros do Gonzagão, dos barracões culturais, das casas de forrós dos arraiais financiados pelo poder público, por parlamentares e empresários, enfim, depois do investimento maciço do Estado nesse tipo de festa – astuciosamente executado por Jackson Barreto e Antônio Carlos Valadares – o público da rua de São João vem sendo garantido quase que, exclusivamente, por conta das quadrilhas.
Essa proeminência estimulou o surgimento de vários concursos pela cidade. Alguns nasceram por imitação, outros por oposição de diferentes comunidades ao movimento da rua de São João. Hoje, são considerados concursos importantes aqueles indicados pela Liga de Marcadores: o concurso da Sociedade Comunitária do Bairro Siqueira Campos e o concurso do Centro de Criatividade Governador João Alves Filho.
Concluindo, não se pode conhecer a Quadrilha em Aracaju sem levar em consideração a disputa e a rivalidade nos concursos. Eles merecem estudo apurado ou no mínimo um registro de suas organizações, somente permitido por intermédio da oralidade. É necessário registrar as normas de apresentação, os critérios de julgamento, os calendários, as quadrilhas participantes, as formas de premiação, os eventos paralelos – escolha da Rainha do Milho, concurso de sanfoneiros, casamento caipira, troca do mastro – os shows dos grupos musicais e dos apresentadores de quadrilhas. Por falar em apresentadores, é preciso que se faça justiça ao mais conhecido apresentador dos últimos vinte anos da rua de São João. Trata-se do Senhor Gama. Boa parte do charme do concurso da rua de São João, com certeza, deve ser creditada a essa grande figura que abre as apresentações com o seguinte bordão: “Atenção boleirooos! E, com vocês, na noite de hoje, Quadrilha...”

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Sumário
Para citar esse texto:
FREITAS, Itamar. Os concursos de Quadrilha. In: Sete notas sobre quadrilhas juninas. Aracaju: Nossa Gráfica, 2007. pp. 51-56.

Sete notas sobre quadrilhas juninas em Aracaju - o que é Quadrilha?

“Contradança de salão de origem francesa, muito em voga no século XIX, de caráter alegre e movimentado na qual tomam parte diversos pares”. Essa definição, expressa por Aurélio Buarque de Holanda, é perfeitamente adequada ao nosso tema. Farei apenas pequenos enxertos, começando por informar que o número desses pares varia de oito a doze em cada uma das duas colunas e que o seu caráter alegre e movimentado se deve não só aos volteios, chinelados e aos pequenos saltos, executados sob a marcha, o xote, baião e o xaxado, como também às músicas cantadas em grupo e aos gritos dos quadrilheiros.
É comum empregar-se a palavra quadrilha em dois sentidos: 1) dança de pares executada dentro dos ritmos já citados – nessa acepção, dançar a quadrilha significa escolher o par e executar o garranchê, o quebra-caranguejo, entre outros; 2) uma instituição, ou seja, grupo de pares organizado sob um nome particular, com estrutura regular de ensaios e apresentações, administração e patrocínio – Quadrilha Forrobodó, do Conjunto Castelo Branco, Quadrilha Unidos em São João, do bairro 18 do Forte, entre outras.
Este último sentido, de uso constante nestas notas, a diferencia dos grupos de vida efêmera (trinta dias em média), que tem o seu núcleo desfeito ao final de cada temporada ou que servem somente para divulgar uma instituição, um projeto ou um produto – quadrilhas de funcionários públicos, de alunos, de idosos.
A especificação Quadrilha, como grupo autônomo, foi tomada a partir da organização das seguintes entidades: Quadrilha Arrasta Pé, Quadrilha Pé de Chinelo, Chapéu de Couro, Pé no Chão, Unidos em São João, Unidos em Asa Branca, Rasta Pé, Forró do Maranhão, Baila Conosco, Século XX, São João de Deus, Cocotinha, Mocotó, Forrobodó, Carcará, Coco Verde e Apaga a Fogueira. São quadrilhas que acompanhei há alguns anos; algumas delas, bem de perto, como a Arrastapé, Pé de Chinelo e a Chapéu de Couro.
Essa espécie de Quadrilha, estruturada e independente, chamou-me a atenção por um motivo, felizmente, hoje extinto: o bairrismo. A aversão à “baianomania” em Aracaju. No início da vida de inquiridor, tinha esperança de encontrar o gérmem da sergipanidade, e a Quadrilha bem poderia representar um dos elementos da nossa cultura “essencial”.
Tentei visualizar até uma futura reviravolta no movimento em Aracaju, nos moldes do ocorrido com os blocos do carnaval de Salvador: uma trajetória cujos elementos constitutivos seriam o incentivo, por parte do Estado, à produção local, à supervalorização, à explosão no consumo, tomada de assalto por parte do mercado e, por fim, à elevação da auto-estima dos sergipanos.
Claro que essas questões foram abandonadas. Algumas eram demasiadamente ingênuas. Outras exigiam leituras distantes da história. Mas, da questão da “reviravolta” ficou, pelo menos, uma hipótese: houve um aumento considerável no número de grupos autônomos. Se, ao final da década de setenta, o movimento era quase inexistente, em 1990, as quadrilhas já contavam mais de uma centena em todo o Estado. Essa era, realmente, uma preocupação importante. O que motivara todo esse crescimento? Teria sido a injeção de alguns milhares de cruzeiros no movimento, por parte dos governos de Antônio Carlos Valadares e Jackson Barreto Lima?
As questões de identidade, de ingerência do Estado e a ausência de registros impressos sobre as quadrilhas tiveram seu peso, mas o relato sobre a experiência dos dançadores foi motivado muito mais pelas críticas da grande mídia disparadas contra as Quadrilhas: mudanças no traje, na música, nos passos, no francês deturpado etc.
A mais aguda reação provinha dos gestores da política cultural do Estado que concebiam a Quadrilha como manifestação exótica. Curioso notar que esses mesmos críticos, ao tempo que criticavam os grupos locais, incentivavam toda espécie de axés durante o ano inteiro e, paradoxalmente, aguardavam, em junho, as apresentações de uma Quadrilha pura, “tipicamente sergipana”.
Dessa atitude simpática à observação da vida interior de cada grupo foi um salto. Durante o exercício, descobri mais duas facetas da Quadrilha. Em primeiro lugar, a sua importância para os setores do comércio e de serviços em Aracaju O movimento quadrilheiro envolvia, diretamente, dois mil participantes, perto de cinqüenta costureiras, cento e cinqüenta músicos e consumia milhares de metros de fazendas, centenas de chapéus e sandálias, além de promoverem uns cinqüenta bailes, entre bingos e leilões, e de se constituírem na atração de outras cento e cinqüenta festas.
O outro traço dominante dos grupos era uma espécie de rebeldia quase imperceptível aos olhos despreocupados com o registro memorialístico. Apesar do interesse dos políticos e da descoberta do setor turístico, a Quadrilha dançava o que queria, modificava as “partes”, passos, vestes e músicas ao seu modo, não obedecendo aos padrões de (bom) gosto de estilistas, cronistas e intelectuais. Nem mesmo a própria Liga de Marcadores conseguia dar a direção do “fazer” de cada grupo.
Foram esses os principais motivos, em suma, que me levaram a registrar, no início dos anos 1990, alguns traços da experiência desse tipo de instituição cultural em expansão na grande Aracaju, que remontava ao início dos anos 1980. São essas “notas”, tratando das coreografias, trajes, concursos, representação política, música, concursos e marcadores que o leitor poderá acompanhar a partir de agora.

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Sumário
Para citar esse texto:
FREITAS, Itamar. O que é Quadrilha? In: Sete notas sobre quadrilhas juninas. Aracaju: Nossa Gráfica, 2007. pp. 11-14.

Sete notas sobre quadrilhas juninas em Aracaju (6) - Os marcadores

Marcadores é como são denominado os líderes das quadrilhas. Líderes em vários sentidos: na escolha das coreografias, do roteiro de apresentação, na colocação dos pares – à frente ou ao fundo -, na escalação de quem dança e de quem sobra, na palavra final sobre o traje, etc. O marcador é efetivamente o líder do grupo. Contudo, já houve tentativas de compartilhamento de poder. Vários foram, também, os fracassos. A “democracia” na Quadrilha começou a ser experimentada com a formação de diretorias para desempenhar tarefas de gerenciamento dos grupos, solucionando problemas como a captação de dinheiro, falta de local para o ensaio, necessidade de transporte e até o trabalho de cooptação de bons dançarinos.
O resultado dessa tentativa de organização do grupo em entidade de direito privado, com uma gestão democrática foi quase sempre o confronto entre o marcador – que teria tarefas ligadas ao ensaio, à parte artística – e o restante da diretoria. No conflito, a diretoria era dissolvida e o marcador reassumia o poder total perante o grupo.
Hoje, as quadrilhas são lideradas administrativa e artisticamente pelos marcadores, auxiliados por um ou outro abnegado, disposto a agüentar as suas idiossincrasias e o estresse provocado pela condução dos trabalhos. Quando há diretoria na Quadrilha, ela é quase sempre presidida pelo próprio marcador.
O fato de várias diretorias terem fracassado, pode ser explicado pela própria origem dos grupos. Em geral, uma Quadrilha nasce em torno de uma pessoa e essa pessoa, dedicada, talentosa, carismática, é o marcador. Até oito anos atrás, aproximadamente, esses indivíduos apresentavam-se e atraiam outros dançarinos dando provas do seu talento na criação de partes e na execução dos passos com perfeição.
Hoje, outros requisitos foram incorporados, como: o poder sobre políticos, sobre a comunidade, dentro do movimento dos marcadores e, até mesmo, a sua capacidade de levantar fundos. Ser um bom dançarino já não é fundamental para tornar-se o centro das atenções. Esse marcador, que se empenha na formação da Quadrilha, fornecendo o estilo e, por muito tempo, sustentando-a financeiramente, vai tecendo suas relações com os membros do grupo e estabelecendo-se como líder inquestionável.
Uma Quadrilha também nasce da reunião de alguns interessados que possuem as condições administrativas para sustentarem o grupo, mas carecem de experiência na dança ou de respaldo no meio dos quadrilheiros. Primeiro, solicitam o auxílio de um marcador convidado – remunerado ou não – para a concretização do projeto. Pode ser uma Quadrilha de Associação de moradores ou então de escola, de clube, de empresa, de um político, etc. Novamente, aí o marcador vai tecendo a rede de amizades e, mesmo sem ser o responsável direto pela formação do grupo, acaba por assumir poderes totais.
Se a principal intenção de quem participa das quadrilhas é a de aparecer dançando e como essa escolha está a cargo do marcador, em ambos os casos citados, não há muito como questionar as vontades do mesmo. No segundo caso, a força do marcador é dupla, pois conta com a incompetência de seus contratadores em relação à dança.
Os marcadores são sempre do sexo masculino. Dançam à frente da coluna e, via de regra, com a dama considerada “a mais bonita” do grupo. Dele não se exige “boa aparência” ou estatura mediana – com no caso dos noivos -, ou combinação da altura – entre a dama e o cavalheiro de um mesmo par. O lugar de dama do marcador é o mais cobiçado, depois, é claro, do posto de marcador. Há uma verdadeira disputa entre as mulheres do grupo. Nesse caso, ao contrário do que ocorre com o marcador, a habilidade com a dança pesa bastante.
Não são raros os relacionamentos amorosos entre o marcador e várias damas do mesmo grupo. Por ser uma peça “facilmente substituível” e vulnerável à críticas, a dama que pretende ser a escolhida não pode assegurar-se somente da simpatia do marcador. A sua competência será exigida e posta à prova durante as apresentações, corrigindo falhas e minimizando a insegurança do seu parceiro na marcação das partes.
O marcador aponta o lugar da coluna onde o quadrilheiro deve dançar e com qual dama este combina. Ele escolhe a cor do vestido de cada uma, o tipo de camisa e o modelo do chapéu. Determina a quantidade de ensaios, o ritmo das coreografias e a música que aí deve ser encaixada. Externamente, traça o roteiro das apresentações – se em concursos, atividades filantrópicas ou apresentações vendidas a empresas, etc – e escolhe as tendências políticas ou os grupos econômicos com os quais a Quadrilha se relacionará.
Depois dessas informações, vocês poderiam perguntar: e não há contestação deste poder por parte dos demais membros? Certamente que os conflitos ocorrem com um ou outro e, até, com a maioria do grupo. Entretanto, nas quadrilhas que conheço, quase sempre o marcador utiliza-se das suas reservas para contornar o problema. Ele pode retirar o apoio dos patrocinadores, pode utilizar o carisma ou optar pela simples substituição do membro. Quanto mais organizado for o seu trabalho, mais pessoas estarão esperando por uma chance para participar do grupo.
Nos últims anos, já acompanhei várias foram as ocasiões em que ao final de uma temporada os membros dispersaram-se, acusando o marcador de toda espécie de delitos, prometendo não mais voltar. Para a minha surpresa, em janeiro do ano seguinte, no calor dos movimentos para os ensaios, lá estavam estes membros descontentes às boas com o “corrupto” marcador do ano anterior.

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Alguns observadores criticam os marcadores por não “comandarem” a Quadrilha através do grito. Mas, se as palavras pronunciadas em francês deturpado, os títulos das partes há muito perderam seu efeito, é também por uma questão eminentemente técnica e não por abandono deliberado do marcador. Ocorre que desde 1985 a maioria dos arraiais vem sendo equipados por sonorização de alcance médio. Isso impede a recepção da voz do marcador ditando as partes. Outro motivo advém do aumento do número de apresentações. No ritmo quase diário, a rouquidão é freqüente, após a terceira ou quarta apresentação.
A questão da surpresa também explica a omissão dos nomes das partes. Essa estratégia causa maior impacto nos jurados e obriga a atenção contínua do público que espera sempre pela próxima parte, até o final da apresentação. Com isso, novas formas de marcar foram criadas. Há os que marcam por meio de sinais com dedos, mãos e braços. Uns gritam o ritmo dominante da parte por várias vezes para indicar a mudança de passo – dentro do mesmo ritmo. Há os que promovem paradas bruscas no ritmo e solicitam música ao sanfoneiro, nomeando a parte: “sanfoneiro, olha o balancê”. Há os que gritam e são imitados por um membro localizado estrategicamente no meio da coluna. Por fim, existem aqueles que sincronizam cada parte a uma determinada música ou grupo de músicas, delegando aos tocadores a responsabilidade sobre as mudanças durante a apresentação. Esta última forma de marcar tem muita relação com a mudança de função do sanfoneiro – de solista para acompanhador – e com o aparecimento do cantor no trio. O solo vocal, por sua vez, está ligado ao fim da veiculação radiofônica, das marchinhas e quadrilhas, xotes, arrastapés, etc. de solistas famosos como Máriozan, Luiz Gonzaga, Abdias e Gerson Filho.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. In: Sete notas sobre quadrilhas juninas. Aracaju: Nossa Gráfica, 2007. pp. 43-47.

A propedêutica da História de Hennry Steele Commager (1967)

Hennry Stelle Commager em 1987.
Foto: www.commager.org.
Quem se interessar pelo estudo dos mecanismos de estruturação do ensino superior de História e da historiografia universitária brasileira, por certo deverá por os olhos no lápso de tempo correspondente a meados da décadas de 1950 e ao final dos anos 1960 como uma outra possibilidade, além dos marcos fundadores da Universidade de São Paulo e da Universidade do Distrito Federal. Justifica-se a propositura pela série de acontecimentos que marcaram significativamente o perfil do profissional de História nessa época, dentre os quais são de fácil lembrança: a separação dos cursos de História e Geografia (1956),[1] a ampliação do número de cursos de licenciatura em História,[2] a realização do Simpósio de Professores de História do Ensino Superior (1961) – com os seus conhecidos desdobramentos (a discussão sobre o conteúdo e a obrigatoriedade da disciplina Introdução aos Estudos Históricos nas Faculdades de Filosofia e fundação da Associação dos Professores Universitários de História) –, e a realização do I Encontro sobre Introdução aos Estudos Históricos (1968).[3]
Mas, essa época também guarda um outro diferencial importante, que são os modelos propedêuticos postos em jogo. É o tempo da apropriação de um certo padrão francês, configurado nas obras introdutórias de Jean Glénisson e José Van Dan Besselaar (196-) ou do modelo galo-francês, inserto na iniciação histórica de Joaquim Barradas de Carvalho. Glénisson publicou Iniciação aos estudos históricos (1961), resultante dos cursos da disciplina homônima, ministrados na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, no período 1958/1959 (Cf.Torres, 1959; Glénisson, 1966). O livro contou com a colaboração de Pedro Moacyr Campos, que escreveu um capítulo sobre a história da Historiografia brasileira, e de Emília Viotti da Costa, professora dedicada, entre outros temas, à didática de História para o ensino secundário. Da História-crônica à História-ciência, de Joaquim Barradas de Carvalho, é também uma síntese didática. Surgiu da “introdução metodológica” de cursos ministrados na segunda metade da década de 1960, na mesma FFCL/USP (Cf. MARSON,1981; CARVALHO, 1972).
O período em foco também guarda possibilidades de apropriação de experiências norte-americanas, precisamente em matéria metodológica, já que em termos de proposta interpretativa Sérgio Buarque de Holanda já se havia apropriado da idéia de “fronteira” do historiador Frederick Jackson Turner, nos anos 1930. É certo que da década de 1950 a 1970, o Brasil foi muito mais objeto de pesquisa para os brasilianistas que propriamente um espaço de trocas teóricas. Impermeáveis continuaram os historiadores brasileiros às abordagens das centenas de doutorandos que por aqui aportaram no período (Cf. OLIVEIRA, 2000, p.19-45). Mas, não se pode esquecer também que outras entradas podem ter sido possíveis para a importação de alguns pressupostos metodológicos em voga nos EUA, ainda que tais experiências tenham sido originalmente sintetizadas das matrizes alemãs, pelos historiadores norte-americanos desde meados do século XIX ao pré II Guerra Mundial (cf. NOVICK, 1998, p. 21-46). Neste mesmo local, a Alemanha, também foi beber a historiografia universitária francesa, no final do século XIX (BURDÉ e MARTIN, s/d. p. 113-114; CARBONELL, 1983, p. 98). Dessas possibilidades de apropriação, conhecemos a construção de uma obra introdutória às regras do ofício – Teoria da História do Brasil, elaborada por José Honório Rodrigues (1949/57/69) e a tradução do The nature and study of history, de Hennry Steele Commager (1965), construída a partir de exemplos colhidos da prática historiográfica norte-americana. Essa comunicação trata, portanto, desse último manual, e tem o intuito, apenas de tornar menos desconhecida a experiência da propedêutica da História disposta no mercado brasileiro para os cursos superiores de História nas faculdades de Filosofia, da década de 1950 ao final dos anos 1960.
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Teoria da História do Brasil (1949) foi o nosso primeiro grande manual de "Introdução à História". Ele é fruto dos contatos de José Honório Rodrigues com a metodologia dominante na historiografia norte-americana no período em que foi contemplado com uma bolsa de pesquisa oferecida pela Fundação Rockefeller (1943/1944). Na Universidade Colúmbia, José Honório participou do curso "Nature, Methods and types fo History" dirigido por Charles Cole tendo como colaboradores os professores Henry Steele Commager, Jacques Barzum e Allan Nevins. O livro, que discute questões como o significado da palavra história, a cientificidade da disciplina, periodização, fontes, gêneros, ciências auxiliares e metodologia, resulta do entusiasmo despertado pelo curso e do seu desejo em "tentar reformar o ensino superior de história" no Brasil (RODRIGUES, 1985, p. 16). Há registros da recepção dessa obra no curso de graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Teoria aparece como leitura básica nos programas do início da década de 1970 em disciplinas do curso de História, notadamente em Introdução aos Estudos Históricos I e II, conjulgada, por exemplo, com a Introdução aos estudos históricos de José Van Den Besselar (CIAMPE, 2000, p. 219 e 222).
Quanto ao manual norte-americano, cujo título no vernáculo é Iniciação ao estudo da História, pouco coletei sobre sua acolhida no Brasil, além da resenha produzida por Odilon Nogueira Matos (1970) na Revista de História. A introdução circulou em primeira edição no ano de 1965. É um dos seis títulos da coleção "Social Science Seminar Series", organizada por Raiymond H. Muessing e Vincent R. Rogers. Além de História, os livros dessa série ocupavam-se de Sociologia, Economia, Ciência Política, Atropologia e Geografia. Todos os autores, exceto Commager, estavam ligados à Universidade de Minesota e os consultores – um para cada obra, excetuando-se os trabalho de História e Geografia – faziam parte das Universidades de Michingan, Indiana e Stanford.
O professor Henry Steele Commager, à época do lançamento do manual, lecionava História e Estudos Americanos na Escola Amherst. Formou-se em Chicago (1928), ensinou nas universidades de New York (1926/1938) e Columbia (1938/1956). Commager viveu de 1902 a 1998 e foi professor por 65 anos. Destacou-se também pela numerosa produção de títulos sobre a Guerra Civil norte-americana, Segunda Gerra Mundial, a República, o pensamento e ação de homens como A. Lincoln, T. Jefferson, a Constituição, a democracia americana, e o caráter nacional. Além disso, atuou na edição de mauscritos ligados à história política e na produção de livros didáticos – as fomosas História dos Estados unidos em formato de bolso. Hoje, o significado da produção de Commager para a comunidade norte-americana pode ser aferido pelo número de publicações em catálogo: são mais de cinquenta títulos em circulação.
Muitos desses trabalhos foram produzidos em co-autoria com escritores consagrados pelo grande público como Samuel Eliot Morison: curiosamente, o mesmo Morison que, no início dos anos 1950, fazia pouco caso da importância dos cursos de metodologia histórica (cf. Morison, 1951, apud. Torres, 1959, p. 148). Mas, há outra grande referência menos heterodoxa acerca do universo de gravitação intelectual de Commager. Trata-se do historiador Allan Nevins, a quem o autor dedica "com graditão, admiração e afeição" a sua Iniciação ao estudo da história. Esta cumplicidade parece vir de longa data. Registre-se que esse mesmo Nevins atuava com Steele Commager no curso "Nature, Methods and types to History", dirigido por Charles Cole, do qual participou José Honório Rodrigues (Universidade de Colúmbia, 1943/1944). Sobre Nevins, há testemunhos do seu alinhamento teórico-metodológico ao "sonho nobre" do historiador norte-americano, da passagem do século XIX para o século XX. Sua obra, The Gateway to History (1938), apresenta forte oposição às propostas do polêmico Charles Beard acusado por Nevins de promover “uma epistemologia perniciosa” (Novick, 1996, p. 258). De fato, Nevins estava bem próximo das teses de historiadores como Teodore Clark Smith (1934) e C. H. Mcmillwain (1936), que da American Historical Association repudiavam as proposições relativistas, acusando os principais heréticos – Beard e Becker – de demolidores da precípua função do historiador, que era a busca da verdade objetiva.
Saindo desse emaranhado de concepções de ensino e ofício – propedêutica histórica versus “cammon sense”, objetividade versus relativismo – importa agora situar a o manual em seu “lugar de produção”. Segundo Novick, na década de 1950 "as exitações da esquerda eram menos problemáticas para o estabelecimento da política interna do que a beligerância da direita", representada principalmente por MacArtur, do Partido Republicano, e o senador Joseph R. McCarthy" (NOVICK, 1996, p. 306). No momento de sua morte, Commagger foi citado pela CNN como um dos primeiros opositores das campanhas empreendidas por este senador. As pregações antimacarthistas são explícitas na sua História dos Estados Unidos. Aí o autor lamenta a perseguição sofrida por muitos "patriotas liberais", protesta contra o autoritarismo do senador "ultra-nacionalista” e contra a moda do "americanismo cem por cento", em voga desde os finais de 1940. Em Iniciação ao Estudo da História, há indícios de antimacartismo nas alusões em que rebate o nacionalismo "chauvinista": (...) tôda idéia de personalidade nacional é romântica e provavelmente perniciosa.” De todos os padrões que impusemos à história, “o nacional é o mais poderoso, o mais difundido, talvez o mais nocivo" (COMMAGER, 1967, p. 38 e 67).
Talvez também se possa aproximar Commager do chamando movimento revisionista, intitulado por Gerson Moura de “Estudos americanos”: uma tendência que punha em causa inclusive os mestres da história progressista ou "nova história"- Frederick Jackson Turner, Charles Austin Beard e Vernon Parrington. Em História de uma história Gerson Moura caracteriza esse movimento como "menos empenhado na reforma social e muito mais ligado à identidade nacional, menos afeito à mudança e muito mais preso à continuidade, menos apegado ao conflito de interesses, e muito mais interessado o consenso de valores.” (...) De modo crescente, continua Gerson Moura, “matizou-se a causação econômica, e deu-se maior relevo ao papel das idéias e valores" (MOURA, 1995, p. 38). E essa característica é expressa nas temáticas dos mais mais importantes livros de Commager.
Ora, mas que tipo de introdução à História esse senhor nos legou? Ou melhor, que espécie de propedêutica, vertida em português, foi chacelada por Commager para circular no Brasil do final dos anos 1960?

A propedêutica de Hennry Steele Commager
A Iniciação ao Estudo da História está estruturada em cinco breves capítulos: I) A natureza da História; II) As variedades de História; III) O estudo da História; IV) Alguns problemas da História; V) A História como Direito e como Filosofia. Nos próximos parágrafos resumo as idéias expressas no manual mantendo a ordem original de cada segmento. Em seguida, comento alguns pontos que considero fundamentais para o estudo dessa forma de literatura frequentemente utilizada nos cursos de Introdução à História.
O primeiro capítulo é aberto com o clássico problema da polissemia da palavra história. Ela pode significar o passado [a experiência humana] e também a lembrança desse mesmo passado. A história, conhecimento produzido, é a lembrança organizada desse passado. E neste sentido, a sua prática requer o cumprimento de três etapas: coligir os fatos; organizá-los; e interpretá-los. As duas primeiras exigem do historiador "bom senso" e "julgamento"; a última, "inteligência de alto nível". A história, ainda conhecimento produzido, configura-se sob várias formas: a narrativa – o historiador como um contador de "estória" (Ulisses, Heródoto, Motley e Parkmam); o registro do que no passado "aconteceu realmente. Os registros conservam muitas limitações: não existem na mesma proporção para épocas e povos diferentes, além de serem sempre confusos e tendenciosos. A história também toma a forma de literatura, explorando o estilo e tentando "recriar o passado" em si mesmo; e de filosofia, que ensina através de exemplos, transmitindo lições de moral. A última forma da história é a técnica: "o historiador científico... quer excitar é a razão e não a imaginação. Assim, em relação ao passado, não quer recriá-lo, mas explicá-lo." (COMMAGER, 1967, p. 11-28).
Com o título “As variedades da História”, o autor disserta sobre as diferentes modalidades de narrativa. O cinema e a televisão sugerem algumas experiências, embora as mais indicadas sejam aquelas conhecidas há séculos: o padrão cronológico – que deve precaver-se contra a rigidez dos marcos, o anacronismo, e a arbitrariedade dos períodos e eras; geográfico – livrando-se do eurocentrismo e do determinismo; político – fugindo de patriotismos chauvinistas; cultural – absorvendo as contribuições da Antropologia cultural (os novos estudos sobre as características nacionais, e a democratização da história); e o biográfico – evitando-se o personalismo, a simplificação de problemas complexos e a interpretação da experiência humana como circunscrita em compartimentos isolados (política, religião, economia, etc.) (idem, p. 29-43).
O manual de Commager reserva um grande espaço para sugestões de leitura aos aprendizes do ofício. Diz ele que a leitura da história obedece algumas regras: deve-se estudar os temas e épocas que atraíram a atenção de grandes literatos, eruditos e historiadores; ler aquilo que dá prazer ou estímulo intelectual; ler sistematicamente e de forma orientada partindo-se sempre do particular para o geral. O leitor pode ainda conhecer bastante sobre a história social de um período ou lugar lendo romances históricos. (idem, p. 44-56).
Quanto á escrita da história, as prescrições referem-se à integridade do historiador (honestidade) com os seu próprios conceitos, luta contra preconceitos, visão plural sobre o objeto, a precaução de esgotar os recursos da pesquisa antes de concluir, e humildade no julgamento. A diligência – paciência, persistência durante a pesquisa, imaginação – que é um dom, e bom senso completam o conjunto de atributos. Mas, antes de por-se à obra da escrita é necessário escolher um tema, tarefa que também deve observar alguns critérios básicos. O primeiro deles diz respeito às condições de de exequibilidade: informar-se da existência, acesso, e quantidade de fontes, e bom senso nas opções. A regra aponta que não se deve escolher temas esotéricos e nem demasiadamente conhecidos. Acima de tudo, é importante escolher um assunto que conte com a simpatia do pesquisador. Depois da escolha, deve-se ler em profundidade e somente o que estiver relacionado ao tema. Deve-se reunir e organizar as fontes consideradas essenciais. É também aconselhavel estar em contato direto com os documentos, pois o ato de copiar facilita a memorização, além de estimular o surgimento de hipóteses originais. Ademais, é preciso ter em mente que a escrita do historiador deve refletir o seu estilo mas este pode variar de acordo com a matéria que está sendo produzida. (idem, p. 56-63).
O capítulo quarto da Iniciação tem caráter epistemológico. Trata das limitações do ofício. Commager entende que o historiador é um escravo das suas fontes. Depende do acaso para conservá-las e delas fazer uso. Como se não bastasse o acaso, as fontes sempre são parciais e fragmentadas. E o historiador ainda enfrenta problemas sugeneris como: o fetichismo dos registros escritos, a sedução pelo dramático e espetacular, e a tendência em explorar o que lhe é familiar. Por esses motivos, não raramente, comete anacronismos. O seu grande empecilho, todavia, é mesmo a impossibilidade de observar os eventos passados. Esse  risco de imobilizar-se diante do trabalho não decorre tando do desejo de transportar-se ao passado, mas por tentar entender a experiência humana como regulada por Deus, pelo progresso ou por intermédio da evolução (idem, p. 64-70).
Outro problema: os fatos são fragmentários. São abundantes sobre a Europa, por exemplo, e escassos sobre a África. Os fatos são enganosos, inexatos; e são subjetivos, polissêmicos. Isso é bastante para o que o autor afirme enfaticamente: os documentos não falam por si e "não contam o que realmente aconteceu, mas o que queremos ouvir." No entanto, nada impede que os historiadores partam dos fatos para narrar o passado – assim como parte-se da gramática e da semântica para se estabelecer a língua. (idem, p. 70-76).
A intepretação e a parcialidade também são limitações tematizadas por Commager. Ele afirma que alguns historiadores chegaram a fazer da parcialidade uma virtude (Treitschke[v], Beard), outros, como Acton, a condenaram. Mas, não há como fugir do partidarismo, da subjetividade, da propaganda e da idiosincrasia, posto que todos os historiadores "são criaturas do seu tempo, raça, fé, classe e país." Há, porém, uma parcialidade abominável, devido ao seu caráter generalizador e egocêntrico: o nacionalismo (idem, p. 77-86). Da interpretação, segue-se o problema do julgamento na História. Ranke e seus sucessores eram contrários ao julgamento enquanto Michelet, Treitcshke e Motley não distinguiam a função de líder ético ou estudioso da história. Toynbee chegou a pregar a existência de leis morais universais e intemporais (e o respeito que o historiador deveria lhes prestar). Beard optou pelo julgamento por razões psicológicas, assumindo a inevitável subjetividade do trabalho do historiador. De fato, também existem sérios argumentos contra o julgamento moral, dentre os principais estão: 1) a idéia de que os padrões morais são socialmente construídos. Daí, sermos levados a pensar que a tarefa do historiador não é julgar e sim compreender; 2) o historiador não é Deus, é um ser socialmente condicionando, não podendo libertar-se dessa característica; 3) o leitor não depende do historiador para elaborar a sua consciência moral. Esses argumentos não impedem, porém, que o historiador possa valer-se de um tipo de julgamento para fazer as suas afirmações: o julgamento profissional. (Idem, p. 86-100).
O quinto e último capítulo do manual trata dos fins da História, de problemas como a causalidade, a existência de leis, e a da relação da escrita da história com a Filosofia da História. Sobre os fins, o autor afirma que a história "não serve a coisa alguma que possa ser pesada, medida ou contada", mas sem ela "a vida seria mais pobre e de menor significação". Ela nos oferece o prazer de alargar a nossa experiência de vida; nos possibilita a companhia de personagens destacados "em nossa viagem pela vida"; ela acrescenta nova dimensão a lugares e fatos que nos parecem corriqueiros à primeira vista. Entretanto, para usufruir desses prazeres é preciso ter imaginação e saber cultivá-la. Isso se procede por intermédio da leitura do drama, da poesia, do estudo da arte e da arquitetura. (idem, p. 101-110).
A causalidade na história é buscada há dois mil anos por filósofos e historiadores. Mas, foi somente a partir do século XVIII que ela transformou-se num problema efetivo. Neste período, surgiram as teorias cíclicas, a idéia de que o universo é regido por leis mecanicistas, a determinação do meio ambiente, a determinação da geografia e da força (econômica, religiosa, energética). Recentemente, surgiram as propostas de que o progresso, a evolução, e as leis da história que explicariam o passado e prediriam o futuro. (idem, p. 110-116). Quanto às leis na História, já houve tentativas de extraí-las, no século XX, nos EUA (Henry Adams, Edward P. Chynney). Os resultados, entretanto, não responderam a problemas simples colocados pelo historiador. Diante dos insucessos, a explicação inverteu-se e ganhou força o papel exercido pelo acaso na história. Essa situação deve em muito ser matizada. Está bastante claro que a vida é um fluxo caótico. Mas, historiador, se quizer narrá-la, terá que imprimir uma certa ordem. Para escapar aos extremos (caos/regularidade) o historiador deve usar o bom senso evitando o reducionismo, aceitando a causalidade múltipla ou resignando-se ao fato de que ainda não se pode tudo explicar. (idem, p.116-122).
 A última parte do manual tematiza a Filosofia da História, enfrentando o problema da ambiguidade da expressão: tanto pode significar filosofia imposta à interpretação da experiência quanto a filosofia estraída do estudo dessa experiência. O primeiro sentido – dedutivista, é problemático, já que nenhum homem tem o direito e o poder de elaborar um plano, exigindo que o mesmo seja obedecido pelo processo histórico. O segundo sentido – indutivista, é empregado ao resultado de um exame prolongado sobre um determinado tema ou período em busca de exemplos de condulta. Assim, a "história é a filosofia ensinando pelos exemplos” e ela realmete ensina pelo exemplo, mas "ensina o que os historiadores – ou mais frequentemente os que estão no poder – querem ensinar." O importante mesmo é que a história ensina a tolerância, a necessidade da liberdade, e ainda, que o homem não é produto de leis e nem vítima do acaso: o indivíduo também importa, assim como "o caráter de um povo" – fundado não somente nas conquistas de poder mas nas coisas do espírito e da mente (idem, p. 122-130).

Objetivistas versus relativistas
Iniciação ao Estudo da História é um manual e como tal tem a tarefa de tornar simples, inteligíveis os grandes problemas enfrentados por aqueles que querem produzir conhecimento histórico. Grosso modo, pode-se resumir todo o enunciado da Iniciação em três grandes questões: o que é, como se faz e para que serve a história.
A resposta dada pelo autor à primeira questão – a história como uma lembrança organizada do passado – vai além da definição pura e simples e aponta uma proposta epistemológica. Assim mesmo, uma grande problema se impõe: a confusão entre os três significados expressos para a palavra "história" (a lembrança organizada; todo o passado; e um ramo da literatura). Embora tenha descartado de início o segundo sentido, continua a utilizá-lo sem qualquer diferenciação (um travessão, parênteses, "h" minúsculo etc.) o que dificulta sobremaneira o entendimento do iniciante sobre a natureza do conhecimento histórico, os traços característicos do olhar do historiador diante dos demais profissionais que lidam com a expressão, com a narrativa da experiência humana.
Quanto ao “como se faz”, há uma nítida confusão entre gêneros e possibilidades de exposição. Ao relacionar o "padrão" cronológico, geográfico político, cultural e biográfico deixa subentendido como gênero e/ou plano de exposição uma questão muito mais séria que envolve teoria-método e acaba por não explicar o que seriam cada um desses elementos – embora informe das implicações de cada escolha.
Em "como se estuda" há também uma outra questão: a leitura orientada pelo gosto e interesse dos grandes literatos, eruditos e historiadores sem ao menos discutir porque e quem são essas "mentes e talentos de primeira qualidade" indica uma certa idéia de historiografia descolada do presente ou pelo menos, das questões de interesse do próprio iniciante à disciplina, como prega o próprio autor.
Outro ponto destacar diz respeito a estatus do historiador. Apesar de estar em pleno exercício acadêmico, Commager não faz dessa prática um pré requisito para identificar determinado autor como historiador. A sua definição e demasiadamente ampla. Para Commager "devemos reservar o têrmo àqueles que se empenham em reconstituir e apresentar alguma especialização, como algo mais que um passatempo." (COMMAGER, 1967, p. 28).
Um último problema a ser colocado é o tema do "sonho nobre", o sonho da objetividade histórica. Depois de sugerir uma posição crítica de Commager em relação aos historiadores progressistas – e mesmo sabendo que alguns manuais não aprofundam deteminadas questões epistemológicas, findando por transmitirem uma visão didático-pluralista acerca dos maiores problemas da historiografia – seria interessante verificar como o autor se posiciona a respeito da questão. Já foi referido o oferecimento do manual ao historiador Alan Nevis. Foi esse mesmo Neves em The Gatway to history (1938) um dos que dispararam contra os relativistas, gerando de Charles Beard a famosa resenha "The noble dream" (NOVICK, 1996, p. 259). É oportuno, então, comparar as conclusões desse manual, que aparentemente circula na mesma episteme de Alan Nevins, às respostas do quase manifesto de Beard.
A primeira atitude de Commager em relação a Beard é de ironia, basta ver os seus comentários às teses sobre a parcialidade pregados pelos relativistas:
Coitado do pobre historiador. Êle é a vítima e o prisioneiro das circunstâncias, da Natureza e da natureza humana. Nem Santo Antônio foi exposto a tantas tentações. Se êle é um homem moderno, então como poderá entender o homem medieval? Se é europeu, como poderá realmente entender e fazer justiça ao mundo asiático ou africano – ou mesmo americano? Se é branco, como poderá realmente entender as pessoas de côr que constituem três quartos da raça humana? (idem, p. 78)
Apesar das farpas, o resultado da comparação entre as teses de Beard e Commager é simplesmente curioso. Vejamos como se comportam os dois autores em relação a algumas questões cruciais da produção do conhecimento histórico.
Sobre as diferenças epistemológicas entre a história e as ciências naturais Charles Beard é enfático: o historiador não é um observador do passado que permanece fora de seu próprio tempo. Não pode vê-lo objetivamente, como o químico vê seus tubos de ensaio. O historiador deve "ver" a realidade da história por intermédio da documentação, o seu único recurso. Os acontecimentos e personalidades da história, por sua própria natureza, envolvem considerações éticas e estéticas. Não são meros acontecimentos da física ou da química, que propiciam a neutralidade por parte do "observador". Para Commager, a a História não é uma ciência como a Química e a Biologia. Não pode submeter seus dados a experiências científicas, não pode repetir suas próprias experiências, e não pode controlar seu material (idem p. 26 , 93).
Sobre a impossibilidade de se conhecer todo o passado ambos são céticos: Beard entende que “a história, como realmente aconteceu” (sem levar em contra, é claro, os seus aspectos particulares), não é conhecida ou cognoscível, não importa quão escrupulosamente seja perseguido "o ideal do esforço pela verdade objetiva". Commager argumenta sobre a impossibilidade de colocarmo-nos na mente ou na pele de Ciro, Brutus, Joana d’Arc ou do chefe indígena Pontiac (idem, p. 68). Esse mesmo historiador tem como certa que a história é um enredo produzido pelo escritor: “a paixão pela ordem é a doença profissional do historiador". ...A organização sempre comete alguma violência ao fluxo do pensamento ou caos do comportamento que é a vida... A história é uma selva de acidentes, ciladas, surprêsas e absurdos, e assim é o nosso conhecimento dela, mas se devemos relatá-la devemos impor-lhe uma ordem” (idem, p. 119). Ao que concorda Beard, afirmando que a idéia de uma completa e real estuturação dos acontecimentosno passado, a ser descoberta por meio de um exame parcial de uma documentação parcial, é pura hipótese.
Da falência dos modelos dedutivistas de explicação da experiência humana, o primeiro advoga que qualquer hipótese ou concepção de maior alcance, empregada para dar coerência e estrutura aos acontecimentos passados na história escrita, é, de alguma forma, algo transcendente. E, “como diz Croce, transcendência é transcendência, seja ela considerada como de Deus ou da razão, da natureza ou da matéria.” Essa posição está próxima à de Commager, que ironicamente comenta: alguns vêem a mão de Deus, do Progresso ou da Evolução em tudo o que triunfou e em tudo o que falhou. Nada, certamente, é mais fatal à integridade da investigação histórica do que a doutrina da inevitabilidade implícita nessa atitude” (idem, p.69).
Para finalizar essa seqüência, vejamos o que dizem ambos acerca da parcialidade do historiador e da relatividade das conclusões deste profissional. Para Beard, o historiador, procurando conhecer o passado ou algo sobre ele, não leva à documentação parcial com que trabalha uma mente neutra, perfeita e polida, na qual o passado (por intermédio da documentação) é espelhado como realmente ocorreu. Quaisquer que sejam os atos de purificação aperfeiçoados pelo historiador, ainda assim ele permancece humano, uma criatura de seu tempo, lugar, circustância, intereses, predileções, cultura. Commager acredita que não há ponto de vista "correto". O que está claro para ele é que, “por mais que tentem, os historiadores vêem o passado através dos olhos do presente (...). O historiador, ...é uma criatura de sua raça, nacionalidade, religião, classe, de sua herança e sua educação, e não pode jamais libertar-se dessas influências de formação e conquistar a imparcialidade olímpica” (idem, p. 86, 97).

Considerações finais
Vê-se, então, que os fragmentos das obras de Beard e Commager apresentam curiosa semelhança em pontos estratégicos para as duas tendêncas historiográficas. Ambos concordam acerca das especificidades, problemas, limites, do conhecimento histórico; ambos sublinham o papel do historiador no processo de enredamento e tecem severas críticas à idéia de uma “verdade histórica”. Mas deve-se ressaltar que, apesar de idênticos, tais discursos não dizem a mesma coisa. O fundamento da semelhança está no fato de os dois autores lutarem pela continuidade e reprodução do saber histórico e pela preservação do ofício. Constatada a comunhão de importantes regras metodológicas, seria sensato conjecturar: os manuais destinados à disciplina Introdução aos Estudos Históricos carregam significativas doses de lugares comuns, independentemente dos “lugares” em que são constituídos? Os livros que didatizam os rudimentos da ciência histórica seriam elaborados por processos semelhantes aos dos livros didáticos da História disciplina escolar? Essa questão nos estimula a examinar de perto os livros introdutórios produzidos por matrizes da França, Portugal e Inglaterra e difundidos no Brasil entre as décadas de 1950 e 1970.
Além de estimular a elaboração de uma hipótese, a comparação entre o texto-documento de Charles Beard e o manual introdutório de Commager oferece entradas para se pensar os “lugares” de produção e as formas de apropriação das obras propedêuticas de José Honório Rodrigues e do póprio Hennry Steele Commager no Brasil e geram novas questões. O fundamento da diferença entre Beard e Commager, expressa-se, sabemos hoje, nos “lugares” de fala, marcados pelas transformações institucionais e políticas pelas quais passou a sociedade americana no pré e pós II Guerra Mundial: o primeiro tempo, caracterizado pela pluralidade ideológica, pela incerteza, e pelo relativismo – teria José Honório Rodrigues aproximado-se dessa ambiência? No segundo período – pós-guerra – dominariam os vetores da afirmação, da unidade nacional, da luta pela formação do consenso e pela recuperação da objetividade, cabendo então uma segunda interrogação: os historiadores universitários brasileiros deveriam alguma coisa à historiografia norte-americana em tal sentido? É esse conjunto de questões, que tentarei investigar nos próximos exames dos manuais que circularam entre os marcos da autonomização dos cursos de História e de Geografia e a montagem dos programas de pós-graduação na área de História.

Para citar este texto
FREITAS, Itamar. A propedêutica da História de Ennry Steele Commager no Brasil (1967) In: III Seminário Internacional em Educação - A pesquisa em Educação: Abordagens e a Questão da Inclusão, 2007, São Cristóvão. III Seminário Internacional em Educação - A Pesquisa em Educação: Abordagens e a Questão da Inclusão Social. São Cristóvão: Núcleo de Pós-Graduação em Educação/Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação, 2007.

Fontes da imagem
Henry Still Commanger em 1987. <http://www.commager.org/>. Acesso em: 8 dez. 2010.

Referências bibliográficas
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Notas
[1] O desdobramento do “Curso de Geografia e História” em “Curso de História” e “Curso de Geografia” foi regulado pela lei federal n. 2.594, de 8 de setembro de 1955. No Estado de São Paulo, o decreto n. 25.701, de 4 de abril de 1956 regulamentou a referida lei em relação à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (De Paula, 1956, p. 285).
[2] O caso de São Paulo é ilustrativo. A partir da a interiorização sistemática do ensino superior, por intermédio das faculdades de Filosofia, o curso de graduação em História ganhou dois novos pólos: Marília, em 1959, e Assis, em 1963. Com esses cursos, foram instituídas as revistas Estutos Históricos (Marília – 1963/1967) e Anais de História (Assis – 1968/1976) (Lapa, 1985. p. 35-36).
[3] O Encontro sobre Introdução aos Estudos Históricos foi realizado em julho de 1968, em Nova Friburgo, por iniciativa da Universidade Federal Fluminense. Os Anais do evento constituem rico painel do estado da disciplina Introdução aos Estudos Históricos no primeiro decênio de sua instituição.

Sete notas sobre quadrilhas juninas em Aracaju (4) - O traje

Quando comecei a acompanhar as quadrilhas, eram comuns os trajes improvisados, com remendos coloridos sobre o cutim e, até, sobre o brim para a roupa dos cavalheiros. Chapéus de palhinha bem formatados ou desfiados. Chapéus em estilo vaqueiro texano. Até sombreiros mexicanos faziam sucesso. Lembro mesmo de barbas e bigodes feitos a carvão. Nas damas, maquiagens carregadas de rouge, pó, batom. Pequenas pintas negras, nas bochechas ou próximas ao nariz.
Entretanto, como dizem os quadrilheiros de gerações passadas, isso foi em outro tempo. A prática de cobrir-se com remendos e de carregar na maquiagem sobrevive apenas em atitudes satíricas relacionadas à quadrilhas e em casamento de tabaréus. Em quadrilhas travestidas, tanto de homens quanto de mulheres, como a Quadrilha Guerra dos Sexos, do Conjunto Habitacional D. Pedro I, em 1985 ou, ainda, em alguns bailes da terceira idade.
A máxima de Joãzinho Trinta - a respeito da necessidade do brilho nas escolas de Samba do Rio de Janeiro - de que “intelectual é quem gosta de miséria”, já foi bastante repetida por alguns marcadores das chamadas grandes quadrilhas em defesa dos trajes trabalhados. Mas, ouvi também de gente que não conhecia Joãozinho Trinta que a Quadrilha “é dança de casamento na roça” e que “ninguém vai para um casamento remendado”. Portanto, justificativas não faltam para a mudança ocorrida nos últimos anos nos modos de vestir dos grupos.
Até mesmo entre as quadrilhas mirins, sejam elas de escolas ou associações, o traje vem sendo mais elaborado, embora não alcance, no caso das damas, o padrão uniforme dos grupos de adulto. Prova disso, é o drama enfrentado pelos pais com as despesas no mês de junho. Um gasto semelhante ao das festas do sete de setembro e do natal.
Houve, portanto, uma mudança significativa nos anos 1980 em relação ao traje. Pode-se até falar em esgotamento do protesto satírico apresentado em forma de remendos e caricaturas. Mas, essa mudança está relacionada ao acirramento das disputas entre os grupos, com o peso do item traje, nos regulamentos dos concursos.


***


A exemplo da coreografia e das músicas de entrada, o motivo do tecido e o modelo das roupas são uma espécie de segredo de Estado. São guardados, a sete chaves, tanto os croquis, como os seus criadores e as costureiras. O rito é iniciado com a compra do tecido. Tenta-se encontrar uma loja que garanta a exclusividade da peça e inicia-se uma intensa conspiração buscando-se descobrir o figurino da Quadrilha adversária. Não são raros os casos de aparecerem quadrilhas com modelos e fazendas idênticas numa mesma temporada.
Esta disputa não se restringe ao momento atual, onde a tônica dos figurinos é constituírem-se verdadeiros fardamentos de damas e cavalheiros. A competição foi deslocada do campo individual, entre as caipiras do mesmo grupo, para o campo coletivo, entre as quadrilhas. Havia, até os anos 1980, aproximadamente, um verdadeiro concurso entre damas na disputa pelo elogio do melhor vestido. Se por um lado o grupo ganhava em variedade de motivos – colorido resultante da criatividade de cada dama ou costureira, o grupo perdia em conjunto. Com as diferenciações de gosto ou de possibilidades financeiras, era esperado que vestidos curtos ou longos, decotados ou mais recatados, de cores vivas ou sóbrias fossem agrupando-se lado a lado, nem sempre incorrendo em combinações agradáveis aos olhos de assistentes e jurados.
A vestimenta dos homens obedecia padrão não muito diferente do atual: calças compridas, geralmente de cutim, com cores sóbrias; rolós, jaquetas, chapéus, jabiracas, e camisas de mangas compridas. Estas últimas, variavam na cor e nos motivos, como acontece nos grupos de hoje.
Para o lamento de muitos, a uniformização das quadrilhas, que vinha evitar as citadas aberrações estéticas, tornou-se um elemento empobrecedor, já que fez desaparecer do elenco, as figuras da Rainha-do-milho, noivo e noiva, e suas vestimentas costumeiras. A primeira, de verde e amarelo, com cetro e coroa, e os últimos, vestidos a caráter, num branco impecável.
Um fato curioso a registrar nessa virada é o contato com figurinistas profissionais na elaboração dessa indumentária. Isto se deu por volta de 1982, quando quadrilhas como a Unidos em São João, influenciadas, entre tantos motivos, pela produção que se fazia no carnaval, aceitaram a colocação destes profissionais que viriam acrescentar um pouco de brilho, uma melhor combinação de cores e cortes modernos.
Esse fato foi amplamente criticado por grande parte do movimento quadrilheiro. Era “uma vaidade desnecessária, uma intromissão absurda, uma covardia” em relação às quadrilhas de menor porte. Vem desse evento também, o reforço à uniformização dos grupos.
Tempos depois, quando se pensava que, diante das críticas, essa tendência iria desaparecer, ocorreu exatamente o contrário: a “alta costura” invadiu as quadrilhas pela porta dos fundos. Figurinistas, havia poucos na cidade. Além de cobrarem pelo serviço – o que, praticamente, inviabilizava o convite para as quadrilhas menores –, os profissionais trabalhavam por afinidade aos quadrilheiros, tornando-se exclusivo do grupo A ou do grupo B. Conclusão: os quadrilheiros não beneficiados iniciaram um processo de imitação de modelos – de vestidos, principalmente – que “degenerava” a criação dos profissionais em sub-modelos, nem sempre harmônicos.
Houve, numa primeira etapa, um processo de recriação à procura do novo e do moderno, de maneira um tanto urgente. Num segundo momento, a cidade viu nascer, de um ano para outro, dezenas de figurinistas recrutados entre os membros dos grupos ou da comunidade, que tanto poderiam ser costureiras, marcadores, damas ou qualquer pessoa que gostasse de Quadrilha e tivesse jeito com a arte do desenho.
Tradicionalmente, a vestimenta carrega características fixadas através décadas. Nos homens, as poucas variações – sobre o que já foi descrito – ficam entre o que deve cobrir a cabeça: se chapéu de vaqueiro nordestino – sem abas e de couro cru –, de vaqueiro sulista ou texano – com abas de feltro, couro ou palhinha. Há também a alternativa de se dançar sem chapéu.
Nas damas, os vestidos conservam babados – com fazenda – e laços nas costas. Por baixo do vestido são comuns os calçolões, liberando o movimento das damas com as saias. Como calçados, são utilizadas as famosas periquitinhas.
Hoje, os motivos das fazendas já não importam muito. Podem ser florais, geométricos, figurativos, etc. O que importa mesmo é a sua cor, a textura – que facilite o movimento – e a combinação que se faz entre os tecidos. Gasta-se muito para fazer um vestido. Contando-se os bicos, rendas, murins para os calçolões, uma peça dessas não sai por menos de dois terços de um salário mínimo, incluindo-se o trabalho da costureira. Para os homens, a despesa fica em torno de um terço do mínimo. O homem tem a vantagem de utilizar o roló e o chapéu por mais de cinco anos.
Há outro fato interessante. Por mais vitorioso que tenha sido o traje, ele nunca é empregado no ano seguinte. O seu uso vai de junho a maio do outro ano, quando se dão os últimos preparativos de um novo lançamento. O que pode parecer aos outros uma insensatez econômica significa a sorte de vários elementos dependentes dessa farra do novo. São os comerciantes de tecidos e calçados, de rendas e aviamentos para costura, e as costureiras quem mais agradecem.
Se até aqui pode-se notar a quantidade de dinheiro movimentado nos festejos com as quadrilhas, imaginem o esforço que é para consegui-lo. Imaginem também o poder de recriação de figurinos, coreografias, músicas e outros elementos, que tem essas pessoas para que os grupos representem melhor a sua comunidade, dêem vazão às vaidades pessoais e superem o trabalho do ano anterior. Pode ser difícil imaginar, mas eles conseguem.





Para citar este texto
FREITAS, Itamar. O traje. In: Sete notas sobre quadrilhas juninas. Aracaju: Nossa Gráfica, 2007. pp. 29-34.